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Mídia negra: “uma necessidade que se impõe”

17 de outubro de 2016

Texto: Pedro Borges / Ilustração: Vinicius de Almeida

Frase era o subtítulo do jornal “O Clarim d’Alvorada”, um dos mais memoráveis periódicos da imprensa negra paulista

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A história da imprensa no Brasil se inicia em 1808 com a fuga da família real portuguesa para a América do Sul, depois de D. João VI ser pressionado pelo governo francês de Napoleão Bonaparte. A chegada da coroa no Rio de Janeiro é o aceite da liberdade de imprensa no país e o surgimento dos primeiros periódicos, como a “A Gazeta do Rio de Janeiro” e “O Correio Braziliense”.

“O Homem de Cor”, primeiro jornal da imprensa negra, surge anos mais tarde, em 14 de Setembro de 1833, na capital fluminense. Outros veículos de comunicação desta mesma natureza logo foram produzidos, caso do “Brasileiro Pardo” e “O Cabrito”. Desde o momento de sua criação, a imprensa negra se fez presente em quase todas as décadas da história brasileira.

Esses tabloides surgem com um caráter de denúncia. Em suas páginas, editores e redatores como Paula Brito, denunciavam prisões arbitrárias e casos de discriminação racial contra a comunidade negra. Para ele, o grande crime que poderia ser cometido seria o silêncio diante do desrespeito à igualdade de direitos. 

A imprensa negra assumiu um caráter bastante político de exigência de direitos e questionamento sobre o Estado. Ana Flávia Magalhães, em análise da primeira edição do “Brasileiro Pardo”, aponta em seu livro “Imprensa Negra no Brasil do Século XIX” que “as alianças entre liberais moderados e os brasileiros pardos” tinham perdido a validade em 1833, sendo vistas como farsa naquele momento. O redator do Brasileiro Pardo argumentava que, nas disputas entre corcundas (absolutistas portugueses) e liberais, os “brasileiros pardos” teriam se posicionado a favor das últimas, atribuindo ao domínio português as causas dos problemas pelos quais passavam. Porém o passar dos anos foram suficientes para entender que a sua “classe” teria sido incorporada às pelejas de 1831, não pelo reconhecimento de sua importância como membros efetivos da sociedade brasileira, mas apenas como instrumento eficaz e valioso para a derrubada do antigo imperador”. (Pág 43).

OHomemdeCor

Anos mais tarde, em 1876 há uma presença também significativa da imprensa negra em Recife, Pernambuco. Tanto no século XIX quanto no XX, os ideais iluministas foram em maior ou menor medida muito presentes nos periódicos da imprensa negra de todo o país. O jornal pernambucano “O Homem” tinha em seu subtítulo uma explicação para cada um dos princípios da revolução francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.

O veículo de mídia também propunha uma reflexão sobre as decisões do Estado brasileiro. Para “O Homem”, o país gastou cerca de 600 mil contos de réis na Guerra do Paraguai, quando esse montante seria suficiente para libertar todos negros na condição de escravo no país. Mais do que isso, dos 100 mil mortos na Guerra do Paraguai, apontou-se que 93 mil eram pretos.

“O Homem” manteve vida no período pós-abolição da escravatura e a partir de 13 de Maio de 1888, passa a criticar o afastamento de negros da máquina administrativa e de cargos no campo militar. A tentativa de limitar qualquer influência política de negras e negros no caminhar da nação faz o jornal colocar em questão os avanços do fim da escravidão.

As críticas ao pós abolição também seguiram em São Paulo, com os jornais “A Pátria” (1889) e “O Progresso” (1899), ambos veículos de mídia anteriores ao Menelik. A Pátria adotou ideais iluministas e apoiou os republicanos. A partir desse olhar, criticavam as dificuldades pelas quais a comunidade negra passou no período pós 13 de Maio de 1888, com a adoção da Lei Áurea. Em um dos trechos, questiona-se: “Ontem deram liberdade ao escravizado, mas esqueceram-se de que o liberto, que se transformara em cidadão, tem direito e precisão de ter uma pátria. Sim, quem mais do que eles têm direito sobre o solo em que pisam?” (A Pátria, n. 2, p. 2).

O Progresso, que fazia forte lembrança a abolicionistas como Luiz Gama, saudava o coletivismo negro e colocava a educação como imprescindível para superar a posição do negro na sociedade. Com as mesmas oportunidades, negros e brancos desenvolveriam as mesmas aptidões.

Essa imprensa paulista também combateu o subsídio estatal para a vinda de imigrantes europeus para o Brasil. Se rebatia essa possibilidade em todas as esferas. A soma de fatores encontrava: o absurdo da vontade de embranquecer a nação, a ideia de que o trabalhador branco europeu saberia melhor para manejar as terras e a agricultura brasileira do que o negro, já acostumado com a colheita, e o alto investimento do Estado para trazer esse trabalhador em tempo de ajuste fiscal.

Mídia politizada?

Oswaldo de Camargo, escritor e um dos editores do Níger, periódico da imprensa negra, explica que essa mídia tinha um caráter de educação e reflexão política. “É uma imprensa que quer educar. Ela não quer apenas noticiar, ela quer educar. Ela quer fazer uma nova abolição. Essa palavra foi cunhada na época. Era necessário fazer uma nova abolição. A maior parte dos que estão fazendo essa imprensa perceberam que a abolição tal como foi feita não teve o resultado que devia ter. A maior parte dos negros continua marginalizada, continua analfabeta, as mulheres continuam a maior parte empregadas domésticas. Uma boa parte dos homens estão muitas vezes desempregados”.

Entre as folhas da maioria dos jornais da imprensa negra é possível ver notas de falecimento, datas de aniversário, divulgação de eventos sociais, além de espaço significativo para contos e poesias. Essa característica foi entendida como motivo para descrever a imprensa negra do século XIX e início do século XX como despolitizada. Giovana Xavier, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), discorda e acredita que “esses jornais tinham a pretensão de ser um espaço de aprendizado e formação pedagógica para a comunidade negra. Há uma série de textos contra o alcoolismo, sobre a importância da higiene pessoal, da importância do cuidado com as crianças, de denúncia da exploração no trabalho doméstico. Reduzir esses jornais à divulgação de festas e eventos é uma perspectiva muito influenciada por Roger Bastide”.

ClarimQuilombo

Roger Bastide participou de um momento importante da história brasileira de reflexão sobre a condição do negro no país. O pesquisador desenvolveu estudos sobre a imprensa negra no estado de São Paulo e se tornou referência na área. Para ele, esses eram jornais de integração da comunidade negra, reivindicação, mas sob a influência da ideologia dominante. Somente na segunda fase da imprensa negra, pós 1920, Bastide acredita que a imprensa negra ganharia o caráter político. Ele ainda pontuava que a imprensa negra era um jornalismo adicional, que poucas informações trazia e ainda superestimava os valores negros. 

Giovana Xavier critica essa posição e esse olhar para a comunicação negra. “Tudo depende de quem lê e de como se lê esses jornais negros. Se eles são lidos a partir de um ponto de vista de produção de conteúdo branco, de sistematização do conteúdo branco, eles vão ser interpretados assim, como jornais despolitizados e festivos no sentido pejorativo e racista de festa”.

A professora da UFRJ exalta a imprensa negra e a coloca como um ato de rebeldia diante da realidade racista. “A grande questão desse material é propor um projeto político para a população negra naquele momento que passasse pela centralidade da escrita. Independente dos conteúdos que têm ali dentro, só isso já é muito revolucionário e transgressor”. 

Movimento negro

Os jornais negros estavam muito vinculados às associações pretas nas diferentes cidades. Muitos eram os porta-vozes de organizações que promoviam eventos e encontros sociais. Diferente do que é posto, essas associações tiveram posicionamentos políticos para a comunidade negra. 

“A Voz da Raça”, um dos mais importantes jornais negros do país, é um ótimo exemplo. Canal de comunicação da Frente Negra Brasileira, o tabloide tinha uma função estratégica para as diretrizes do movimento, que acreditava na formação como essência para uma ação política eficiente.

Giovana Xavier recorda a existência do “O Quilimbo”, folhetim do Teatro Experimental do Negro, criado por Abdias Nascimento e apresenta algumas características dessa imprensa. “Então tinha essa interface. Tinham alguns jornais que eram autônomos, mas geralmente eram veículos de comunicação de associações. A história da imprensa negra é a história do associativismo negro”.

Na década de 1950, o jornal “Mundo Novo” denuncia a forma como o voto negro era manipulado e diz que era preciso lutar por uma verdadeira democracia racial no país. O periódico se colocou então a favor da candidatura de um negro, Geraldo Campos de Oliveira ao legislativo.

A pluralidade de opinião desse movimento negro era notória. Se “A Voz da Raça” apresentava a Frente Negra Brasileira, a mesma organização boicotava e se opunha aos jornais “O Clarim da Alvorada” e “Chibata”, que faziam críticas às ideias e aos valores da organização.

Giovana Xavier ressalta que a imprensa negra é mais do que a associação com o movimento negro. “Assumir uma imprensa adjetivada pelo negro é um tipo de ativismo muito forte, porque é de novo assumir um lugar que não é pensado para a gente, o lugar da produção e sistematização de conteúdo escrito, que na verdade é um fator que mais nos pretere do que nos inclui, da maneira que as coisas são criadas. A imprensa negra é uma modalidade de movimento negro”.

Ela ainda cita exemplos contemporâneos para ilustrar essa condição. “Você pensa na relevância que um portal como o das Blogueiras Negras tem, com a quantidade de textos e de mulheres se descobrindo autoras. Não consigo muito separar, eu prefiro pensar a imprensa negra dentro do movimento, com a centralidade da palavra escrita”.

Os jornais de mídia negra também possibilitaram uma série de contatos internacionais com o movimento e o pensamento preto. Em São Paulo, a imprensa negra deu destaque para os textos de Marcus Garvey e a explicação sobre o que seria o pensamento e a prática pan-africanista.

Mais do que isso, Amilcar Pereira em sua obra “Mundo Negro: Relações Raciais e a Constituição do Movimento Negro Contemporâneo” apresenta como os jornais negros de Chicago e Baltimore muito exaltavam, na primeira metade do século XX, o movimento negro brasileiro. Existia uma admiração notória à Frente Negra Brasileira, colocada como uma das organizações mais poderosas do país.

Machismo

Muitos dos jornais da imprensa negra carregavam em seus títulos a proposta de dialogar com os “homens de cor”. A exclusão da mulher negra deste espaço é objeto de estudo de Giovana Xavier, no artigo “Leitoras: Gênero, Raça, Imagem e Discurso em O Menelik”. Para ela, a resistência preta nos EUA e no Brasil coloca o homem como figura principal no processo.

OMenelick

O papel das mulheres nesses jornais foi importante, mas em muitos casos se resumiu aos bastidores. Os homens negros se valeram de identidades centradas na masculinidade para silenciar mulheres negras, inclusive assinando textos escritos por elas. Giovana enfatiza que o mundo da escrita não pertence às mulheres, muito menos às negras. “Ou seja, jornalistas negros alimentaram as políticas de silenciamento de mulheres negras. E no nosso caso isso é complicado porque produz uma sensação permanente de não lugar dentro da comunidade preta e fora com os grupos brancos”.

Em 1916, O Menelik abre as suas páginas com uma chamada para um concurso de beleza para mulheres negras. A vencedora estamparia a primeira página. Para vencer, não bastava ser bela. Era preciso ser recatada, simpática e estar de acordo com os padrões comportamentais das mulheres brancas.

Nesses concursos, organizados por homens negros, existiam dois tipos de mulher de acordo com as definições apresentadas, a “moça” ou a “senhorita”. As primeiras seriam as virgens, donzelas e recatadas, enquanto as segundas seriam as de classe baixa e solteiras. Para participar do concurso, era preciso ser uma “moça”.

Os homens e assinantes do jornal eram aqueles aptos a decidir quais mulheres eram as “moças” e as “senhoritas” para depois votar em qual seria a miss. Giovana Xavier recorda que na época existiam muitas revistas masculinas que davam dicas para o sexo e a vida doméstica para as mulheres. Para a pesquisadora, essas revistas podem ter influenciado o imaginário e direcionado a ação desses homens.

O machismo, o enfrentamento ao racismo e toda organização política negra compunham toda a esfera da comunidade negra da época. Oswaldo de Camargo, escritor e editor do Níger, diz que a imprensa negra é uma ótima maneira de entender o sujeito preto naquele período histórico. “Esse negro que está escrevendo está refletindo a sociedade negra na época, 40 ou 50 anos após a abolição. Eu chamo a imprensa negra de “o rosto escrito da sociedade negra da época”. Você quer saber como foi o negro naquele tempo? Você tem que conhecer aquilo que chamamos de imprensa negra”.

A história da imprensa no Brasil se inicia em 1808 com a fuga da família real portuguesa para a América do Sul, depois de D. João VI ser pressionado pelo governo francês de Napoleão Bonaparte. A chegada da coroa no Rio de Janeiro é o aceite da liberdade de imprensa no país e o surgimento dos primeiros periódicos, como a “A Gazeta do Rio de Janeiro” e “O Correio Braziliense”.

“O Homem de Cor”, primeiro jornal da imprensa negra, surge anos mais tarde, em 14 de Setembro de 1833, na capital fluminense. Outros veículos de comunicação desta mesma natureza logo foram produzidos, caso do “Brasileiro Pardo” e “O Cabrito”. Desde o momento de sua criação, a imprensa negra se fez presente em quase todas as décadas da história brasileira.

Esses tabloides surgem com um caráter de denúncia. Em suas páginas, editores e redatores como Paula Brito, denunciavam prisões arbitrárias e casos de discriminação racial contra a comunidade negra. Para ele, o grande crime que poderia ser cometido seria o silêncio diante do desrespeito à igualdade de direitos.

A imprensa negra assumiu um caráter bastante político de exigência de direitos e questionamento sobre o Estado. Ana Flávia Magalhães, em análise da primeira edição do “Brasileiro Pardo”, aponta em seu livro “Imprensa Negra no Brasil do Século XIX” que “as alianças entre liberais moderados e os brasileiros pardos” tinham perdido a validade em 1833, sendo vistas como farsa naquele momento. O redator do Brasileiro Pardo argumentava que, nas disputas entre corcundas (absolutistas portugueses) e liberais, os “brasileiros pardos” teriam se posicionado a favor das últimas, atribuindo ao domínio português as causas dos problemas pelos quais passavam. Porém o passar dos anos foram suficientes para entender que a sua “classe” teria sido incorporada às pelejas de 1831, não pelo reconhecimento de sua importância como membros efetivos da sociedade brasileira, mas apenas como instrumento eficaz e valioso para a derrubada do antigo imperador”. (Pág 43).

Anos mais tarde, em 1876 há uma presença também significativa da imprensa negra em Recife, Pernambuco. Tanto no século XIX quanto no XX, os ideais iluministas foram em maior ou menor medida muito presentes nos periódicos da imprensa negra de todo o país. O jornal pernambucano “O Homem” tinha em seu subtítulo uma explicação para cada um dos princípios da revolução francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.

O veículo de mídia também propunha uma reflexão sobre as decisões do Estado brasileiro. Para “O Homem”, o país gastou cerca de 600 mil contos de réis na Guerra do Paraguai, quando esse montante seria suficiente para libertar todos negros na condição de escravo no país. Mais do que isso, dos 100 mil mortos na Guerra do Paraguai, apontou-se que 93 mil eram pretos.

“O Homem” manteve vida no período pós-abolição da escravatura e a partir de 13 de Maio de 1888, passa a criticar o afastamento de negros da máquina administrativa e de cargos no campo militar. A tentativa de limitar qualquer influência política de negras e negros no caminhar da nação faz o jornal colocar em questão os avanços do fim da escravidão.

As críticas ao pós abolição também seguiram em São Paulo, com os jornais “A Pátria” (1889) e “O Progresso” (1899), ambos veículos de mídia anteriores ao Menelik. A Pátria adotou ideais iluministas e apoiou os republicanos. A partir desse olhar, criticavam as dificuldades pelas quais a comunidade negra passou no período pós 13 de Maio de 1888, com a adoção da Lei Áurea. Em um dos trechos, questiona-se: “Ontem deram liberdade ao escravizado, mas esqueceram-se de que o liberto, que se transformara em cidadão, tem direito e precisão de ter uma pátria. Sim, quem mais do que eles têm direito sobre o solo em que pisam?” (A Pátria, n. 2, p. 2).

O Progresso, que fazia forte lembrança a abolicionistas como Luiz Gama, saudava o coletivismo negro e colocava a educação como imprescindível para superar a posição do negro na sociedade. Com as mesmas oportunidades, negros e brancos desenvolveriam as mesmas aptidões.

Essa imprensa paulista também combateu o subsídio estatal para a vinda de imigrantes europeus para o Brasil. Se rebatia essa possibilidade em todas as esferas. A soma de fatores encontrava: o absurdo da vontade de embranquecer a nação, a ideia de que o trabalhador branco europeu saberia melhor para manejar as terras e a agricultura brasileira do que o negro, já acostumado com a colheita, e o alto investimento do Estado para trazer esse trabalhador em tempo de ajuste fiscal.

Mídia politizada?

Oswaldo de Camargo, escritor e um dos editores do Níger, periódico da imprensa negra, explica que essa mídia tinha um caráter de educação e reflexão política. “É uma imprensa que quer educar. Ela não quer apenas noticiar, ela quer educar. Ela quer fazer uma nova abolição. Essa palavra foi cunhada na época. Era necessário fazer uma nova abolição. A maior parte dos que estão fazendo essa imprensa perceberam que a abolição tal como foi feita não teve o resultado que devia ter. A maior parte dos negros continua marginalizada, continua analfabeta, as mulheres continuam a maior parte empregadas domésticas. Uma boa parte dos homens estão muitas vezes desempregados”.

Entre as folhas da maioria dos jornais da imprensa negra é possível ver notas de falecimento, datas de aniversário, divulgação de eventos sociais, além de espaço significativo para contos e poesias. Essa característica foi entendida como motivo para descrever a imprensa negra do século XIX e início do século XX como despolitizada. Giovana Xavier, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), discorda e acredita que “esses jornais tinham a pretensão de ser um espaço de aprendizado e formação pedagógica para a comunidade negra. Há uma série de textos contra o alcoolismo, sobre a importância da higiene pessoal, da importância do cuidado com as crianças, de denúncia da exploração no trabalho doméstico. Reduzir esses jornais à divulgação de festas e eventos é uma perspectiva muito influenciada por Roger Bastide”.

Roger Bastide participou de um momento importante da história brasileira de reflexão sobre a condição do negro no país. O pesquisador desenvolveu estudos sobre a imprensa negra no estado de São Paulo e se transformou em referência na área. Para ele, esses eram jornais de integração da comunidade negra, reivindicação, mas sob a influência da ideologia dominante. Somente na segunda fase da imprensa negra, pós 1920, Bastide acredita que a imprensa negra ganharia o caráter político. Ele ainda pontuava que a imprensa negra era um jornalismo adicional, que poucas informações trazia e ainda superestimava os valores negros.

Giovana Xavier critica essa posição e esse olhar para a comunicação negra. “Tudo depende de quem lê e de como se lê esses jornais negros. Se eles são lidos a partir de um ponto de vista de produção de conteúdo branco, de sistematização do conteúdo branco, eles vão ser interpretados assim, como jornais despolitizados e festivos no sentido pejorativo e racista de festa”.

A professora da UFRJ exalta a imprensa negra e a coloca como um ato de rebeldia diante da realidade racista. “A grande questão desse material é propor um projeto político para a população negra naquele momento que passasse pela centralidade da escrita. Independente dos conteúdos que têm ali dentro, só isso já é muito revolucionário e transgressor”.

Movimento negro

Os jornais negros estavam muito vinculados às associações pretas nas diferentes cidades. Muitos eram os porta-vozes de organizações que promoviam eventos e encontros sociais. Diferente do que é posto, essas associações tiveram posicionamentos políticos para a comunidade negra.

“A Voz da Raça”, um dos mais importantes jornais negros do país, é um ótimo exemplo. Canal de comunicação da Frente Negra Brasileira, o tabloide tinha uma função estratégica para as diretrizes do movimento, que acreditava na formação como essência para uma ação política eficiente.

Giovana Xavier recorda a existência do “O Quilimbo”, folhetim do Teatro Experimental do Negro, criado por Abdias Nascimento e apresenta algumas características dessa imprensa. “Então tinha essa interface. Tinham alguns jornais que eram autônomos, mas geralmente eram veículos de comunicação de associações. A história da imprensa negra é a história do associativismo negro”.

Na década de 1950, o jornal “Mundo Novo” denuncia a forma como o voto negro era manipulado e diz que era preciso lutar por uma verdadeira democracia racial no país. O periódico se colocou então a favor da candidatura de um negro, Geraldo Campos de Oliveira ao legislativo.

A pluralidade de opinião desse movimento negro era notória. Se “A Voz da Raça” apresentava a Frente Negra Brasileira, a mesma organização boicotava e se opunha aos jornais “O Clarim da Alvorada” e “Chibata”, que faziam críticas às ideias e aos valores da organização.

Giovana Xavier ressalta que a imprensa negra é mais do que a associação com o movimento negro. “Assumir uma imprensa adjetivada pelo negro é um tipo de ativismo muito forte, porque é de novo assumir um lugar que não é pensado para a gente, o lugar da produção e sistematização de conteúdo escrito, que na verdade é um fator que mais nos pretere do que nos inclui, da maneira que as coisas são criadas. A imprensa negra é uma modalidade de movimento negro”.

Ela ainda cita exemplos contemporâneos para ilustrar essa condição. “Você pensa na relevância que um portal como o das Blogueiras Negras tem, com a quantidade de textos e de mulheres se descobrindo autoras. Não consigo muito separar, eu prefiro pensar a imprensa negra dentro do movimento, com a centralidade da palavra escrita”.

Os jornais de mídia negra também possibilitaram uma série de contatos internacionais com o movimento e o pensamento preto. Em São Paulo, a imprensa negra deu destaque para os textos de Marcus Garvey e a explicação sobre o que seria o pensamento e a prática pan-africanista.

Mais do que isso, Amilcar Pereira em sua obra “Mundo Negro: Relações Raciais e a Constituição do Movimento Negro Contemporâneo” apresenta como os jornais negros de Chicago e Baltimore muito exaltavam, na primeira metade do século XX, o movimento negro brasileiro. Existia uma admiração notória à Frente Negra Brasileira, colocada como uma das organizações mais poderosas do país.

Machismo

Muitos dos jornais da imprensa negra carregavam em seus títulos a proposta de dialogar com os “homens de cor”. A exclusão da mulher negra deste espaço é objeto de estudo de Giovana Xavier, no artigo “Leitoras: Gênero, Raça, Imagem e Discurso em O Menelik”. Para ela, a resistência preta nos EUA e no Brasil coloca o homem como figura principal no processo.

O papel das mulheres nesses jornais foi importante, mas em muitos casos se resumiu aos bastidores. Os homens negros se valeram de identidades centradas na masculinidade para silenciar mulheres negras, inclusive assinando textos escritos por elas. Giovana enfatiza que o mundo da escrita não pertence às mulheres, muito menos às negras. “Ou seja, jornalistas negros alimentaram as políticas de silenciamento de mulheres negras. E no nosso caso isso é complicado porque produz uma sensação permanente de não lugar dentro da comunidade preta e fora com os grupos brancos”.

Em 1916, O Menelik abre as suas páginas com uma chamada para um concurso de beleza para mulheres negras. A vencedora estamparia a primeira página. Para vencer, não bastava ser bela. Era preciso ser recatada, simpática e estar de acordo com os padrões comportamentais das mulheres brancas.

Nesses concursos, organizados por homens negros, existiam dois tipos de mulher de acordo com as definições apresentadas, a “moça” ou a “senhorita”. As primeiras seriam as virgens, donzelas e recatadas, enquanto as segundas seriam as de classe baixa e solteiras. Para participar do concurso, era preciso ser uma “moça”.

Os homens e assinantes do jornal eram aqueles aptos a decidir quais mulheres eram as “moças” e as “senhoritas” para depois votar em qual seria a miss. Giovana Xavier recorda que na época existiam muitas revistas masculinas que davam dicas para o sexo e a vida doméstica para as mulheres. Para a pesquisadora, essas revistas podem ter influenciado o imaginário e direcionado a ação desses homens.

O machismo, o enfrentamento ao racismo e toda organização política negra compunham toda a esfera da comunidade negra da época. Oswaldo de Camargo, escritor e editor do Níger, diz que a imprensa negra é uma ótima maneira de entender o sujeito preto naquele período histórico. “Esse negro que está escrevendo está refletindo a sociedade negra na época, 40 ou 50 anos após a abolição. Eu chamo a imprensa negra de “o rosto escrito da sociedade negra da época”. Você quer saber como foi o negro naquele tempo? Você tem que conhecer aquilo que chamamos de imprensa negra”.

Para saber mais:

Imprensa Negra no Brasil Século XIX – Ana Flávia Magalhães Pinto

“Leitoras”: Gênero, Raça, Imagem e Discurso em O Menelik (São Paulo, 1915-1916) – Giovana Xavier da Conceição Côrtes

O Mundo Negro: Relações Raciais e a Constituição do Movimento Negro Contemporâneo no Brasil – Amilcar Araújo Pereira

Tinta Preta e Pele Escura: A necessidade de uma Imprensa Negra – Solon Neto

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