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Mãe luta para manter vivo o legado artístico do filho espancado e morto na Bahia

O artista de rua Jailson Galdino de Souza Santos, mais conhecido como Scank, foi assassinado em fevereiro, na cidade de Salvador; família aponta racismo e descaso da polícia

14 de agosto de 2020

Por: Henrique Oliveira

“Cada camisa que pinto eu sinto que estou convivendo com ele. Eu vejo que estou numa missão para que o nome, a arte e a memória dele não morram nunca”, conta Leonice Galdino, que prefere ser chamada de Nice, sobre a manutenção do legado do filho, o artista de rua Jailson Galdino de Souza Santos. O jovem mais conhecido como Scank foi espancado e assassinado com um tiro nas costas na madrugada do dia 13 de fevereiro, enquanto pintava um muro na região do Imbuí, em Salvador, na Bahia, acompanhado do amigo e também artista Jerry.

No dia 8 de agosto, Scank completaria 28 anos, data de aniversário que compartilhava com o irmão mais novo Jônata de Souza Moreira (MC Vírus), integrante do selo musical 999, administrado pelo rapper baiano Baco Exu do Blues.

Aos 48 anos, Nice faz parte das 55,5% mulheres negras que são chefe de família no Brasil, de acordo com levantamento da consultoria iDados. Até a perda do filho, ela trabalhava vendendo quentinhas em frente à Faculdade de Artes da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

O trabalho duro é algo que a mãe do jovem espancado e assassinado conhece desde cedo. Aos 11 anos, ela começou a vender amendoim na tradicional região comercial da Barroquinha. “Após minha mãe falecer, com 12 anos eu fui trabalhar cuidando de criança como babá, aos 16 anos eu tive uma grande vontade de aprender a cozinhar e atuando como babá eu comecei a aprender algumas coisas. Já com 27 anos eu fiz um curso no Senac, depois passei a trabalhar como cozinheira profissional em alguns restaurantes, consequentemente fiquei na área da cozinha, fazendo salgados, congelados, almoços e jantares por encomenda. Após muita labuta passei a vender quentinha, deu certo e abri um restaurante”, recorda.

Nice engravidou pela primeira vez aos 18 anos, porém, o primeiro filho não sobreviveu. Depois, ela deu à luz a Scank. “Ele assumiu o lugar do primogênito em um momento que eu não acreditava que poderia mais engravidar. Ele veio como esperança e para preencher a minha vontade de ser mãe”, diz. No primeiro relacionamento, ela teve dois filhos, Jailson e Jeferson, e no segundo, o caçula Jônata. Segundo ela, a condição de ser mãe solo de três filhos foi difícil e as palavras dos filhos, como o Scank, a consolava.

“Ele me dizia: ‘Mãe, se eu tivesse de ter uma outra mãe eu não queria, a senhora foi mãe de verdade, foi mãe e pai, para mim a senhora é a melhor mãe do mundo”, recorda. “Eu sou muito grata pelos três filhos, mas a batalha não foi fácil, teve momentos de eu ter dois empregos, chegar em um às 07:30 e trabalhar até 15:00, para as 15:30 entrar num restaurante e só sair as 22:30”, acrescenta.

Moradora do bairro do Largo do Tanque, Nice relata o julgamento moral que sofreu por ser mulher, negra, pobre, mãe solo e solteira. “Só de você ser negro, você já é visto como inferior. Mulher e solteira é ainda mais complicado. Eu percebo que até em meio a vizinhança, a mulher solteira é vista como uma ameaça aos maridos das mulheres casadas. Muitas vezes eu fui taxada como problemática porque dizia aos meus filhos que não os queria em companhia de tais pessoas, mas na minha mente aquilo era uma proteção para eles”, conta.

Um filho artista

Scank começou a se interessar por pichação e grafite aos 12 anos, quando Nice não conseguiu mantê-lo juntamente com o irmão Jeferson em uma escola particular, embora oferecer boa educação para os filhos sempre tenha sido um desejo dela. “Era muito problema. Fiz a matrícula no turno da manhã e ele reclamava de ter que acordar cedo. Coloquei no período da tarde e ele dizia que era ruim porque sair depois do almoço o impedia de descansar, mas na escola particular ele sentia um incentivo maior para estudar, principalmente às sextas-feiras, que ele tinha aula de artes”, relata.

Com uma rotina de quase 18 horas de trabalho por dia, a mãe soube pelos vizinhos que o filho havia começado a pixar. “Eu ficava sabendo pelos outros que o Jailson estava andando com pessoas que riscavam, que esse negócio de pichação pode levar a morte e que pichador também roubava. Eu chegava em casa e conversava com ele, explicava que isso era errado e que a sociedade não aceitava”, conta.

No começo, Scank não encontrou apoio da mãe, que até chegou a jogar fora letrados de pichação, além castigá-lo. “Hoje eu me arrependo muito de não ter apoiado meu filho no que ele queria. Só a partir dos 22 anos que eu vim enxergar, que o que ele queria eu não poderia mudar”, compartilha.Segundo Nice, Scank nunca deixou transparecer para a família que queria ser reconhecido como um artista de rua. Para a família, o jovem dizia que tinha direito e obrigação de falar para a sociedade o que ele pensava. “Ele dizia que como negro, filho de mãe pobre, muitas vezes as pessoas não iam escutá-lo. Em nenhum momento ele me disse: ‘minha mãe, eu quero ser um artista’. O que ele queria é que a sociedade visse a mensagem dele e que ele existia, como até hoje existem pessoas talentosas na favela, mas que não têm oportunidades. Eu acho que na realidade ele queria inconscientemente representar essas pessoas”, considera.

A UFBA realizou em 2013 o Seminário Nacional Derivas e Memória Contemporânea da Pixação, em que Scank participou da mesa “Pixação e o direito à cidade”, com a professora Roca Alencar, do Departamento de Antropologia e Etnologia. O jovem se tornou um interlocutor das pesquisas realizadas pela professora e participava da disciplina de Antropologia Urbana, na temática de intervenções transgressoras na cidade, em que ele era convidado a falar sobre arte de rua e apresentar seu pixo.

Segundo Roca, Scank desenvolveu uma base própria e sabia todos os tipos de caligrafia. “A tag que é a assinatura, o tribalizado que é o alfabeto, dominava desde as primeiras letras da pichação baiana da década de 1990 até o que eles chamam de ‘new school e old school’.”, explica. Para a professora, que também chegou a ser sogra de Scank, o jovem era um “pichador completo”. “Ele dominava tanto o letrado tribalizado quanto o de bomb e falava muito de criar o grarisco, que era a junção entre grafite e o pixo. Ele tinha essa criatividade e capacidade de reinventar”, acrescenta.

Jailson também era vinculado ao grupo nacional de pichadores chamado inicialmente “Mais Fortes” e que atualmente se denomina como “Círculo Forte Brasil”, no qual estabeleceu contato com Criptan Djan, pichador brasileiro conhecido após as intervenções realizadas na Escola de Belas Artes e na Bienal Internacional, em 2008, e que passou a expor suas pichações em eventos internacionais.

Em 2019, Scank participou da 13º edição da CowParade, o maior evento do mundo sobre arte a céu aberto, realizado pelo Ministério da Cidadania e a Extrafarma. A iniciativa seleciona artistas para pintar uma vaca feita em fibra de vidro e exposta publicamente. A arte de Scank ficou exposta no Centro de Treinamento do Esporte Clube Bahia, time de coração de Scank, que na época do assassinato divulgou uma nota de pesar onde lamentava e denunciava que o artista havia sido mais uma “vítima da violência urbana que atinge, sobretudo, os negros e os pobres”.

Scank também pretendia expor seu pixo em oito telas, no entanto, devido a alguns contratempos conseguiu pintar apenas quatro. Após o assassinato, chegou a notícia de que as obras serão expostas, de forma inédita, em Amsterdã, na Holanda. O trabalho do artista está disponível para ser apreciado no Instagram do artista, que permanece ativo.

“Uma parede vale mais do que a vida de um ser humano negro?”

Há seis meses, Nice Galdino chegou no local do assassinato de Scank, na avenida Jorge Amado, no final da madrugada. Com a notícia de que o filho havia se envolvido numa briga. Lá, ela encontrou o corpo do filho sem vida. Uma dos questionamentos feitos pela mãe da vítima foi em relação ao tratamento dado pela Polícia Militar ao fato.

O irmão do jovem morto, Jônata, perguntou aos policiais sobre a situação de Scank e ouviu de um deles a resposta: “Esse aí já foi”. Para Nice, os policiais trataram a situação “como mais um marginal que morreu, discriminando os negros, vendo-os como ladrões ou usuários de drogas”.  Outra crítica dos familiares é a forma pela qual a Polícia Militar classificou Scank em uma nota oficial. O comunicado dizia que os PMs foram chamados pelo Centro Integrado de Comunicação (Cicom) para averiguar que um “elemento estava caído ao solo”.

Nice afirma que a atuação da polícia e a própria morte de Scank foram resultados do racismo. “Eles nem podiam dizer que estavam discriminando meu filho, porque ele era pichador, pois não tinha nem lata de spray com ele. Para a polícia, meu filho era mais um vagabundo que morreu assaltando alguém”, desabafa.

“Hoje eu me pergunto: E se meu filho fosse branco? Ele tomou o tiro uma hora da manhã e eu só o encontramos às cinco. Se fosse um branco no lugar dele, ele teria ajuda? O policial teria a atitude de dizer “esse aí já foi”? Houve muito racismo na morte do meu filho. Uma parede vale mais do que a vida de um ser humano negro?”, questiona a mãe.

O assassinato de Scank faz parte da trágica estatística dos homicídios na Bahia, segundo o relatório “A cor da violência na Bahia”, lançado recentemente pela Rede de Observatórios da Segurança, a partir de um levantamento feito com dados do Sistema Único de Saúde (SUS). A pesquisa demonstrou que entre 2009 e 2018, a Bahia foi o estado com maior número de homicídios da região Nordeste, no qual os jovens negros têm cinco vezes mais chances de serem assassinados do que jovens brancos. Ainda segundo o Atlas da Violência, publicado em 2017, homens negros foram 90% das vítimas de homicídio e 60% deles estavam abaixo dos 30 anos no estado da Bahia.

Ainda segundo a mãe de Scank, o artista sabia os riscos que corria por ser negro e pichador. “Ele sempre dizia a nossa família que só por uma pessoa ser negra ela já era suspeita”, lembra. Scank também já havia sido violentado pela política de repressão aos pichadores e grafiteiros. Em uma ocasião, aos 20 anos de idade, Scank quebrou o maxilar após tomar um soco de um segurança da Estação Rodoviária da Lapa.

O legado

Para manter vivo o legado artístico do filho, Nice aprendeu a pintar e a usar a técnica da serigrafia para imprimir o letrado nas camisas em tela. Ela vem recebendo ajuda das ex-noras Bruna e Isadora, que a auxiliam na divulgação e nas vendas. O apoio também vem de pichadores e grafiteiros de outros estados, além daqueles que Scank chamava de “família da rua”, entre eles o “Lama”, um coletivo formado por pichadores de Salvador, em que o filho atuava como produtor de um evento com o mesmo nome, que mistura os elementos da cultura hip hop.

Em memória de Scank, em março foi realizado um grafitaço na pista de skate dos Barris, ponto de encontro da cultura de rua em Salvador, e na data de aniversário, houve uma homenagem em formato de vídeo e disponibilizado no YouTube.

A camisa e demais produtos com o letrado de Scank podem ser adquiridos através do perfil de Nice no Instagram. Hoje, o que consola a mãe, é saber que o filho morreu fazendo o que gostava. O apelo de Nice é que “a sociedade veja os pichadores como pessoas, como artistas que tem um dom. Cada uma dessas pessoas é oprimida pela sociedade. Se os pichadores e os grafiteiros fossem aceitos, não seria crime.”

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