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Jupiara Castro, sinônimo de luta contra o genocídio e a desigualdade social

25 de outubro de 2017

Única mulher a participar da fundação do Núcleo de Consciência Negra da USP, Jupiara Castro é uma histórica militante contra o racismo, o genocídio e a desigualdade social no país. Para ela, a universidade em nada colabora na luta contra um dos principais problemas da sociedade brasileira, a morte sistemática de jovens negros.

Texto e imagem / Pedro Borges

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Jupiara Castro, mulher negra, 60 anos de idade, é uma das figuras mais importantes do movimento negro de São Paulo. Apaixonada pela vida, como ela própria diz, a única mulher a participar da fundação do Núcleo de Consciência Negra da USP, diz gostar de teatro, cinema, música, dança, e de receber os amigos em sua casa.

Nos últimos meses, Jupiara viu se concretizar uma luta que trava há décadas na Universidade de São Paulo (USP): a adoção da política de cotas. Agora, com a garantia de uma maior entrada de estudantes negros, Jupiara acredita que a universidade pode começar a fazer aquilo que pouco fez durante a sua história, lutar contra o genocídio e olhar para os problemas enfrentados pela comunidade negra, que representa 54% da população brasileira e 37% da cidade de São Paulo.

“A universidade não pensa em formas e não propõe nada à sociedade para acabar com o extermínio negro”, conta Jupiara.

Uma “infância espetacular”

Jupiara Castro, nascida em 1957 no Rio de Janeiro, diz ter uma recordação muito positiva da infância, das brincadeiras que tinha com os dois irmãos mais velhos e o caçula.

Ela lembra que, por conta da proximidade com os irmãos, todos homens, muito se envolveu com brincadeiras associadas ao gênero masculino, como andar de bicicleta, brincar de boxe, empinar pipa, e jogar bolinha de gude.

Com ela mesmo define, Jupiara Castro teve uma “infância espetacular”.

Filha do militar Claudinor Esteves de Castro e da dona de casa Rosa Gonçalves de Castro, Jupiara conta que foi criada em uma família “de classe média miserável”. Ela diz não ter sofrido por falta de infraestrutura, nem por conta dos estigmas que a pobreza carrega no Brasil, apesar de pertencer à classe trabalhadora.

“Eu sofri preconceito porque era preta”, conta.

Aos 7 anos de idade, um fato colaboraria para a mudança de percepção de Jupiara sobre o mundo, a discriminação racial.

Ainda criança, ela ensaiou por semanas para ser a “anjinha” da festa de Nossa Senhora Aparecida. Às vésperas da cerimônia, porém, o padre decidiu retirar Jupiara do posto, para dar lugar a uma menina branca.

Ela disse ter voltado arrasada para a sua casa, toda vestida de anjo. Jupiara contou aos pais o que aconteceu, que logo perceberam que se tratava de discriminação racial, e foram dialogar com o padre.

“Para a igreja na década de 60 não poderia existir anjinho preto”, conta Jupiara.

Depois disso, a família nunca mais frequentou a igreja. Naquele momento, o pai de Jupiara teve o cuidado de explicar para ela de que esse era um problema crônico e que a filha, infelizmente, passaria por outras situações de racismo ao longo da vida.

O caso marcou bastante a vida de Jupiara e influenciou nas suas decisões ainda na infância.

Antes de ter sido discriminada na igreja, a menina estudava na Escola Estadual Mário Penna da Rocha, espaço composto por uma maioria de crianças brancas. Aos 8 anos, depois do fato, pediu para os pais para estudar no Colégio Curupaiti, com maior presença de meninas e meninos negros. O pedido foi acatado pela família.

Jupiara tem bastante carinho das recordações do pai, Claudinor de Castro, um militar comunista, que faleceu quando ela era uma adolescente, aos 11 anos de idade, e que a ensinou alguns valores que a marcam até os dias de hoje. Para ele, as regras existem para ser quebradas, se bem justificadas. O que não pode ser violado, são os princípios: “Tive uma infância de estudar e discutir política na década de 1960 com o meu pai, fatos que me marcaram e serviram de orientação para o resto da minha vida”.

Contra o racismo no Rio e em São Paulo

A adolescência de Jupiara também foi muito boa. Ela lembra de ir aos bailes blacks dos anos 70, de ouvir os grandes compositores da música brasileira da época, como Jorge Ben, e apreciar os artistas norte-americanos, caso de James Brown.

Ela fazia esses programas com a presença dos irmãos, das amigas, com quem diz ter rodado o Rio de Janeiro.

Em meios às festas,Jupiara afirma que também sobrava tempo para estudar e fazer aquilo que a marca até os dias de hoje, lutar por meio da política. Ainda na década de 1970, ingressa no Partido Comunista, onde atuou na cidade do Rio de Janeiro.

Em 1979, passa a fazer parte da organização do movimento negro mais potente da segunda metade do Século XX, o Movimento Negro Unificado (MNU), fundado em 1978, nas escadarias do Teatro Municipal em São Paulo.

Jupiara Castro (à direita) homenageada na USP. (Foto: Pedro Borges/Alma Preta)

No Rio de Janeiro, sente a necessidade de uma entidade que faça o debate racial na região de Madureira, Oswaldo Cruz, Marechal Hermes, Bento Ribeiro, e participa da fundação do Aquibara Dudu, em 1983.

No ano seguinte, em 1984, Jupiara Castro, agora morando na cidade de São Paulo, participa da construção do Partido dos Trabalhadores (PT) com a função de filiar e aproximar da organização jovens, trabalhadores, e “todas as pessoas interessadas em construir um país melhor”, como ela diz.

O desejo imediato pela vitória de Lula nas eleições presidenciais por parte da ala majoritária do PT fez a organização, de acordo com Jupiara, “flexibilizar o programa do partido, fazer concessões e alianças com todos os diabos e corruptos do país”. Por esse motivo, deixa a instituição, em 1990.

O Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados (PSTU) se torna a casa política de Jupiara entre 1994 e 2006, quando deixa a legenda e organiza um grupo chamado CSOL, que mais tarde vai dar origem ao PSOL, partido do qual faz parte até os dias de hoje.

Jupiara Castro também foi chave para a construção da Coordenação de Polícias Sociais e Anti-Racista, em 1994. O órgão foi resultado do Congresso da Federação dos Sindicatos dos Trabalhadores Técnico-Administrativos nas Instituições de Ensino Superior Pública do Brasil (FASUBRA-Sindical), que aconteceu em 1991.

 Lutas e Consciência Negra na USP

Jupiara entrou na Universidade de São Paulo em 1986, mas não na condição de estudante. Ativista pela entrada de negros e pobres nas universidades públicas, Jupiara diz que não conseguiu se graduar no ensino superior por conta de uma série de entraves.

“Sei qual é a luta do povo negro para estudar, pagar aluguel, se alimentar, pagar transporte, e ainda manter-se enquanto profissional competente”.

Jupiara ingressou na USP como atendente de enfermagem no Hospital Universitário e logo notou a disparidade racial do espaço.

“A gente sempre fala, ‘ah a gente não vê negro na USP’. A gente via negro na USP sim, mas nos lugares de pouco destaque”. Jupiara conta que existiam muitos negros na cozinha, na jardinagem e enfermagem, por exemplo.

“Você tinha meia dúzia, uns 3 ou 4 alunos negros na USP, e você só tinha 5 docentes pretos em toda a universidade, capital e interior”.

Ela acredita que a USP é a universidade mais elitista do Brasil. Como exemplo, diz que na entrada do campus do Butantã estão a Academia da Polícia Civil, e alguns pés de café, em referência às lavouras e ao passado paulista.

“Por aí eu não preciso continuar dizendo o quão a USP representa uma parcela muito pequena da sociedade paulistana”, afirma.

Conforme o tempo foi passando, Jupiara começou a perceber de maneira mais detalhada o “quão perversa é essa universidade”. As relações humanas ali dentro, para ela, são adoecidas, apodrecidas, feudais e ainda pautadas no escravismo.

Em 1986, ainda sem ter sido efetivada como técnica administrativa da USP, Jupiara comanda uma greve vitoriosa no hospital universitário, em que as demandas dos trabalhadores foram aceitas, mas que as retaliações por parte da universidade também vieram. “Por dirigir esta greve e denunciarmos o superintendente Dr. Fusco por desvio de verba, fui transferida para o Centro de Saúde Escola do Butantã da Faculdade de Medicina”.

Ela brinca e diz que a direção da universidade “marcou touca” por não tê-la despedido naquele tempo. “Agora também não dá para mandar embora, porque eu já aposentei”.

Integrante do sindicato dos funcionários da USP, a então ativista do Movimento Negro Unificado (MNU) instaura o debate étnico-racial dentro das organizações da universidade. Jupiara passa a apontar a discriminação racial presente em uma série de reclamações de funcionários negros com relação aos seus patrões, antes vistas como questões trabalhistas.

No final de 1987, outro fato importante marca a sua trajetória. Um seminário, organizado na universidade para discutir os 100 anos da abolição da escravatura, protocolada de maneira oficial em 13 de Maio de 1888, motivou a USP a trazer uma série de especialistas, todos brancos, para discutir o tema, enquanto a intelectualidade negra, que estudava a questão, ficou na platéia.

“Nós vamos para esse seminário, eu, Milton Santos, Kabenguele Munanga, Henrique Cunha, Eunice Prudente, Sueli Carneiro, Edna Roland, Dulce Pereira, Dulce Sena, as negras e os negros intelectuais que falam da questão étnica-racial para ficarmos todos na platéia, e a mesa toda branquinha, falando de nós”, recorda Jupiara.

Em Novembro de 1988, depois de ficarem irritados com o evento oficial da universidade, montam um seminário para debater a abolição da escravatura, e compõem as discussões de outra maneira. “Nós compusemos a mesa com negros e brancos para fazermos o debate, porque a questão do racismo não é um problema dos negros, é um problema da sociedade brasileira”.

Para montar esse encontro, Jupiara fez uma articulação com as entidades políticas de dentro da universidade com o objetivo de reunir pesquisadores e ativistas.

“Foi um privilégio. Nós tínhamos na direção do Sindicato dos Trabalhadores da USP (SINTUSP) eu, na direção da Associação dos Docentes da USP (ADUSP), professor Henrique Cunha Jr, na direção do Diretório Central dos Estudantes (DCE), Wilson Honorário, e na Associação dos Pós-Graduando da USP (APG), o Luiz Carlos dos Santos”.

Um dos resultados do seminário foi a formação do Núcleo de Consciência Negra da USP, em 1988.

“O Luiz e o Henrique gostam de dizer que eu fui a pessoa que idealizou o Núcleo de Consciência Negra. Mas eu acho que nós, apesar deu ter tido a iniciativa, pensamos e construímos juntos”.

Genocídio: “Se nada disso der certo, devemos adotar a filosofia de Malcom X e Angela Davis. Temos que fazer o que tem que ser feito.”

Gentil e risonha, Jupiara Castro muda a expressão facial, e com a voz firme e um semblante sério, diz sentir a dor do genocídio.

“Quando eu entro nessa discussão do genocídio da população negra, eu entro a partir de um sofrimento que é meu, de ver os meus sendo assassinados pelo Estado, com o respaldo e apoio do Estado, e as pessoas não se sensibilizam com a morte de negras e negros no Brasil”.

Ela aponta para a necessidade de se frear o processo de extermínio de jovens negros e de se responsabilizar o Estado brasileiro pelo genocídio, termo contestado pelas representações oficiais do Estado, mas enfatizado pelo movimento negro.

“Nós fazemos questão de usar o nome de genocídio porque isso não é um processo de morte qualquer. Como eu já te falei, nós encaramos isso como uma limpeza étnica de todos os governos no Brasil, estaduais e municipais”, conta.

A universidade pública, bancada com os impostos da população, também deve ser cobrada sobre o tema. Jupiara Castro acredita que a universidade não reflete sobre as problemáticas da comunidade negra, entre elas, o genocídio: “Ela pensa e discute outras etnias que não sejam a negra”.

Para ela, aquilo que a universidade propõe sobre o tema são iniciativas isoladas, seja de professores, grupos, ativistas, e estudantes.

“A contribuição da universidade para a população negra é zero. Sem medo de errar. E não venha dizer que dar esse espaço para o Núcleo de Consciência Negra é um passo, porque a gente sabe que a dívida é muito grande”.

Jupiara acredita que o tema do genocídio precisa ganhar as ruas, para que a população entenda que esse não é um problema apenas do negro, mas de todo o conjunto da sociedade. Pensa também ser fundamental que parlamentares construam leis com o intuito de frear esse problema, que se acabe com a Polícia Militar, que se reeduque a Polícia Civil para que trabalhe junto à população, e que se vigie o poder judiciário.

“Se nada disso der certo, devemos adotar a filosofia de Malcom X e Angela Davis. Temos que fazer o que tem que ser feito. O que não podemos mais é permitir o assassinato dos nossos jovens negros com o consentimento do Estado”.

Cotas: além das vagas, uma disputa pelo conhecimento

As cotas raciais, bandeira histórica do Núcleo de Consciência Negra da USP, foram adotadas neste ano. Na noite da terça-feira, 04 de julho, o Conselho Universitário da Universidade de São Paulo (USP), instância deliberativa mais importante da instituição, aprovou a adoção de cotas raciais.

A proposta aprovada passa a valer já para o próximo vestibular da USP, a ser realizado ainda este ano. Com crescimento gradativo, a reserva de vagas para escola pública será de 37% para 2018, 40% para 2019, 45% para 2020 e 50% a partir de 2021. Dentro dessa medida, as cotas raciais devem respeitar a proporção populacional de raça no estado paulista, que hoje é de 37,2%.

Jupiara acredita que a entrada desses jovens vai modificar o ambiente universitário. Os professores, para ela, não estão preparados para lecionar a jovens negros das periferias das grandes cidade.

“Eu acho que a entrada dos estudantes negros na universidade dá esse salto de qualidade. Ela traz essa diversidade cultural, que força os docentes, [e] não só os docentes, mas até o corpo técnico-administrativo a se reformular”.

Para ela, a universidade tende a abordar o mundo a partir de um olhar eurocêntrico e anglo-saxão, e esquecer as referências provenientes do continente africano.

As cotas e a maior entrada de jovens negros se transformam em uma ferramenta fundamental para a superação do epistemicídio, conceito que significa o silenciamento e a ausência de referenciais, teóricos e saberes de determinados grupos, no caso do Brasil, de negros e indígenas. “Eu acho que essa não é uma disputa qualquer, é uma disputa do conhecimento e do saber”.

As cotas, porém, não representam o fim da luta contra o genocídio e o racismo na universidade e fora dela. A conjuntura política e a PEC 55, aquela que prevê o congelamento dos gastos públicos para os próximos 20 anos, tende a dificultar a permanência desse jovem negro nas instituições públicas de ensino superior.

“Para estes discentes terá que ser garantido alojamento, alimentação, bibliotecas, hospital universitário, centro de saúde e uma bolsa de estudo, para efetivamente garantirmos a permanência desses discentes. Teremos mais, muito mais luta pela frente”.

Jupiara Castro e Maria José Menezes, outra histórica integrante do Núcleo de Consciência Negra da USP, foram homenageadas neste ano pelos estudantes da universidade por conta da luta que travam há anos pelos direitos dos afro-brasileiros.

No que depender de Jupiara, a luta pela maior entrada de negros no ensino superior, pelo fim da desigualdade social, e pelo fim do genocídio negro seguem até que mais nenhum jovem seja assassinado, e que a juventude negra possa ocupar a USP.

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