Texto: Pedro Borges
Dia 23 de julho de 1993.
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Não sei há quanto tempo estou aqui. Deitado em um jardim ao lado de outros da pele preta, essa é a única data que me recordo.
Afinal, seja aqui ou ali, pouco importa. Os dias são iguais. As noites também.
E um é idêntico ao outro. Com ou sem luz, não há diferença entre o sol e a lua.
Preciso mesmo sobreviver. Preciso mesmo não sonhar.
Os sonhos atrapalham.
Quero sair daqui e ter filhos. Quero viver muito. Quero passar dos 20 anos.
Mas isso tudo é muito difícil.
A cada grupo de 100 mil jovens com 19 anos, 62,9 são mortos por armas de fogo no Brasil. Aqui, os revólveres mataram 5.068 jovens brancos e outros 17.120 jovens negros.
Sou o alvo favorito.
Mas é melhor nem pensar nisso.
O que sei é que hoje é sexta-feira. O céu preto está pintado pelas estrelas, pelos bares e pelos carros.
A praça está agitada.
A Igreja aponta 11h da noite. Melhor descansar. Melhor fugir do frio e assim acordar amanhã cedo. O pessoal da rua logo nos acode para não atrapalharmos o comércio.
Preciso me deitar no chão sepulto e me libertar. É hora de sonhar, aquecer.
Não! Não creio!
O sonho de hoje me reservou o mesmo do dia-a-dia. Desgraça.
Começo a ter pesadelos. O tremular dos meus olhos me despertam. Não sei mais se sonho. As luzes fortes brilham em minha pele parda.
As luzes continuam estáticas. A desconfiança cresce.
Mas dura pouco.
Homens encapuzados atiram. O disparar dos gatilhos também esclarecem o ambiente. A claridade agora rasga a nossa pele preta.
São 23 horas e 43 minutos. Éramos 70. 8 morreram. Nesses últimos instantes de vida, vejo a minha personalidade se misturar ao chão e formar uma poça.
Uma marca jamais apagada, porém logo esquecida.
Lembrança ao Massacre da Candelária no Rio de Janeiro.