O silenciamento, o ônus e a saudade da família após o assassinato da ex-vereadora; “Tem gente que hoje fala ‘Marielle vive, Marielle presente’ e eu tenho vontade de perguntar: para quem? Porque para a gente [família], infelizmente, ela morreu”
Texto / Simone Freire, Pedro Borges e Solon Neto
Foto / Solon Neto
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O dia a dia nunca é o mesmo quando alguém vai embora, ainda mais se a despedida é pra sempre. Na vida da família Franco, Luyara, Anielle, Marinete e Antonio, as buscas por respostas após o assassinato da ex-vereadora e lutadora Marielle Franco (1979-2018) geram ainda mais interrogações.
A casa em que residem, na Zona Norte do Rio de Janeiro (RJ), é confortável e receptiva como qualquer outra de uma família negra na periferia. Mas em cada canto da residência há particularidades: são fotografias, desenhos, molduras, entre outros presentes de homenagens à Marielle. Uma forma de suprir a falta da filha, irmã e mãe tirada à força da família em 14 de março de 2018.
E é neste mundo particular da advogada Marinete, mãe; do aposentado Antonio, pai; da professora Anielle, irmã; e da estudante Luyara, filha; que estão as melhores lembranças da ex-vereadora, que se tornou mundialmente conhecida por ser um ícone na defesa dos direitos humanos no Brasil, principalmente, de mulheres negras e moradoras de favelas e periferias.
“Eu gero, crio, formo; depois ela [Marielle] gera e cria a filha. Então ninguém mais do que a gente para contar, levar essa memória dignamente como ela merece, acreditar nos projetos que Marielle tinha, projeto de servir o outro, projeto que ela sempre teve mesmo antes de chegar naquele parlamento”, afirma Marinete.
Marinete, mãe de Marielle, recebe homanagem à filha no Teatro TUCA, em São Paulo. Foto: Mídia Ninja.
Chegar nos espaços mostrando sua força é uma das melhores lembranças que a mãe tem da filha. Ela conta, com orgulho, da trajetória da ex-vereadora e com satisfação relata sobre os mais de 46 mil votos que elegeram Marielle para a Câmara Municipal do Rio de Janeiro em 2016. No entanto, lamenta, por diversas questões, incluindo a questão da segurança da família, o fato de não poder sequer viver o luto da filha.
“Toda aquela Marielle que as pessoas veem hoje, daquela mulher que chega no poder, com aquela propriedade toda com que ela chegou, as pessoas esquecem um pouco de tudo o que tem por detrás disso, de uma família, de uma criação e formação”, desabafa.
Quem cuida dessa dor?
“A nossa mão, alguém vai querer segurar”? Esta é uma das perguntas feitas por Marinete, enquanto recebe a equipe do Alma Preta, em sua casa, às vésperas de completar um ano da morte de sua filha.
A todos na sala, entre os olhares, mais interrogações e dúvidas surgem em silêncio já que, até hoje, não há respostas conclusivas das investigações da Polícia Federal no caso.
Na madrugada desta terça-feira (12), o policial Ronnie Lessa e o ex-militar Élcio Vieira de Queiroz foram presos pela Polícia Civil do Rio de Janeiro acusados pelo crime que matou Marielle e seu motorista Anderson Gomes. Segundo Anielle, a notícia acalenta a família, mas que ainda é pouco.
“Não é comemorar, tem que chegar no mandante. A gente sabe que foi um crime de ódio, mas foi político também. Realmente não dá para ficar durante tanto tempo sem nem ter pista. Eles tinham que falar com alguém.”, disse.
Mas a rotina de quem fica precisa seguir em frente. Mesmo aposentada, Marinete ainda trabalha para completar a renda em casa e espera na fila do SUS para poder operar as varizes. “É muito bonitinho ficar aqui batendo palma enquanto estamos falando ‘ah, estamos com vocês’. Mas ninguém vem aqui falar nada. Até que ponto eu estou segurando a sua mão? E aí, quando eu começo a falar, eu sou a preta raivosa porque é o que a gente é considerada: a favelada, preta, louca”, critica Anielle.
Entre todos da família, Antonio acredita que Luyara, hoje com 19 anos, foi e é a mais abalada pela morte da mãe. “O fato da Luyara ficar quietinha é porque de nós quatro, ela é a mais fragilizada. Ela ainda não conseguiu absorver essa pancada que nós levamos. Eu não sei se em algum tempo ela vai conseguir, porque é muito difícil”, expõe.
Foto: Mídia Ninja
Do Rio, para o Brasil e para o mundo
Marielle realmente alcançou patamares mundiais. Já foi citada pela atriz estadunidense Viola Davis, pela escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, por diversos outros intelectuais e políticos dentro e fora do país. Isso sem contar as centenas de homenagens realizadas em vários locais e instituições pelo mundo.
“Eu não tinha a percepção do quanto Marielle influenciou [as pessoas] para ser homenageada a nível mundial. A mãe dela, por exemplo, já esteve com o papa, já esteve na Espanha, isso tudo como reconhecimento de Marielle pelo que ela fez, fazia, falava”, relata o pai. Apesar de considerar importante todas as homenagens à filha, Antonio também lamenta que elas não possam sanar o vazio que sente após a trágica partida da filha.
Para a família, lidar com tantas homenagens, embora seja importante, também transforma bastante uma rotina familiar. Trabalhando 40 horas semanais como professora e no Instituto Marielle Franco, Anielle, por exemplo, se vê diversas vezes impedida de participar de atividades.
“A gente vê onde o trabalho dela chegou porque para a gente vai ser sempre a mãe, a filha, a irmã. Eu estive em alguns lugares recebendo homenagens só que, ao mesmo tempo, nós temos a nossa realidade. Não dá para você ficar viajando e faltando no emprego. Ela é muito grande e virou muito maior do que a gente esperava. Não tem como controlar”, diz Anielle.
Marielle é grande, mas é preciso ter respeito
Comércio. É assim que Anielle resume o que acredita que o nome e a trajetória da irmã se transformaram para algumas pessoas que, por exemplo, estampam camisetas e demais acessórios com seu rosto, sem nem ao menos pedir autorização para a família.
“Tem gente que hoje fala ‘Marielle vive, Marielle presente’ e eu tenho vontade de perguntar: para quem? Porque para a gente [família], infelizmente, ela morreu. Agora para outras pessoas, ela continua viva porque é um uso e um aproveitamento que a gente não tem como controlar hoje em dia. Só que as pessoas não sabem ou fingem não saber que por trás tem uma família”, questiona. “Vamos falar sobre quem matou Marielle? Quem mandou matar? Vamos! Agora, comercializar isso já é um pouco demais”, completa.
Já para o pai, Antonio, a realidade é que a família ficou com o ônus do assassinato enquanto outras pessoas ficaram com o bônus. Para ele, há um descaso com a mãe de Marielle, e com a família de modo geral, o que mostra que as pessoas mais próximas à ex-vereadora estão sendo relegadas “ao segundo plano por alguns segmentos e algumas pessoas”.
“Estão usufruindo, lucrando, ganhando, viajando, participando de eventos, e nós perdemos”, diz enfático. “O interesse é basicamente se aproveitar do sangue que Marielle derramou. Não porque ela quis, porque fizeram isso com ela covardemente”, diz.
As últimas eleições também não foram nada fáceis para a família Franco. Se por um lado havia a expectativa de Marielle consolidar ainda mais sua carreira política, por outro, o aproveitamento de sua imagem tomou patamares irreversíveis para a família.
“Eu sei de que lado eu estou”
“Ninguém vai viver da fama da Marielle para sempre. A gente também não quer isso. E a gente também não vai permitir que outras pessoas façam isso. A gente hoje experimentou na própria pele a ingratidão das pessoas, o oportunismo das pessoas, a virada das costas das pessoas”, relata Anielle.
Apesar da enorme repercussão, a família Franco expõe que o nome e a memória de Marielle Franco ainda são rodeadas de informações truncadas, difamações, descaso e silenciamento. Para eles, o que se vê hoje não é totalmente o que Marielle viveu e pregava.
Então, para buscar sanar esta questão, e proteger a memória e o legado, eles criaram o Instituto Marielle Franco e deram sequência ao projeto já encaminhado pela ex-vereadora e sua irmã, o “Papo Franco”, uma ação de formação política através da memória da Marielle.
“Que não é formação política parlamentar e partidária. É a política que a gente faz no dia a dia. A gente sempre fez política. A gente enquanto adolescente na Maré fazia política, então é trabalhar, principalmente para as jovens negras de favela”, explica Anielle.
Atualmente, além disso, o Instituto busca se estruturar, fazer parcerias e, futuramente, anseia fazer um acervo da memória da ex-vereadora para mostrar que Marielle foi muito mais do que uma parlamentar lutadora que foi assassinada, ela foi uma mãe, uma filha, uma irmã, uma madrinha, uma mulher negra de luta. “Ela falava para mim: “Eu sei de que lado eu estou”. E a gente hoje, tentando retomar, dar conta, pegar um pouco disso, a gente sabe de que lado a gente está. Então o Instituto é para isso”, ressalta Anielle.
A luta continua
Marielle, na ponta direita, comemorando o Dia das Mães com as mulheres da família: Anielle, Mariah (afilhada), Luyara e Marinete. Foto: Arquivo pessoal.
“Uma coisa eu falo, se a gente não tivesse o sangue da Marielle, a gente já teria parado de lutar há muito tempo. Só que a gente tem sangue de Marielle, e aí as pessoas não entendem o que é ancestralidade”, frisa Anielle.
E é nesta força que as mulheres da família Franco criam seus laços, suas redes de afeto e buscam amenizar a ausência de Marielle. Uma tarefa que Marinete, sua mãe, garante não ser nada fácil. Segundo ela, em todos os dias é preciso se renovar, se reinventar, lidar com a fragilidade física e psicológica, se reestruturar enquanto família. “Você saber que tem mais um dia para sobreviver e saber que a Marielle não vai voltar”, conta.
Ela resgata a luta histórica da família, de mulheres que não se abalaram e que, hoje, conseguiram dar a volta por cima. “Eu trago da minha bisavó, avó, mãe e a Marielle também traz isso para a gente. Todo esse processo, de uma mulher de superação, de uma mulher que chegou para dar o recado dela, em todos os sentidos, que a gente está vivendo hoje. É continuar com essa dor. Essa dor não vai passar nunca, eu tenho que ter fé para continuar lutando pelo lado certo e a gente vai continuar desse lado também, junto de Marielle”, afirma.