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Justiça mantém lactante presa por furtar chocolates e shampoo

A jovem de 24 anos cumpre prisão preventiva mesmo que pudesse cumprir pena em sua residência; direito é negado a 56% das mães encarceradas

15 de março de 2023

Três potes de shampoo e 30 barras de chocolates foi o que Manoela* carregava em uma mochila quando foi presa ao tentar sair de uma loja dentro de um shopping, em São Paulo, no último dia 7 de fevereiro. Desempregada e mãe de três crianças, a jovem de 24 anos foi acusada por furto, junto com outro rapaz, após sair sem pagar os itens no valor total de R$380, que foram devolvidos ao estabelecimento.

Como mãe solo de três crianças em fase de amamentação e por ter cometido crime sem violência ou grave ameaça, Manoela* preenche os requisitos legais para cumprir prisão domiciliar, porém ela teve esse direito negado pela justiça e segue presa de forma preventiva.

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A prisão domiciliar, vista como uma ferramenta para evitar o superencarceramento e para a garantia do desempenho da maternidade plena, está prevista no artigo 317 do Código de Processo Penal (CPP), que, segundo o texto, “consiste no recolhimento do indiciado ou acusado em sua residência, só podendo dela ausentar-se com autorização judicial”. A prerrogativa também é garantida a idosos com mais de 80 anos, gestantes e pessoas extremamente debilitadas por motivo de doença grave.

Em 2018, a legislação passou a contar com o acréscimo dos artigos 318-A e 318-B, que trata sobre a aplicação da medida para mulheres gestantes ou mães responsáveis por crianças ou pessoas com deficiência. Há exceção caso o crime seja cometido com violência ou grave ameaça, e também caso tenha se destinado contra o filho ou dependente. 

Além disso, os artigos também mantêm a aplicação da decisão de forma simultânea às medidas cautelares diversas da prisão, como o comparecimento periódico em juízo, proibição de ausentar-se da comarca e recolhimento em períodos determinados pela justiça.

Porém, mais da metade das decisões judiciais são desfavoráveis em pedidos de prisão domiciliar para mães acusadas por crimes sem grave ameaça ou violência.

No caso de Manoela*, a justiça negou os pedidos de liberdade provisória e prisão domiciliar sob o argumento dela não ter endereço ou trabalho fixos. Somado a isso, a jovem tem dois processos anteriores suspensos por não ter sido encontrada para citação.

De acordo com o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), representado pela juíza Carla Santos Balestreri, não há, no caso, os requisitos previstos para prisão domiciliar já que, segundo a decisão, a acusada “informou possuir três filhos menores, um dos quais está sob a guarda paterna, tendo narrado, outrossim, que os outros dois possuem avó materna, que poderá, portanto, zelar pelos infantes”.

No processo, a qual a Alma Preta Jornalismo teve acesso, a Defensoria Pública de São Paulo, responsável pela defesa da jovem, destaca a prisão preventiva como “desnecessária e absolutamente desproporcional”, pois o argumento em relação às passagens anteriores por audiência de custódia ferem o princípio da inocência.

“Não há notícia de condenação com trânsito em julgado em relação às acusações anteriores que recaem sobre a paciente, consoante reconhecido na própria decisão judicial”, cita um trecho da Defensoria.

A defensora Camila Galvão Tourinho, atual coordenadora auxiliar do Núcleo Especializado de Situação Carcerária (NESC), órgão interno da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, afirma que a jovem informou seu endereço no interrogatório na delegacia e em audiência de custódia.

Ela também ressalta que o caso de Manoela* cumpre os requisitos legais para a prisão domiciliar, visto que ela é mãe de filhos menores de 12 anos e está sendo acusada por crime sem violência ou grave ameaça.

“Ainda que estejam presentes os requisitos legais, muitas vezes os pedidos de prisão domiciliar são indeferidos pelo Poder Judiciário sob diversas justificativas que não têm previsão legal, como por exemplo a existência de antecedentes criminais, a hediondez do crime de tráfico, a ausência de prova de que a mãe seja a única responsável pela criança, dentre outros”, comenta a defensora.

A reportagem questionou o TJSP  o motivo da prisão domiciliar não ser concedida. Em nota, o órgão informou que não se manifesta sobre questões jurisdicionais e que os magistrados possuem “independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento”.

“Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos previstos na legislação vigente”, completa a nota.

Direito negado

Dados do último relatório do “Convive – Mães em Cárcere”, política de atendimento da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, apontam que em 56% dos casos que ainda não há uma condenação e ainda cabe recurso, o pedido de prisão domiciliar para mães presas é negado. Em 25% dos casos, é aceito e em 24% dos processos a justiça mantém a prisão preventiva.

O levantamento analisou dados de 2020 referente às 2.035 mulheres atendidas pelo Convive durante a audiência de custódia. O estudo ainda destaca que os processos podem ter mais de uma decisão dentro do período analisado, portanto, a soma dos percentuais não será igual a 100%.

Segundo o relatório, o total das mulheres atendidas pelo CONVIVE em 2020 representa 20% da população prisional feminina no Estado de São Paulo. No ano analisado, 118 mulheres eram gestantes e 73% das atendidas tinham filhos/netos com menos de 12 anos de idade. Sobre o perfil racial, 58% das atendidas são negras e 42% são brancas. Os dados mais recentes, referentes a 2022, serão divulgados ainda no segundo semestre deste ano.

Por meio do Convive, as mães podem ter acesso a atendimentos voltados para a garantia de direitos na esfera criminal e cível, especificamente nos processos de família e infância. Dentre os atendimentos prestados estão os pedidos de prisão domiciliar, de progressão de regime diferenciada, pedido de extensão do período de amamentação, além da defesa da mãe presa em casos de acolhimento institucional, guarda, perda ou suspensão do poder familiar.

Segundo a advogada e atual coordenadora do Convive, Érica Rocha, junto aos atendimentos, o programa tem como finalidade ampliar o conhecimento dos direitos legais das mães nas unidades prisionais.

“O CONVIVE também realiza mensalmente atividades de Educação em Direitos nas unidades prisionais femininas do estado a fim de ampliar o conhecimento dessas mães sobre seus direitos e ampliar a rede de atendimento. Por fim, é cabível ressaltar que o CONVIVE não atende apenas mães presas brasileiras, mas também mulheres migrantes que sejam mães ou estejam grávidas”, pontua a coordenadora Érica Rocha.

Caminhos

Para a coordenadora do Convive, uma das discussões que precisam ser feitas é a da garantia de atendimento jurídico qualificado para as mulheres que possuem requisitos legais para cumprirem prisão domiciliar. Ela ainda defende a criação de ferramentas que priorizem os processos que envolvam mulheres grávidas e mães de crianças de até 12 anos ou com deficiência.

“Além disso, é imprescindível que o TJ/SP adote as providências cabíveis com relação aos juízes que sistematicamente violam a lei ao indeferirem os pedidos de prisão domiciliar utilizando-se de fundamentos genéricos e/ou que não estão previstos na nossa legislação”, argumenta a coordenadora.

Érica Rocha também defende a fomentação de dados sobre a situação das gestantes, lactantes e mães em privação de liberdade como forma de dar visibilidade a essa parcela vulnerável da população carcerária.

“Especificamente com relação às mulheres presas, somam-se tantas outras violações, como a violência obstétrica, a dificuldade para atendimento médico voltado à saúde das mulheres, a pobreza menstrual no cárcere e a restrição de contato com seus filhos. É necessário que se conheça o cárcere e os efeitos sociais decorrentes da sua existência para que se possa fazer uma escolha mais informada sobre qual tipo de sociedade queremos viver”, finaliza.

*O nome fictício foi usado para preservar a identidade da acusada.

Leia também: 30% das mulheres encarceradas que podiam estar em prisão domiciliar têm seu direito negado

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