Outro importante pilar para o genocídio negro é a política histórica adotada no Brasil para branquear a população negra, vista como um empecilho para o sucesso do país. Entre os adeptos a esse movimento, estava o escritor Monteiro Lobato.
Texto / Pedro Borges
Imagem / Modesto Brocos/Wikimedia Commons – “A redenção de Cam”, obra de 1885 retrata a busca do embranquecimento através da miscigenação
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“A mídia trabalha com o quadro comum de referência, que invariavelmente, é orientado por códigos, signos, por referências, em geral, que nos alimentam. O jovem negro sempre está dentro desse quadro comum de referências num polo negativizado”.
Quem afirma isso é a professora do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (CELACC- USP), Rosane Borges. Para ela, a comunicação no Brasil vai se basear em teorias da eugenia, como a de Cesare Lombroso, quem acreditava que os criminosos tinham características físicas comuns.
Juarez Xavier, Coordenador do Núcleo Negro da UNESP para Pesquisa e Extensão (NUPE), diz que os fundamentos disso no Brasil são antigos, e que o melhor exemplo é o médico baiano Nina Rodrigues, quem descreveu o negro como sujeito com uma suposta tendência natural à delinquência.
“A antropologia criminal consolida uma visão depreciativa do jovem negro brasileiro”.
Rosane Borges pensa que coberturas jornalísticas e as peças publicitárias baseadas em teorias racistas como a de Nina Rodrigues naturalizam o genocídio de jovens negros e fazem com que as pessoas não reajam à morte desses corpos, tidos como indesejáveis.
O conteúdo jornalístico é um dos exemplos do movimento da eugenia, que tem marcas em parte da vida cotidiana dos brasileiros. As raízes desse ideal são antigas, e já legitimaram uma série de propostas hoje vistas, por alguns, como absurdas.
A Origem das Espécies e o Darwinismo Social
O inglês Charles Darwin foi responsável por uma das grandes contribuições da ciência para a humanidade na passagem do século XIX para o XX. A teoria da evolução das espécies pode ser equiparada às descobertas de Einstein na física, devido ao impacto gerado.
Sua explicação refuta de vez o criacionismo, teoria baseada no preceito católico de que Deus teria criado o mundo e os seres humanos.
Darwin defende os fatores genéticos como os pontos centrais para se compreender a evolução dos seres vivos.
Segundo ele, as características dos seres vivos são resultado da combinação genética e das imprevisíveis mutações dos genes. Somadas a outros fatores, como o ambiente, elas determinar a sobrevivência ou não daquele ser através da seleção natural, responsável por definir quais são os animais mais aptos a sobreviverem.
Os preceitos de Darwin, que se limitam às ciências naturais, inspiraram uma variável perigosa: o Darwinismo Social. O primeiro a divulgar essas ideias, em 1883, foi Francis Galton, primo de Darwin, para quem a seleção natural também explicaria as diferenças entre as raças humanas e, principalmente, demonstraria as razões da superioridade branca. Para ele, não só as características físicas, como também as intelectuais eram hereditárias.
Naquele momento, raça era usado como um conceito biológico, determinante para diferenciar aspectos de inteligência, capacidade física e moral entre os seres humanos. Com o avanço da ciência, a genética, anos mais tarde, tornaria a ideia de raça algo ultrapassado, provando que não há grandes diferenças entre grupos humanos.
Quando clama por essa utilização, a academia e o movimento negro atribuem à raça um imaginário cultural, determinante para o Estado estruturar a nossa sociedade.
A eugenia e o racismo
O artigo “A palavra é…Genocídio: a continuidade de práticas racistas no Brasil”, de autoria de Celso de Moraes Vergne, Junia de Vilhena, Maria Helena Zamora e Carlos Mendes Rosa, explica que o Darwinismo social, ao categorizar as pessoas, transforma alguns grupos em “menos humanos”, e portanto, com a vida menos importante.
A abertura para essa linha de pensamento e discussão vai alimentar as primeiras teorias da eugenia, palavra que em grego significa “bem nascido”.
Esse projeto chega ao Brasil em 1914, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, a partir de uma tese publicada por Miguel Couto, quem via com maus olhos a imigração japonesa. Miguel é um dos responsáveis por acrescentar um artigo na constituição brasileira, em 1934, que controlava a entrada de imigrantes.
A maior parte dos problemas de saúde do Rio de Janeiro do início do Século XX, e pós abolição da escravatura, era associado à comunidade negra. Os fundamentos desenvolvidos por Miguel Couto serviram de inspiração para o médico sanitarista Renato Kehl, considerado o pai da eugenia no Brasil, defender uma “higiene social”.
O médico acreditava que a melhoria da raça brasileira só seria possível com o predomínio da raça branca. Entre as suas ideias, algumas presentes até os dias de hoje no imaginário cotidiano, estava a “segregação de deficientes” e a esterilização de “anormais” e “criminosos”.
Um dos intelectuais da época, e até hoje muito reconhecidos pela sociedade brasileira, Monteiro Lobato, autor do clássico “Sítio do Pica Pau Amarelo”, foi um dos grandes adeptos aos preceitos da eugenia.
“O Presidente Negro – O Choque das Raças”, publicado em 1926 pelo escritor, conta a história de um homem negro que assumiria o posto de presidente dos EUA e que uniria todos os brancos do país para esterilizar e exterminar a comunidade negra.
Outra referência da Eugenia, esta no campo da criminologia, foi o professor universitário, nascido em 1835, em Verona, Cesare Lombroso, peça importante para compreender a violência praticada contra a população negra. Lombroso, inspirado nos estudos genéticos e evolutivos, acreditava que os criminosos tinham características físicas comuns.
O médico baiano Nina Rodrigues foi o mais proeminente defensor dos ideais de Lombroso no Brasil. É ele quem vai constituir uma vertente do pensamento da criminologia fundamentado nas fenótipos raciais.
Os lábios grossos, o nariz negróide, o formato do crânio, e o tom de pele, eram características, que de acordo com Nina Rodrigues e antropologia física, indicavam que o sujeito era propenso ao crime.
O darwinismo social desenvolveu uma série de problemas, entre eles, alimentou a construção da ideologia da branquitude no Brasil. Era inimaginável, na concepção da elite brasileira da época, um país ser bem sucedido com uma mão de obra composta de maneira majoritária por negros.
Um país racista sem racistas
Com as chegadas de espanhóis, italianos, entre outros, o Estado brasileiro passa a agir para excluir o negro, o deixando de fora do mercado de trabalho. Dessa forma, seria possível abrir espaço para os imigrantes europeus recém-chegados ocuparem boa parte dos postos de trabalho disponíveis.
Alguns ditados populares materializam esse ideal, como se referir à segunda-feira, dia em que a maioria das pessoas começam a rotina de trabalho, como “dia de branco”.
A teoria eugenista também vai alimentar o racismo no Brasil, importante para compreender a segregação racial e o genocídio negro no país. A ideologia da branquitude e a falsa superioridade branca defendida por pesquisadores constroem um imaginário de inferioridade para o negro.
A política de Estado da época incentivou a miscigenação, entre imigrantes e negros, como forma de embranquecer a população brasileira. Essas relações vão construir a ideia de que o país vivia sob uma democracia racial, conceito depois legitimado na academia pelo livro “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre.
O artigo “As novas formas de expressão do racismo”, de autoria de Marcus Eugênio Lima e Jorge Vala, explica o formato do racismo no Brasil. De acordo com os pesquisadores, foi criado no país o “racismo cordial”. Ele se manifesta por meio da dominação dos sujeitos brancos contra os negros por meio de uma superficial polidez, que se materializam pelos ditos populares de cunho racial.
Os autores, porém, salientam que o racismo no país nada tem de cordial. Ele é um dos combustíveis para a violência histórica a que foi submetida a comunidade negra brasileira.
O artigo também aponta que pesquisa feita com a população brasileira mostra que 89% dos entrevistados assumem existir racismo no Brasil, mas apenas 10% admitem que são racistas. Essa é uma característica da sociedade brasileira, um país racista, sem racistas.
Na metade do Século XX, pesquisadores como Roger Bastide e Florestan Fernandes são financiados pela UNESCO a fim de compreenderem as relações raciais no Brasil. Para a instituição internacional, o Brasil vivia sob uma democracia racial, que deveria ser utilizada como exemplo para a superação do racismo em outros países, como os EUA e a África do Sul.
O resultado da pesquisa não poderia ser outro. Os estudiosos notaram a descarada desigualdade racial existente no Brasil, mesmo que sob a bandeira da democracia racial.
O Estado brasileiro, fundamentado no darwinismo social, nos preceitos de Cesare Lombroso e Nina Rodrigues, com longo histórico escravocrata e intenso racismo cotidiano, vai propor ações que desnudam a sua face genocida.
Depois da abolição da escravatura, em 13 de Maio de 1888, e se tornar uma República, em 1889, o Brasil passa a se questionar: o que fazer com essa população negra? Sem o interesse de incluir dentro do novo projeto de nação, o Estado brasileiro assume práticas higienistas.
Em 1911, aconteceu na cidade de Londres, Inglaterra, o Congresso Internacional das Raças. O encontro tinha o propósito de buscar soluções para os países com problemas étnico/raciais.
João Batista de Lacerda foi o representante brasileiro e apresentou o projeto do Estado para resolver a questão. A intenção do governo chefiado pelo então presidente Hermes da Fonseca era a de exterminar a presença física e cultural do negro em cem anos.
As estratégias para acabar com essa população se dariam pela miscigenação, pelo extermínio físico, e pelo apagamento cultural dos referenciais negros. As teorias científicas daquele momento acreditavam que a superioridade genética dos brancos iria prevalecer e, assim, o fenótipo negro desapareceria do país até 2011.
O branqueamento se converteu em políticas públicas. De acordo com a Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, em 1921, os então deputados federais Andrade Bezerra e Cincinato Braga elaboraram um projeto no Congresso Nacional que proibia a imigração de “indivíduos humanos das raças de cor preta”.
Na mesma época, o deputado Fidélis Reis propôs um projeto semelhante, mas que também fosse capaz de limitar o percentual de “amarelos” no país. Entre vários outros dispositivos legais adotados para implementar o branqueamento brasileiro, o decreto-lei 7967 de 1946 foi um dos mais importantes.
A partir daquele momento a legislação determinava que “os imigrantes serão admitidos de conformidade com a necessidade de preservar de desenvolver o Brasil na composição de sua ascendência europeia”.
O projeto eugenista nos dias de hoje
Marisa Fefferman, uma das articuladoras da Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, concorda com a professora Rosane Borges, e acredita que a mídia é uma das instâncias que mais representada o projeto da eugenia no Brasil.
“O genocídio se caracteriza a partir da mídia, que vai produzindo o inimigo número 1 do Estado”, conta.
Para ela, mesmo oprimido pelo Estado, a comunicação colabora na construção do jovem negro, morador das periferias das grandes cidades, como o grande temor social.
Exemplo desse conteúdo pode ser observado em uma cartilha, que foi veiculada em jornais de grande circulação, feita pelo Ministério Público do Rio de Janeiro e pela Associação de Magistrados do Brasil, de 1997.
Pensado para o público em geral, mas com foco e linguagem direcionada ao infantil, a narrativa conta a história de um menino branco e loiro, com o nome de Brilhante, identificado como o porta-voz das respostas às questões difíceis sobre a Justiça.
Questionado do: “Por que só os pobres vão para a cadeia?”, ele responde, apontando o pobre como mais propenso ao crime por suas condições sociais. Os pobres são sempre representados por pessoas negras.
O resultado desse medo e da construção do inimigo é o desejo social por mais segurança e mais repressão. “A banalização da violência vai produzindo o medo. O medo vai produzindo, na lógica das pessoas, uma necessidade de recrudescimento de uma força coercitiva, que é esse Estado cada vez mais violento”, relata Marisa Fefferman.
Em 26 de novembro de 2010, o jornal “Meia Hora”, do Rio de Janeiro, apresenta a manchete “Bundões da Vila Cruzeiro fogem como Baratas”. No dia 17 de abril de 2008, outra manchete chama atenção: “Bopecida, o inseticida da polícia” é colocado como “Terrível contra marginais”.
A desumanização dos corpos negros e moradores das periferias, comparados a baratas, insetos mortos pela população no cotidiano sem qualquer preocupação ou remorso, colabora para a maior legitimidade do extermínio de afro-brasileiros.
No artigo, “A palavra é.Genocídio: a continuidade de práticas racistas no Brasil”, os autores apontam que essa desumanização naturaliza a morte dos corpos negros na sociedade.
Esse imaginário criado pela mídia vai alimentar a ação do Estado.
Vinicius Silva, advogado da Defensoria Pública, diz que “os corpos negros são visto como uma fábrica de produção de bandidos, uma vez que infelizmente ainda vigora a associação de negritude com maior marginalidade social”.
O resultado disso, para ele, é a maior vigilância e ação policial contra negras e negros.
“Esses estereótipos talvez sejam a explicação para a baixa repercussão dos crimes e mobilização contra um Estado altamente letal”, conta.