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Jovens falam sobre episódio de racismo em loja de São Paulo

19 de abril de 2018

Duas jovens negras foram acusadas de roubar um sabonete do banheiro da Loja Choix, localizada no Jardim Europa, em São Paulo. Durante a discussão, ouviram que a loja não poderia ser racista, porque era gay

Texto / Thalyta Martina
Imagem / Thalyta Martina

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Um funcionário da Loja Choix, localizada no Jardim Europa, acusou duas jovens negras de roubarem um sabonete usado do banheiro em 21 de março, durante evento de lançamento da nova coleção da marca Casasola.

Beatriz Venâncio (18) e Carolina de Jesus (17) são duas das jovens e estavam no evento com mais alguns amigos negros e brancos. Elas foram abordadas por um funcionário que lhes comunicou que um sabonete do banheiro havia sumido e alguém as havia apontado como autoras do ato.

“Eu não vi, mas viram e falaram que vocês roubaram o sabonete do banheiro e eu acredito”, disse o funcionário, segundo relato das jovens. Ainda de acordo com elas, o funcionário afirmou que não as queria lá. “Havia várias pessoas olhando sermos acusadas de roubar um sabonete. Nesse momento, eu me senti profundamente constrangida”, conta Carolina, sobre como se sentiu na hora.

Suzane Jardim, historiadora que pesquisa criminologia e racismo, explica que a palavra “bandido” tem caráter sociorracial no Brasil. “Quando a gente pensa no crime comum e trivial, a gente pensa em pessoas negras, que são associadas à criminalidade. A gente cresceu e vive em um país que construiu a figura do negro como sendo mais propenso ao crime por suas características.”, explica.

O caso

O Alma Preta conversou em 6 de abril com Beatriz e Carolina na Praça Roosevelt, na região central de São Paulo, famosa pela grande reunião de jovens. Em meio a skates, pizzas, cachorros e cigarros, elas falaram sobre o caso e como estava sendo lidar com toda a situação.

Beatriz recebeu o convite do evento poucos dias antes por meio de um amigo da rede da qual faz parte e chama de “rolê de vernissage”, que é o evento de pré-lançamento de uma coleção e de uma exposição.

De acordo com as jovens, os amigos encontraram-se no metrô Cidade Jardins às 18h naquele dia e foram ao evento, onde havia poucas pessoas – todas brancas.

Segundo Carolina, eles foram recebidos por um funcionário, que lhes deu boas vindas e os convidou a conhecerem a loja, inclusive o piso superior, onde estava instalado o banheiro. Ainda de acordo com a jovem, os fotógrafos tiraram fotos e ninguém, em momento algum, falou que se tratava de um evento fechado, com lista, e exclusivo para convidados.

Já do lado de fora, uma pessoa do grupo estava fumando tabaco enrolado na frente ao estacionamento da loja, do lado do estabelecimento. Carolina falou que um funcionário abordou o grupo falando que estava sentindo cheiro de maconha e que os vizinhos estavam reclamando. Além disso, o profissional lhes disse, de modo ríspido, que elas estavam na frente do estacionamento obstruindo a saída de carros. Os jovens explicaram que não era maconha e saíram.

Mais tarde, do lado de fora de novo, as jovens foram abordadas por outro funcionário, que falou sobre o sabonete.

Após Carolina protestar, ao apontar a conduta como racismo, uma mulher veio gritando em direção às jovens: “Vocês estão acusando eles de racistas? Essa loja é gay! A minha família adotou dois negros! Eu tenho dois primos negros!” – as duas jovens reproduziram essa fala em uníssono na entrevista. Um vídeo postado nas redes sociais de Beatriz Venâncio mostra a discussão.

Quando questionadas se usaram o banheiro, elas foram enfáticas a respeito. “Não. Eu e Bia não usamos o banheiro”, afirmou Carolina.

Uma das moças brancas que estava com o grupo falou o tempo inteiro que ela havia usado o banheiro, mas Beatriz e Carolina informaram que em nenhum momento o funcionário olhou ou falou com ela.

Suzane Jardim diz estereótipos são usados de forma política em contexto social, o que faz grupos considerados subalternos pela classe dominante se manterem nessa linha. “O que acontece com o negro no pós-escravidão? Ele é a parte mais abjeta da sociedade. A gente tem todo o processo histórico conhecido: negros sendo expulsos dos grandes centros, vivendo na marginalidade e perdendo trabalho para imigrantes.”

Carolina de Jesus, uma das vítimas do episódio de racismo (Imagem: Thalyta Martina)

“Eu não aguento mais vocês!”

Quando Carolina falou que iria gravar para denunciar o episódio, a mulher pegou o celular e colocou na cara de Carolina e, para impedir a gravação, o celular da pessoa caiu.

Beatriz foi ao encontro da amiga para ajudar a conter a gravação. Esse foi o estopim, que culminou com Beatriz levando um mata-leão de um segurança. “Comecei a gritar para o segurança me soltar e consegui a separar as duas. Foi quando começaram a chamar a Bia de louca”, disse Carolina. “Louca é vocês, porque vieram brigar comigo por causa de um sabonete!”, gritava Beatriz. Segundo ela, quando estava no chão com a mulher, ela teve vários apagões, mas se lembra de ter gritado muitas vezes “Eu não aguento mais vocês!” A jovem explica a sua reação: “Foi uma coisa que já estava saturada já.”

Em nenhum momento, as jovens pensaram em chamar a polícia. “A gente sabe que se a polícia viesse, a gente era quem iria sofrer as consequências. A gente não pode confiar nessa ‘justiça’”, disse Carolina.

Deivison Nkosi, professor de Ciências Sociais e Humanas da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), integrante do Instituto Amma Psique e Negritude e do Grupo Kilombagem, diz que o aparato do Estado não olha os corpos branco e negro da mesma forma. O corpo negro é selvagem, de um ser que talvez nem humano seja, que pode sair do controle e que está sempre associado à suspeição até que se prove o contrário.

Depois do ocorrido, as jovens foram embora. No dia seguinte, elas viram a nota de repúdio, na qual eram chamadas de criminosas, invasoras e que haviam chamado a loja de racista para encobertar seus atos.

O pedido de desculpas

Beatriz Venâncio postou nas redes sociais relatos doloridos do ocorrido. “Eu já passei por várias cenas desse tipo, sou preta e da quebrada, e estou ‘acostumada’ com esse tipo de tratamento em qualquer lugar onde eu colar. Mas ontem [21 de março], eu desacreditei ao ouvir aquilo. Por que eu pegaria (…) o sabonete do banheiro deles? Eu nem cheguei perto do banheiro deles e nem o usei”, diz, uma das publicações.

A loja Choix registrou Boletim de Ocorrência no 15º Distrito Policial de São Paulo por agressão e calúnia, além de ter publicado posts nas redes sociais nos quais afirmou que repudiava “toda e qualquer forma de discriminação” – ainda assim, chamou as jovens de criminosas e invasoras nas publicações.

Segundo o boletim, as agressões e calúnias ocorreram quando foi solicitado ao grupo para liberar passagem dos veículos. Depois do post de Beatriz Venâncio e do questionamento do site BuzzFeed Brasil, a loja mudou de discurso e em nota disse que as jovens “não tiveram comportamento respeitoso recíproco” e, por isso, “foram reativos”. Além disso, o funcionário que abordou as jovens foi demitido.

Para Carolina, a equipe da loja não esperava lidar com a repercussão do caso. “Foi quando eles viram o que estava acontecendo e postaram uma nota de ‘esclarecimento’, pedindo desculpas. Mas em nenhum momento entraram em contato com a gente.”

Beatriz Venâncio, uma das vítimas de racismo na vernissage da Choix (Imagem: Produção Preta)

 “Eles olharam na nossa cara e falaram que a gente roubou”

O processo de formação de estereótipos é uma forma humana de lidar com o desconhecido, afirma a historiadora Suzane Jardim. A questão dos estereótipos pode ser manipulada com vieses políticos, além de construídos social e relacionalmente, o que torna impossível desvincular episódios como esse do processo histórico ao qual negros foram submetidos.

“O discurso que forma estereótipos mostra pessoas negras como responsáveis por esse lugar e, se ele está ali, é por suas características: preguiça, falta de vontade, certa malandragem típica, dificuldade de seguir leis, prazer em cometer crimes, vontade de viver no submundo e esse tipo de coisa”, descreve.

A presença da pessoa negra causa estranheza em espaços considerados de elite ou onde tradicionalmente há mais pessoas brancas. “Não me surpreende que, quando um corpo negro aparece em um espaço costumeiramente identificado como de elite, ele seja identificado como bandido e não como um estudante ou um trabalhador comum”, explica Jardim.

Deivison Nkosi afirma que o racismo não consiste apenas em chamar alguém de “macaco” ou achar que o negro é inferior, mas colocá-lo em alguns locais de subalternidade. “Quando você tem um espaço valorizado, imagina-se que ali não é o lugar do negro: ou ele está para servir, ou está no lugar errado. Há um estranhamento com um corpo negro, que está ‘fora do lugar’, e desperta desconfiança porque, de alguma forma, não se espera que ele esteja ali”, explica.

Medidas judiciais

Quando questionadas se iriam denunciar a loja por racismo, as jovens informaram que estão conversando com suas advogadas para ver qual a melhor medida cabível na lei e reclamam que a justiça não vê o episódio como racismo por causa do caráter velado. “A justiça vê como racismo só quando chama de macaco e joga a banana’”, disse Beatriz.

No entanto, uma operadora do direito, que nos concedeu entrevista sob condição de anonimato, explicou que cabe processo por injúria racial ou racismo. A lei nº 7.716/1989, que criminaliza o racismo, prevê, no artigo 5º, ser crime recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador. A pena é de reclusão de um a três anos. Segundo ela, este tipo penal torna ilícita qualquer recusa no atendimento de clientes por serem negros.

Deivison explica que esse ato se configura como racismo, porque ele é parte de processo sistemático, que a toda hora com todos os negros do Brasil e fora do país. “Estamos há 130 com a escravidão abolida. O imaginário e as formas de pensar e agir permanecem de forma atualizada na nossa sociedade, fazendo vítimas simbólicas e concretas. É esse imaginário que alimenta o dedo do policial que aperta o gatilho na madrugada, no momento de escolher quem será vítima da chacina e quem não será”, disse.

Posição da loja

Em nota, a loja “esclareceu” que todos os presentes ao evento acessaram o estabelecimento e foram atendidos de forma igual, sem distinção, porque sempre foi a postura da loja receber a todos de forma democrática e respeitosa.

Ainda, a loja afirma jamais ter qualquer atitude de preconceito e/ou discriminação frequentadores e, em determinado momento do evento, eles receberam reclamação dos condôminos do prédio onde a loja está localizada sobre um grupo que estava, naquele momento, atrapalhando a entrada dos carros. E a abordagem com eles teria sido feita educadamente.

“A partir desse momento, esse grupo de pessoas começou a ter algumas atitudes de animosidade e uma discussão se iniciou. O grupo ou qualquer indivíduo deste nunca foi acusado de nada, mas durante a discussão se referiram a um dos funcionários como racista.”, afirmou a equipe da loja na mesma nota.

A Choix afirmou também que uma cliente frequente da loja se indignou com a atitude e abordou o grupo para explicar que não havia racismo, mas foi agredida fisicamente por uma das mulheres do grupo em questão.

Esse fato culminou no chamado feito à polícia e um representante da loja sugeriu a todos que aguardassem, mas o grupo preferiu ir embora. “A cliente agredida foi até a delegacia e decidiu lavrar um boletim de ocorrência sobre a agressão sofrida.”, finalizou.

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