A história da humanidade foi marcada por alguns processos genocidas. No Século XX, dois ganharam a atenção do mundo, o armênio, orquestrado pelo Império Turco Otomano, e o judeu, executado pela Alemanha de Hitler. No Brasil, o movimento negro luta pelo reconhecimento de que houve e ainda há um genocídio no país.
Texto / Pedro Borges
Imagem / Fernando Frazão/Agência Brasil (22/02/2017)
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Cerca de 10 milhões de pessoas deslocadas de maneira forçada na condição de escravos. Assassinatos em massa de aproximadamente 40 mil pessoas ao ano de um único grupo racial. População carcerária composta em 61,6% por esse mesmo grupo étnico, onde em estados da nação, como Acre e o Amapá, esse número passa dos 80%. Representação de 2,1% do corpo de professores da principal universidade do país, a Universidade de São Paulo (USP), e renda média de 59,2% do que recebem os brancos. De acordo com a Fiocruz, 65,9% das mulheres mortas por violência obstétrica, também compõem esse segmento da população brasileira.
Esses não são os números de um país em guerra, pelo menos não de modo oficial. Esses são os dados que colaboram para a construção daquilo que teóricos e ativistas chamam do genocídio negro no país.
O especial organizado pelo Alma Preta traz alguns elementos para a reflexão sobre a violência sistemática a que está submetida a população negra no Brasil. As reportagens abordarão a desigualdade racial e social existente no país entre brancos e negros, a escravidão como um marcador presente na história brasileira até os dias hoje, o projeto da eugenia e o desejo de branquear o país, o extermínio de jovens e o encarceramento em massa da população negra, a política de guerra às drogas como a justificativa mais atual desse processo, a morte simbólica da população negra por conta da falta de referenciais e do apagamento das produções culturais e acadêmicas, além de violências históricas sofridas no sistema de saúde por mulheres negras.
Além das análises, o portal construiu um perfil com três nomes da luta contra o racismo no país. Os entrevistados foram a fundadora do Núcleo de Consciência Negra da USP, Jupiara Castro, a sambista e deputada estadual, Leci Brandão, e o DJ dos Racionais MC’s, KL Jay.
O que é um genocídio?
O genocídio é um conceito formado pelas palavras “genos”, que em grego significa tribo, raça ou nação, e do termo de raiz latina “cida”, que significa matar. De maneira objetiva, o genocídio se refere ao processo sistemático de eliminação de um determinado grupo racial, étnico, ou religioso.
O primeiro genocídio do século XX com reconhecimento da comunidade internacional foi o armênio, que ocorreu entre os anos de 1915 e 1923, durante e depois da Primeira Guerra Mundial. O Império Otomano protagonizou a morte de 800 mil a 1,5 milhão de pessoas.
O dia 24 de abril é a data oficial de recordação do massacre, quando o império prende e assassina cerca de 250 líderes comunitários e intelectuais armênios.
Apesar do não reconhecimento do governo da Turquia, herdeira do antigo império, o país sofre uma série de pressões internas e externas para assumir a responsabilidade dos crimes.
Em 24 de Abril de 1998, o Conselho de Parlamentares Europeus publica um documento em homenagem ao genocídio armênio e define a data como o dia oficial para a recordação do massacre, tido como o primeiro do Século XX. Entre os parlamentares que endossam o documento, há franceses, espanhóis, italianos, portugueses, entre outros.
O processo genocida mais conhecimento na história é o judeu, fruto da política da Alemanha nazista de Adolf Hitler, que culminou na morte de 6 milhões de pessoas. A violência praticada pelo nazismo saltou aos olhos do mundo e da história por conta da crueldade com que as pessoas eram assassinadas nos campos de concentração.
Em 1944, o jurista Raphael Lemkin, indignado com a morte de judeus e armênios, define o processo de genocídio como um “plano de desintegração política e social de determinados grupos em uma sociedade”.
Anos mais tarde, depois do fim da Segunda Guerra Mundial e da derrota do nazismo, inicia-se um momento de questionamento das atrocidades cometidas na Alemanha de Adolf Hitler.
Em 1948, inspirada nas reflexões de Raphael Lemkin, a Organização das Nações Unidas (ONU) promove a Convenção sobre a Prevenção e Repressão do Genocídio. Desse encontro, saiu o tratado que define a prática como crime internacional.
O genocídio passa a ser entendido como: os atos cometidos com a intenção de destruir de maneira total ou parcial grupos nacionais, étnicos, raciais, ou religiosos, por meio do assassinato de membros do grupo; geração de danos à integridade física ou mental de membros do grupo; imposição de condições de vida ao grupo que possam causar sua destruição física total ou parcial; imposição de medidas que impeçam a reprodução física dos membros; e a transferência forçada de crianças de um grupo para outro.
Há um genocídio em curso no Brasil?
No Brasil, nas Américas e no continente africano, intelectuais e ativistas ligados ao movimento negro defendem que sim, houve e ainda há um processo de genocídio negro.
Felipe Freitas, doutorando em direito pela Universidade de Brasília (UnB) e membro do Grupo de Pesquisa em Criminologia da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), afirma que é preciso debater os problemas brasileiros deixando de lado a comparação com o histórico de outras nações.
“Penso que a comparação entre experiências históricas são pouco produtivos. A violência antinegritude no mundo é uma experiência bastante antiga mas que em cada contexto regional foi assumindo suas formas de modo que prefiro falar, assim como João Vargas, Jaime Amparo e outros intelectuais da diáspora, em genocídio antinegritude e a partir daí pensar nos esquemas hierárquicos em que os negros estão postos”.
Integrante da Quilombação, entidade do movimento negro, e autora da dissertação de mestrado “Territórios de morte: homicídios, raça e vulnerabilidade social na cidade de São Paulo”, Cláudia Rosalina Adão acredita que o genocídio negro tem características diferentes dos processos utilizados pela ONU como base para definir esse crime internacional.
“O genocídio de negros e negras no Brasil não é algo pontual, fatídico, mas um processo construído historicamente. As políticas de exclusão do pós-abolição, que prejudicaram o acesso da população negra aos recursos da sociedade como a terra e o mercado de trabalho, articuladas à segregação social e urbana construíram as bases das condições de extermínio. É um processo que não se findou, visto que as periferias configuram-se como territórios de produção e reprodução da morte”.
Independente das definições conceituais acerca do crime de genocídio, a violência contra a comunidade negra é marcada por números expressivos.
No Brasil, em 2012, 173.536 dos presos no país eram brancos e 295.242, negros. Neste mesmo ano, enquanto 9.667 brancos morreram por armas de fogo, outros 27.638 negros perderam a vida da mesma forma.
A morte de mulheres negras no sistema de saúde, comparadas com a de mulheres brancas, também é outro fator que chama atenção. De acordo com o Ministério da Saúde, 60% das mulheres mortas ao dar a luz nos hospitais do SUS eram negras, contra 34% das brancas.
Em 1992, uma CPMI foi instaurada para averiguar a existência de uma política de esterilização de mulheres negras. Os resultados comprovam que sim, houve esse desejo por parte de organizações internacionais, com o respaldo de políticos brasileiros, de controlar a natalidade brasileira, sobretudo em estados de maioria pobre e negra.
A violência contra a comunidade negra não se limita ao encarceramento, à letalidade policial, à violência urbana, e ao sistema de saúde. Os afro-brasileiros também são vítimas de um silenciamento e apagamento dos seus referenciais culturais e históricos, o que vai ocasionar na chamada “morte simbólica”.
Em entrevista para este especial, KL Jay, integrante do Racionais MC’s, exemplifica essa ideia ao afirmar que “se a sua mente já está morta, o seu corpo ir embora é muito mais fácil”.
As múltiplas formas de exterminar a comunidade negra têm alguns fatores em comum. Um deles, é o histórico escravocrata brasileiro.
O sequestro europeu dos povos africanos para as américas e em especial para o Brasil trouxe para cá cerca de 10 milhões de pessoas, de acordo com Clóvis Moura, um dos principais sociólogos brasileiros e autor do livro “Dialética Radical do Brasil Negro”. Os números são muito expressivos para uma população mundial, que entre os séculos XVI e XVIII, era de por volta 500 milhões de pessoas.
Outro fator foram as teorias eugenistas, que inspiraram o desejo das elites brasileiras de “embranquecer” o país e tornar a nação em apta ao “sucesso”, como acreditavam intelectuais da época, caso de João Batista de Lacerda.
Os diferentes olhares sobre o tema
O doutorando em direito, Felipe Freitas, é um dos intelectuais que se debruça sobre o tema, e que acredita na existência do genocídio negro no Brasil.
“Sem dúvida, o que se viu em séculos de escravidão e nas reiteradas estratégias públicas de extermínio sistemático de negros no país é, sim, genocídio e, portanto, merece este enquadramento legal”.
Felipe, porém, não é o primeiro a pesquisar a temática no país. Pensadores como Abdias do Nascimento, Edson Cardoso, Ana Flávia Flauzina e João Vargas são referências para a compreensão da realidade de violência da comunidade negra.
A percepção de que sim, negras e negros estão submetidos a um processo genocida, não é só compartilhada pela academia, mas também pelos movimentos sociais.
Hamilton Borges, integrante da organização Reaja ou Será Morto/a, pensa que o genocídio negro é um reflexo do histórico de escravidão no país, que perpetua um ódio contra todo um grupo racial que o leva, em última instância, à morte.
“A Reaja não trata de genocídio de juventude negra, de genocídio de população pobre, não trata de genocídio de periferia. A nossa abordagem diz respeito a um povo que precisa de um território”.
Marisa Fefferman, uma das articuladoras da Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio em São Paulo, é outra figura que acredita na existência desse crime internacional no Brasil e tem se posicionado de maneira contrária à morte sistemática de negras e negros.
“Nós temos uma realidade de um grupo mais exterminado, que é justamente o jovem negro que vive na periferia, algo que sempre ocorreu, independente do governo que estivesse no poder”.
A visão de que há uma violência direcionada à população negra, porém, não é compartilhada por toda a sociedade.
Mesmo que os números apresentem uma seletividade racial nas taxas de homicídio, o deputado Coronel Telhada (PSDB-SP) pensa que a violência é generalizada e atinge as pessoas dos diferentes grupos raciais, de gênero, e classe.
“Vivemos em uma situação que morrem mais pessoas no Brasil do que em uma guerra”, afirma Telhada.
Os elevados números de mortalidade no Brasil atingem, ainda que de maneira desproporcional, cidadãos da sociedade civil e agentes de segurança do Estado. Dados da Corregedoria da Polícia Militar apontam que em 2015, 64 policiais foram assassinados em São Paulo.
Com base nesses dados, Telhada questiona se “podemos então falar no genocídio policial?”.
O deputado estadual também destaca que “a maioria dos policias mortos são negros, pobres, da periferia”.
No Brasil, a divisão construída ao longo dos anos expõe pessoas negras nos dois polos da violência. O afro-brasileiro é vítima da ação de agentes do Estado, e a maior parte dos policiais mortos são, muitas vezes, homens negros. Felipe Freitas diz que a política genocida do Estado, em nome da guerra às drogas, põe policiais negros em conflito com outros sujeitos negros. O resultado é a morte de sujeitos do mesmo grupo racial.
“Isso diz respeito à forma como o racismo se expressa no Brasil, uma maneira na qual são as pessoas negras que morrem tanto como policiais, quanto como cidadãos da sociedade civil”.
Perguntada sobre a existência de um genocídio negro em São Paulo, a Secretaria de Segurança Pública preferiu destacar, em nota, a diminuição da letalidade policial a que estão submetidos, negras e negros, no estado.
“De acordo com o estudo, houve redução de 72% da vitimização da população negra por armas de fogo em São Paulo, sendo que em 2014, a taxa chegou a 10,3 pessoas negras por grupo de 100 mil. Em 2003, o patamar era de 36,2 indivíduos. O Atlas da Violência 2017, divulgado em junho pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pelo Ipea, mostra que São Paulo é o Estado com menor taxa de homicídios da população negra do país: a taxa, em 2015, foi de 15,4 pessoas por 100 mil habitantes, patamar 59% abaixo da média nacional”.
A Organização das Nações Unidas (ONU) no Brasil, em nota emitida ao Alma Preta, disse que a entidade não tem nenhum porta-voz que possa tratar sobre o tema da mortalidade de jovens negros. A expectativa é ter alguém apto para responder em nome da organização sobre o assunto no mês de Novembro.
“Estamos preparando uma campanha digital sobre o assunto, que deverá ser lançada nos próximos meses. Possivelmente, depois desta data teremos porta-vozes indicados para o tema mas até lá não é possível”.
Até o momento, a ONU e as demais organizações em níveis internacionais, não reconhecem de maneira oficial a existência de um processo de genocídio no Brasil.
O pesquisador Felipe Freitas não se surpreende. Para ele, o Estado e os seus representantes tendem a não assumir a existência de um processo genocida.
“Tal recusa não é apenas uma limitação conjuntural ou uma divergência teórica dos representantes do governo. A questão neste caso é que a noção de genocídio expõe a natureza sistemática do racismo no país e evidencia o papel ativo dos governos na produção e manutenção destas violências”.
Para Felipe Freitas, o não entendimento por parte das organizações internacionais, e o não reconhecimento jurídico tem na verdade explicações políticas.
“A questão de fundo deste debate é que os negros não são reconhecidos como atores políticos na discussão sobre a definição do que é genocídio para o concerto das nações, e, por isso, não tem conseguido encontrar amparo para suas demandas no âmbito internacional”.
O aceite de tal conceito e o avanço com relação à vida da população negra, na conceção de Felipe Freitas, só serão possíveis por meio da luta política. O doutorando em direito pela UnB acredita na necessidade de pautar o tema para transformar em consenso de que há um genocídio no país.
“Só a luta política poderá produzir esta forma de nomeação do problema”, conclui.