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Já imaginou perder sua memória?

24 de novembro de 2015

Texto: Miriam Alves / Imagem: Vinícius de Araújo

Não saber de onde veio; quem ou que deixou para trás; qual era o seu nome; como era o rosto de sua mãe e de seus familiares, das músicas que cantava para velar seu sono ou dizer sobre seus antepassados; a primeira cicatriz e o afago que recebeu da pessoa amada para lhe acalmar; do primeiro beijo; os primeiros sabores e tudo aquilo que faz você ser quem é hoje. Então, já imaginou?

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Provavelmente a primeira pergunta que se faria seria: QUEM SOU EU?

Sabe por quê? Porque a memória é a nossa IDENTIDADE. Somos fruto de uma construção histórica, social e cultural que nos define. Ninguém nasce sendo João ou Maria, assim como não há um único modo de ser João ou Maria. Os dois não necessariamente precisam ser caçadores de bruxas ou gostar de doces. Maria pode gostar de meninas, assim como João pode gostar de rapazes; João pode ser uma mulher trans e Maria um homem trans; ou os dois podem ser um casal. Maria pode gostar de rock e João de pagode; Maria pode ter 60 anos e João pode ser um adolescente.

Independente da orientação sexual, gostos ou faixa etária, cada um de nós é um ser único. Já imaginou pedir para uma mãe que acabara de velar seu filho fazer outro idêntico? Então, sabemos que uma vida não é igual à outra. Não somos um produto comprado no supermercado, com código de barras, que se estragou ou veio com defeito e que você pode trocar, assim como nosso encéfalo não foi formatado para pensarmos uns iguais aos outros. Aprendemos constantemente coisas novas e, a partir das nossas relações sociais, vamos construindo e desconstruindo nossos conceitos. Isso é o que faz cada ser um indivíduo com subjetividade própria.

Sem identidade não somos ninguém. É como se fizesse um reset da nossa cabeça, tornando-nos apenas uma casca vazia, sujeita a uma chuva de idéias produzidas pelo senso comum, que não diz nada sobre você, suas vivências ou ancestralidade. Informações que entram como uma enxurrada de lama tóxica, aniquilando qualquer vestígio de humanidade que possa existir em você; que assim o mantém manipulável e dócil.

Você já imaginou o quanto você é manipulável?

Talvez não, mas o tempo todo você reproduz pensamentos do senso comum. Talvez você pense que somos todos iguais, que temos as mesmas oportunidades, que é um absurdo uma mulher abortar, que bandido bom é bandido morto, que existe racismo reverso, que cotas é uma política pra inferiorizar os negros, ou que se uma vaca cair em cima da cabeça de um chinês é culpa da Dilma!

Como Paulo Freire diria: “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor”. Mas você não se importa com isso, por que Paulo Freire é um comunista, que quer implantar a ditadura venezuelana no Brasil. Talvez você pense em muitas coisas que não são reais, talvez até acredite no coelhinho da páscoa. Se sim, é porque faltou um bom livro de História na sua vida, pois quem conhece o passado, dificilmente “paga” de louco.

Informações desconexas vão lhe dizer o tempo todo que você tem que ser duas vezes melhor, caso você queira ser alguém na vida. Provavelmente você tentará ser duas vezes melhor, pois faz parte de uma lógica competitiva e individualista, pois o problema não é seu se as pessoas não atingem o mesmo patamar que você. Você se esquece, ou nega a todo o momento, que faz parte de um conjunto de indivíduos que não tem as mesmas oportunidades que você, quaisquer que sejam elas, de ter uma casa própria, um carro na garagem, uma família estruturada, ou uma educação de qualidade, fatores que fazem com que você chegue sempre em primeiro lugar.

Esse conjunto de indivíduos que você nega o tempo todo faz parte de uma sociedade, e na sociedade, cada um tem sua função social. Muitas vezes as pessoas não escolhem a função social que vão cumprir, pois isso depende em grande medida da origem social ou classe econômica a que pertence. Se você não possui um capital econômico, cultural e social, dificilmente receberá titulo de Doutor. A maioria desses sujeitos que ocupam as camadas subalternizadas foram historicamente negligenciados pelas políticas de Estado, principalmente no que se refere à garantia de seus direitos. Por meio dos estigmas que foram criados, a única política de Estado que funcionou para esse grupo de indivíduos é a repressão.

Você não vê muitos médicos, engenheiro, dentistas, advogados ou professes universitários negros. Por quê? Será que as teorias eugenistas do inicio do século XX te convenceram que somos menos capazes do que os brancos.

Você nunca reparou que os negros não ocupam os cargos de representatividade? Se nunca, pergunto: você tem problemas!?!?

Com certeza você está inserido em uma lógica cosmológica chamada de RACISMO INSTITUCIONAL. O racismo é aquilo que a sociedade pratica o tempo todo, mas ninguém reconhece. É aquilo que nos puxa para baixo, impedindo de concorrer igualmente com alguém socialmente reconhecido enquanto branco, seja para uma vaga no ensino superior ou no mercado de trabalho.

Se o racismo impede de nos mantermos em igualdade, sempre nos relegando a cargos de limpeza, são necessárias políticas de caráter discriminatórias, ou seja, de ações afirmativas. As políticas diferenciadas servem para que alguém que não tem oportunidade sócio-cultural de atingir o mesmo patamar que você, concorra de forma igual a uma vaga, de forma EQUITATIVA.

Se eu não enxergo meus privilégios sobre o outro dificilmente irei deixar que ele ocupe os mesmos cargos que eu, ou que sente ao meu lado na sala de aula da universidade. Se eu for racista, eu vou continuar afirmado que somos iguais, por que é mais fácil negar as diferenças do que admitir que elas existam. A questão é que se houver um pingo de alteridade para se colocar no lugar do outro e enxergá-lo enquanto parte da mesma humanidade que você, você então será capaz de abrir mão de seus privilégios! Mas o que ocorre não é isso. É mais fácil negar o outro, apagando seu passado, ou afirmando que cotas raciais são um mecanismo injusto.

Admitir os privilégios é admitir que em alguma medida você também foi racista, porque se omitiu diante da exclusão de uma serie de indivíduos, em sua grande maioria negros e indígenas. Não por menos, esses grupos étnicos vêm sendo exterminados, pois desde a colonização, eles foram obrigados a esquecer sua origem, identidade e cultura. Foram incorporados à linguagem e à cultura do colonizador, pois assim era mais fácil de mantê-los domesticados e subalternizados. Sendo assim, o modo mais eficaz de manter a atual servidão moderna, é por meio da aculturação e da alienação cultural.

Negação que se mantém graças à criação de um modelo de identidade nacional no início do século XX, com a dita república “democrática”, pois era necessário apagar qualquer traço da memória dos ditos “cidadãos livres”. O mito da igualdade racial de Gilberto Freyre é refletido nos discurso: somos todos humanos, ou somos todos iguais. Ideal que também apaga a nossa identidade e a possibilidade de enxergarmos que as causas dos conflitos e desigualdades sociais no Brasil são de origem racial, situações que permitem a mais perversa forma de exclusão, o racismo velado!

Todos esses fatores nos levam ao nosso auto-extermínio, pois o que pode querer um sujeito sem memória?

Você até pode não saber, mais o capitalismo sabe! De acordo com Freud, o homem é um “ser de desejos”. Deste modo, se o individuo faz parte de um grupo sócio-cultural especifico, com memória resguardada, o desejo humano se traduz na criação de mecanismos que garantam sua própria subsistência e a do coletivo de forma sustentável. Já o individuo sem identidade acatará aquilo que lhe será imposto enquanto necessidade. Em um mundo cada vez mais midiático e consumista, esse desejo se traduzirá em coisas supérfluas. Os exemplos são inúmeros: compras no shopping, o carro do ano, a loira que você vê na propaganda de cerveja, afinal, sujeitos vazios são gananciosos e individualistas.

Esse sujeito dificilmente conseguirá manter-se em uma relação afetiva estável, pois como o objeto de seu desejo é manipulável, as coisas e as pessoas se tornam obsoletas e descartáveis. Será mais cômodo não enxergar o passado, pois isso recuperaria sua essência e o faria entender que há uma relação maior do que a que ele acredita entre o cosmo e o seu umbigo. Seguirá em frente, sem olhar pra trás, passando em cima de tudo e de todos em nome do progresso.

A vida então se torna banal, a ponto de você apontar uma arma para cabeça de seu próprio irmão, pois agora usa as fardas do opressor, pensa como o opressor e esteticamente quer ser o opressor. O indivíduo aceita se embranquecer e logo vomita as mesmas palavras do opressor (pois não existe neutralidade nas nossas ações, tudo é parte de uma construção histórica), como um papagaio que apenas reproduz, nos seus iguais, por que uma alma vazia torna-se o espelho para o diabo. Diria que não existe diferença entre Hitler e aquele que prega a igualdade sobre a diversidade. O discurso é o mesmo, pois o FACISMO se mantém na ausência de IDENTIDADE.

*Miriam Alves, graduanda de Pedagogia, pela FaE-UFMG, participa do Núcleo de Estudos Sobre Educação de Jovens e Adultos, através do Programa Fórum METRO EJA, educadora social,  membra do coletivo de mulheres negras, Bloco das Pretas.

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