Pouco mais de 600 dias. Esse foi o tempo que Tulio de Jesus, de 25 anos, ficou preso após ser acusado por um crime que ele diz não ter cometido. O jovem foi absolvido por reconhecimento feito de maneira ilegal.
“Nos primeiros dias, foram muitos sentimentos: dor, raiva. Em uma situação dessa, não tem como a pessoa ficar com a sanidade mental boa, mas eu tinha fé em Deus que eu não ia pagar por uma coisa que eu não fiz, não era justo”, relata o jovem, em entrevista à Alma Preta Jornalismo.
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Em agosto de 2021, Tulio foi acusado de roubar e matar a gerente de um bar, que também funcionava como uma casa de prostituição, na cidade de Pintadas, no centro norte da Bahia.
Com a ajuda dos familiares, defensores públicos e advogados voluntários, foi possível identificar que Tulio estava em outro local no horário do crime, que as características físicas descritas pelas testemunhas não batiam com o seu perfil e que a prisão foi baseada em reconhecimento irregular.
Mesmo com os indícios de possíveis irregularidades, o caso foi levado à júri popular e no dia 15 de maio Tulio foi absolvido pelos crimes de homicídio e roubo. O jovem recebeu liberdade depois de um ano e nove meses de prisão.
Apesar de ter de volta a sua liberdade, o jovem conta que as marcas deixadas pelo ocorrido o impedem de voltar à sua cidade natal, Pintadas, por medo de ameaças e julgamentos.
“Não posso voltar mais porque é um lugar muito hostil para mim. A sociedade também não vai mais me olhar da mesma forma. As pessoas não me tratam mais do jeito que me tratavam antes, sempre tem aquele olhar de desconfiança”, desabafa.
Entenda o caso
O crime no qual Tulio de Jesus foi acusado de ter cometido aconteceu no dia 17 de agosto de 2021, quando a gerente de um estabelecimento foi morta a tiros por dois homens. Ao chegar no local, os suspeitos mandaram as funcionárias deitarem no chão, atiraram na vítima e depois fugiram.
Tulio foi preso em flagrante um dia após o crime, dentro de casa, após ser apontado como o principal suspeito. Ele foi acusado por homicídio e roubo, já que uma das testemunhas foi roubada no local. No entanto, durante o processo, não foram apresentados indícios que o ligassem ao crime, como os materiais roubados, a arma do crime e nem impressões digitais.
Além disso, o jovem foi submetido a um reconhecimento ilegal ao ser colocado sozinho e algemado na delegacia para as testemunhas o reconhecerem como possível autor do crime. Segundo artigo 266 do Código Penal, o reconhecimento pessoal deve seguir alguns critérios como: colocar o/a possível autor/a do crime ao lado de outras pessoas com características semelhantes e a descrição prévia do/a acusado/a, por exemplo.
Tulio relembra que no dia seguinte ao crime teve a casa invadida por policiais que o levaram para a delegacia com argumento de que ele teria que responder a algumas perguntas. No mesmo dia, ele foi preso.
“Me levaram até a delegacia, me botaram algemado e disseram que eu iria fazer um reconhecimento sobre um crime que tinha acontecido. Foi muito rápido. Quando eu vi, já estava assinando papel de prisão”, recorda.
Testemunha agredida para apontar jovem como autor do crime
Em fevereiro deste ano, a Alma Preta revelou que uma testemunha, que disse conhecer Tulio, denunciou que teria sido agredida por policiais para apontá-lo como autor do crime. Familiares também informaram que Tulio era alvo de perseguição policial na cidade.
“Qualquer local que eu estivesse era abordagem de rotina. Me acusavam de traficar drogas, mas eles não provam porque nunca me pegaram com nada”, relata Tulio.
Apesar das inconsistências no processo, o Ministério Público da Bahia (MP-BA) manteve a denúncia contra Tulio com base no depoimento de algumas testemunhas. No processo, a promotora Laise Carneiro, da 3ª promotoria de Justiça de Ipirá, argumentou que o reconhecimento pessoal, quando a testemunha já conhece o autor, é “dispensável”.
“Portanto, se por um lado o reconhecimento fotográfico e pessoal sem adoção do procedimento legal gera a invalidade desse meio de prova, por outro não há nulidade decorrente da falha procedimental quando existe o prévio conhecimento entre os sujeitos (vítima ou testemunha e autor)”, pontuou.
Ainda de acordo com a promotora, as imagens das câmeras de segurança que registraram Tulio em região diferente ao local do crime não são suficientes para tirá-lo da cena do crime, que, segundo ela, ocorreu após às 20h.
Carneiro destaca que, do local onde o jovem foi identificado, até a região do crime levaria menos de dez minutos a pé ou menos de três minutos em veículo de locomoção. “Desse modo, as certezas da Defesa, em verdade, são leituras monoculares dos fatos, ou melhor dizendo, criações dos horários dos fatos”, disse em um trecho do processo.
No dia do júri, 15 de maio, o MP-BA solicitou a absolvição de Tulio por “insuficiência de provas para a condenação”, conforme escrito em um trecho da ata do júri, ao qual a Alma Preta teve acesso.
A reportagem solicitou um posicionamento do MP-BA em relação à mudança para o pedido de absolvição e quais ações o órgão adota em casos de prisões ilegais, mas não obteve retorno até a publicação deste caso. Caso o órgão se manifeste, a reportagem será atualizada.
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Reparação
Segundo a advogada de defesa de Tulio, Vitória Abreu, o próximo passo será a abertura de uma ação de indenização contra o Estado. “É o mínimo que podemos fazer para tentar reparar todas as consequências que essa prisão vai gerar para Túlio. O estigma infelizmente permanecerá por muito tempo […] O prejuízo que isso causou e ainda vai causar pra ele e pra família precisam ser ao menos minimizados”, diz Vitória, que atuou, junto com uma equipe de advogados, de forma voluntária no caso.
Tulio diz se sentir vítima de injustiça e espera uma reparação dos impactos que a prisão causou na sua vida. “A promotoria me acusou e me difamou também. Me colocou como acusado e quando chegou lá [no júri], pediu a minha absolvição como se aquilo fosse apagar tudo o que eu passei”, desabafa.
“Se Vitória (advogada), a equipe de Caio (advogado) e a sociedade não interviessem por mim, eu poderia estar preso até hoje, seria um condenado. Eu acho que se isso era possível acontecer, eu também acho que será possível alguém pagar por isso, seja o Estado ou o governo”.