Quem pensa que o nazismo alemão nunca chegou ao território brasileiro está muito enganado. O sistema instaurado dia 30 de janeiro de 1933, com resultado da nomeação de Adolf Hitler como chanceler, alcançou o Brasil e deixou marcas em pessoas negras que jamais imaginariam estar associadas a tal regime, como é o caso de Aloysio Silva, sobrevivente do nazismo, que ficou conhecido como Menino 23.
A descoberta foi feita pelo doutor em História da Educação, Sidney Aguilar Filho, que em 1998, durante uma aula de história sobre o nazismo, foi surpreendido por uma estudante afirmando que na fazenda da família – pertencente à elite política e econômica participantes da cúpula da Ação Integralista Brasileira – havia o desenho da suástica nos tijolos da casa.
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Aguiar investigou o caso e descobriu que, durante a década de 1930 nazistas brasileiros retiraram 50 meninos negros de um orfanato no Rio de Janeiro para serem escravizados em uma fazenda da família Rocha Miranda, no município de Campina do Monte Alegre (SP).
Sob o falso pretexto de que os jovens seriam levados para um local para estudar, brincar e aprender sobre a importância do trabalho, o sonho de um lugar que educa e permite o lazer dos jovens não durou mais do que um ano. Depois disso, as crianças foram apenas escravizadas para prestar trabalhos à família nazista.
Na tese “Educação, autoritarismo e eugenia: exploração do trabalho e violência à infância desamparada no Brasil”, Sidney Aguilar destaca que na Fazenda Cruzeiro do Sul, à época de propriedade de Sérgio Rocha Miranda, não só os tijolos eram marcados com o símbolo nazista como também o gado que participava e vencia as principais exposições e competições nacionais.
“O símbolo nazista apareceu, também, nos documentos da fazenda, como talonário de pedigree animal. A documentação pesquisada mostrou que era um fazendeiro assumidamente nazista”, diz o documento.
Transferência
Aguilar pondera que foi muito difícil encontrar pessoas dispostas a falar sobre esse período tão conturbado da história, em especial, garantir a participação do único sobrevivente Aloysio – ou Menino 23 – em sua pesquisa acadêmica,
“O silêncio foi definitivamente interrompido quando o senhor Aloysio Silva, justificadamente relutante, ficou sabendo que a pesquisa conseguira localizar seus documentos de infância onde constava o nome de sua mãe. O nome da mãe foi mantido por ele em sigilo de todos os amigos e familiares ao longo da vida pelo trauma de não poder provar sua identidade”, explica Sidney.
A partir de longa apuração, o historiador descobriu que houve uma transferência de 50 meninos, sendo 48 pretos ou pardos, de 9 a 12 anos de idade entre 1932 e 1941. Eles estavam sob a “disponibilidade” do Juizado de Menores da Capital Federal e sob a guarda do Educandário Romão de Mattos Duarte, da Irmandade de Misericórdia do Rio de Janeiro.
Os garotos, incluindo o Menino 23, foram então levados sob a tutela legal de Osvaldo Rocha Miranda a Campina do Monte Alegre. Transferidos em viaturas policiais, sujeitos a pouca ou nenhuma educação escolar na fazenda de destino, eles foram colocados para trabalhar sem remuneração.
“Isolados do restante da comunidade, eles estiveram sob tutela real de capangas armados a chicote, palmatória, punhal, cães de guarda e armas de fogo. Impedidos da livre circulação os garotos foram submetidos à agressão, ao abuso físico, ao constrangimento moral, ao cárcere e à fome como formas de castigo às resistências, desobediências e transgressões”, comenta o pesquisador.
Os nomes foram deixados de lado, segundo Sidney, sendo os meninos identificados apenas com um número, o que para o pesquisador destaca a desumanização daquelas crianças.
Escravidão
Aloysio Silva, o único dos localizados ainda vivo do grupo de crianças, ficou conhecido como o “Vinte e três” e reside até hoje em Campina do Monte Alegre, no interior paulista. Afoito com o a entrevista feita por Sidney, o homem negro destaca algumas de suas memórias. Segundo ele, a família nazista avistou um grupo de garotos brincando, o que foi suficiente para que decidissem pegá-los como escravos.
“Essa família Rocha Miranda entrou e ficou observando, e nós estávamos brincando, jogando bola. Aí ele [patrão] chegou e mandou o tutor, que era o motorista dele, encostar nós num canto, então nos separou como separa boi na mangueira”, diz a vítima.
Levados para a fazenda, de acordo com Aloysio Silva, os empregados de Oswaldo Rocha Miranda haviam sido mandados para “tomar conta” de seu grupo. O Menino 23 relembra, em relato disponível na terese de Sidney Aguilar, que de início todos comiam bem, mas com o passar do tempo a situação foi piorando.
Além disso, os relatos revelaram que houve a militarização da infância dos “Meninos do Romão Duarte” – como ficaram conhecidos – a partir do integralismo e o nazismo na região.
Os símbolos nazistas nos tijolos e no gado levou a indagações sobre a temática. Solicitado a dar mais detalhes sobre a presença de nazistas na região, o Menino 23 afirmou que, na época, “não sabia o que era nazismo”, dizendo que faz pouco tempo que ouviu falar. Porém, Aloysio salienta também que o símbolo da suástica, que atualmente sabe ser nazista, era comum na região.
“O Sr. Sérgio tinha esse gado, esse gado nelore, ele criava dentro da cocheira, fazia baile e tudo pro gado, porque era gado de exposição que ele levava para São Paulo e Rio de Janeiro. Era tudo… Toda criação dele… marcados assim”.
Os impactos da Segunda Guerra
A militarização da infância se efetivou no cotidiano dos “Meninos do Romão Duarte” com ações que consistiam em acordar às cinco horas da manhã e tomar banho gelado numa piscina coletiva, mesmo no inverno, fazer fila para receber a enxada, trabalhar, não poder brincar sequer nas horas de descanso, vestir fardas em dias de festa, servir a pátria e ir à guerra.
Em 1943, os “Meninos do Romão Duarte”, eram na sua maioria adolescentes e jovens adultos: os mais velhos beiravam os 20 anos, os mais novos eram crianças de nove a quatorze anos. José Rodrigues, uma das vítimas, foi combater os nazistas na Itália. O menino que havia sido educado e explorado por nazistas e integralistas, sob a tutela do Estado, acabou recrutado e enviado para guerra de oposição ao nazi-fascismo, com auxílio de seu tutor integralista, pertencente à cúpula da AIB. Aloysio, o Menino 23, não foi convocado.
Considerado pelo pesquisador Sidney Aguilar como conceito chave para caracterizar e analisar as relações de poder, foi explicado a Aloysio Silva o conceito de escravidão, como o “impedimento a liberdade, trabalho não remunerado, coerção física e constrangimento moral”. Foi-lhe, então, perguntado se, em seu juízo, ele havia sido escravizado. Ele respondeu que havia sido “explorado bastante” e que “tinha castigo”.
Como o racismo se relaciona com o nazismo?
Sidney Aguilar perguntou ao Menino 23 se ele achava que havia sido vítima de racismo por parte dos donos da fazenda, Aloysio Silva respondeu: “Eu acho que sim”; e reafirmou que “onde branco freqüentava negro não entrava. Mas melhorou de lá pra cá, porque hoje eu sou chamado de homem e tratado com justiça”, disse o Menino 23.
Mas essa relação não é exclusiva no Brasil: o nazismo atingiu de forma implacável não somente os judeus como também uma parcela da pequena população negra alemã. Oriundos de países como Camarões, Togo, Tanzânia, Ruanda e Namíbia, essas pessoas, durante o Terceiro Reich, foram proibidas de estudar com pessoas brancas e impedidas de trabalhar, além de serem submetidas à esterilização forçada e levadas a campos de concentração para morrer.
A história mostra que a comunidade negra alemã estava dispersa em todo o país em 1933, ligada, em muitos casos, a associações e organizações comunistas e antirracistas. No entanto, um local específico na Alemanha, chamado Renânia, deu origem a um termo pejorativo, utilizado principalmente para menosprezar afro-alemães: os bastardos da Renânia. O termo servia também para apontar as crianças filhas de soldados africanos e mulheres alemãs.
“Menino 23: Infâncias Perdidas no Brasil” se tornou um documentário disponível no YouTube, que retrata toda investigação do historiador Sidney Aguilar.