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Ilha de Maré: contaminação de águas provoca mortes por câncer em moradores

Há mais de dez anos lideranças comunitárias denunciam as consequências da poluição industrial na ilha localizada na Bahia. Segundo moradores, mortes por câncer têm sido frequentes em decorrência do consumo de pescados infectados

Dois homens aparecem ao lado de um barco com uma placa. Imagem também enquadra outros dois barcos com placas.

Foto: Foto: Divulgação/CESE

29 de março de 2022

Ao longo de mais de dez anos, ativistas, pescadores (as) e moradores (as) da Ilha de Maré, na Bahia, denunciam uma série de violações no território, que é atingido pela alta concentração de poluentes derivados das indústrias químicas instaladas na região da Baía de Todos-os-Santos, considerada a maior baía do Brasil e a segunda maior do mundo.

Com a chegada da industrialização na Bahia, na década de 1950, a Ilha de Maré passou a ser cercada por polos industriais e petroquímicos, o que gerou impactos ambientais presentes até os dias de hoje.

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As consequências da poluição nas águas da Ilha de Maré têm prejudicado a cadeia alimentar de toda a comunidade, formada majoritariamente por pescadores e marisqueiras, que encontram no mar e nos mangues a principal fonte de alimentação e renda.

Porém, o descarte de lixo industrial e a falta de políticas públicas nas comunidades têm provocado uma série de problemas de saúde e até mortes por câncer, segundo relatos de moradores entrevistados pela Alma Preta Jornalismo.

Um dos exemplos dessas consequências é um estudo de 2010 conduzido pela pesquisadora e professora de Nutrição da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Neuza Miranda, que mostrou que 116 crianças da Ilha de Maré apresentaram altos níveis de metais pesados no sangue, como o chumbo e o cádmio, em decorrência da alimentação por pescados contaminados.

Segundo a professora Neuza Miranda, as consequências da ingestão desses metais podem provocar problemas neurológicos, atraso em funções cognitivas, anemia e atraso no desenvolvimento das crianças, já que elas são mais vulneráveis à exposição de componentes químicos.

“O chumbo e o cádmio são metais neurotóxicos, sendo que o cádmio é ainda mais tóxico do que o chumbo porque ele é considerado um metal carcinogênico”, explica a professora.

marisco leonardo rattes sitePesquisa identificou a presença de chumbo e cádmio nos pescados consumidos por crianças da Ilha de Maré. | Foto: Leonardo Rattes

Ainda conforme a professora Neuza Miranda, o estudo também fez uma análise laboratorial de alguns pescados da Ilha de Maré, coletado com os próprios pescadores e marisqueiras, e, a partir de um inquérito alimentar, foi descoberto a contaminação dos alimentos por chumbo e cádmio.

“Mesmo a população sabendo que esse material, esse produto pode estar realmente contaminado, é óbvio que a fome fala mais alto. Essas crianças tinham que se alimentar de alguma coisa”, pontua a professora.

‘Minha irmã morreu por causa da ganância’

Há três meses, Marizelha Lopes, liderança quilombola na comunidade de Bananeiras, na Ilha de Maré, convive com o luto pela perda da irmã. Neilma Lopes, tinha 50 anos e morreu após quatro anos de luta contra um câncer no intestino. Neilma também era ativista e atuava na luta por melhores condições de vida para a comunidade da Ilha de Maré.

“Para a gente que está na frente da luta, esse luto consegue ser mais doído porque a gente tem a consciência de que minha irmã morreu por conta da ganância, ela podia estar viva”, lamenta Marizelha Lopes, que também integra a Articulação das Pescadoras de Ilha de Maré.

A morte de Neilma não foi um caso isolado. Nos últimos 17 anos, Marizelha Lopes estima quatro mortes por possíveis consequências da contaminação na Ilha de Maré: Em 2005, Adriane, de 14 anos; em 2013, Monalisa, de cinco anos; em 2019, Lidiana, de 21 anos; e em 2021, Noemia Lopes, de 50 anos, irmã de Marizelha. Por falta de levantamentos, Marizelha diz que é possível que existam outros casos nas demais comunidades da Ilha de Maré.

neilma lopesNeilma Lopes tinha 50 anos e morreu vítima de um câncer no intestino. | Foto: Arquivo Pessoal

Segundo a líder comunitária, a Ilha convive com um “projeto de morte”. “Esse projeto chega e mais uma vez continua nos matando, nos chicoteando, nos submetendo. Não é à toa que as políticas públicas de saúde, lazer e infraestrutura não chegam nas comunidades”.

Um estudo realizado em 2018 pela pesquisadora e geógrafa Jussara Rêgo apontou registros de vazamento de poluentes químicos, acidentes e explosões na região do Porto de Aratu, localizado nas redondezas da comunidade de Bananeiras, na Ilha de Maré.

De 2004 até 2017, foram seis casos, incluindo uma morte. Quando se leva em consideração todos os principais acidentes ocorridos na Baía de Todos-os-Santos, o número chega a 31.

O mais recente aconteceu em 2021, quando uma explosão atingiu um navio gaseiro no Porto de Aratu, próximo a uma região onde está instalada a comunidade quilombola Boca do Rio, território que fica em frente à Ilha de Maré. Segundo a Capitania dos Portos da Bahia, não houve feridos.

“A gente fala, denuncia, mas não temos provas. O Ministério Público, quando vamos fazer essas denúncias, esperamos que ele obrigue as empresas a financiar pesquisas para que a gente tenha provas. A gente quer saber, temos direito de saber se o capital está nos matando ou não”, completa a liderança comunitária Marizelha Lopes.

A Ilha de Maré é formada por 11 comunidades remanescentes e tem uma população composta por 93% de negros, sendo considerado o bairro mais negro de Salvador, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Para Eliete Paraguassu, marisqueira, quilombola e ativista no movimento de Pescadores e Pescadoras, a tentativa de destruição da Ilha de Maré é resultado de um processo histórico de racismo ambiental, que viola os espaços ocupados pelos povos tradicionais, destrói a natureza e retira a garantia de direitos básicos, como saneamento, alimentação e saúde.

“Acreditamos que esse espaço não é só de trabalho, é um espaço sagrado, herdado pelos nossos e que alimenta a nação brasileira”, diz Eliete.

“É sobre uma qualidade de vida diferenciada, é sobre não ter patrão, cuidar da natureza e ter essa relação profunda com os ventos, com as marés, com as matas. É sobre uma questão ancestral”, completa a ativista.

eliete paraguassu site“O nosso território é o nosso corpo e em nome do capital a gente não vai silenciar”, diz Eliete Paraguassu. | Foto: Eduardo Machado

Falta de apuração

De acordo com moradores, mesmo com sucessivas denúncias da situação na Ilha de Maré, os poderes públicos não têm dado atenção devida às denúncias e pedidos de apuração da degradação ambiental no território.

Em 2011, o Ministério Público da Bahia (MP-BA) chegou a criar uma comissão para proteger a Baía de Todos os Santos e as comunidades que vivem no território. Segundo o MP-BA, à época, a comissão tinha como objetivo “avaliar e discutir os empreendimentos que serão construídos na Baía”, além de garantir as condições de subsistência das comunidades pesqueiras e tradicionais que vivem na região.

Após uma explosão no Porto de Aratu, em 2013, o Movimento dos Pescadores e Pescadoras da Bahia divulgou um manifesto para denunciar o impacto do desastre na saúde dos moradores na Ilha de Maré e pediu a apuração das consequências socioambientais da explosão, do monitoramento das atividades no Porto de Aratu, além de uma urgente avaliação da contaminação de toda a população da Ilha de Maré.

De lá pra cá, moradores criticam a atuação dos órgãos e dizem que as ações não têm sido suficientes para garantir a proteção e subsistência das comunidades.

“O que há de mais urgente é pensar em implementar políticas que garanta e melhore a qualidade de vida do nosso povo. O que a gente mais cobra é que deixem a gente ter esse direito de viver bem”, completa Marizelha Lopes.

A Alma Preta Jornalismo procurou o Ministério Público da Bahia (MP-BA) para comentar sobre as apurações feitas pelo órgão e os pedidos de denúncia dos moradores. A reportagem também questionou a situação do monitoramento ambiental na região e se há previsão de projetos que visam apurar possíveis violações nas comunidades.

O Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos, responsável pelo monitoramento hídrico na Baía de Todos-os-Santos, também foi procurado. 

Até a publicação desta reportagem não houve retorno dos questionamentos feitos ao Ministério Público da Bahia e ao Insituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos. Caso respondam, o texto será atualizado.

Leia também: O que é racismo ambiental e como contribui para a retirada de direitos no Brasil

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