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Infância e luta por moradia no assentamento Estrela de Davi

Imagem representa tristeza por ter sofrido assédio

Foto: Imagem representa tristeza por ter sofrido assédio

30 de outubro de 2017

A vida das famílias sob ameaça de reintegração de posse e a supressão de direitos em um dos sete assentamentos de Bauru-SP

Texto / Bibiana Garrido, Lucas Zanetti
Fotos / Elisa Esposito, Thamires Motta

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“A verdade nua e crua ninguém quer mostrar, porque se mostrar acorda o povo”. É assim que Sarah de Jesus Ferreira Guimarães começa a falar sobre a experiência no assentamento Estrela de Davi, na zona norte de Bauru, interior de São Paulo. A família dela é uma das 500 que atualmente lutam por moradia e contra a ordem de reintegração de posse expedida pelo prefeito Clodoaldo Gazzetta (PSD), marcada para o dia 23 de outubro, porém adiada.

Em uma pequena casa feita de madeira, Sarah vive com o marido, Cristiano Ribeiro Guimarães, e com sete de suas oito filhas desde o ano passado. A casinha de quatro cômodos, construída em meio à centena de lotes 5X20m, é conhecida pelos íntimos como “casa das sete mulheres”.

Desempregados, foram despejados da casa em que viviam na cidade vizinha, Pederneiras, por não conseguirem arcar com os custos do aluguel. Foi então que procuraram pela Secretaria do Bem Estar Social de Bauru (SEBES), que indicou o assentamento organizado pelo Movimento Social de Luta dos Trabalhadores (MSLT).

Na área de casa, Sarah arruma sandália de uma das filhas enquanto observa as meninas de longe (FOTO: Elisa Espósito)

 “Quando meu pai e minha mãe estavam construindo a casa, eu dormia debaixo de chuva para carpir o terreno e terminar. A gente ficou na casa da minha tia. No começo a gente tinha medo de onça”, conta Mariana, de sete anos, sobre o mato que rodeia o assentamento. “Depois vi que era natureza de flores e plantas, e aí a gente gostou”.

Sabrina, a filha mais velha, mora com a avó e faz faculdade de psicologia. Lívia, de 14 anos, divide as tarefas domésticas com Maria Eduarda, 12 anos. Na parede da cozinha há uma pequena lista riscada em giz de cera sob a madeira, com os nomes das responsáveis pela louça em cada dia da semana.

Glaucielle, Lorena e Mariana são mais novas, arrumam suas camas, tiram o lixo, pegam os brinquedos espalhados pelo chão e cuidam dos mais de dez animais adotados pela família Guimarães: gatos, cachorros, patos, coelhos, porquinhos da índia, galinhas, um galo e pintinhos. São os xodós do seu Cristiano, para quem sempre cabe mais um bicho no quintal.

No quarto, Sarah conta da situação do assentamento e da preocupação com o destino das famílias, já que a maioria não tem para onde ir se forem expulsas do Estrela de Davi. Ao lado, na sala improvisada como quarto, as filhas ficam agitadas com as visitas. Maria Eduarda não desgruda do urso de pelúcia, Lorena lê a edição ilustrada do Novo Testamento, Lívia limpa a cozinha e Mariana, a mais falante, conta as histórias da família. Glaucielle e as bebês, Helena e Ester, estão na escola.


Mariana, à direita, e sua irmã Lorena brincam na janela (
FOTO: Thamires Motta)

Sentada na mesa da cozinha, com um sorriso no rosto, Mariana conta que sonha em ser médica e que gosta de acompanhar a mãe nos atos do MSLT. A criança autista sofre com constantes crises de choro e foge de casa à noite para se esconder, porque não quer ir embora. Ela fala que gosta dos amiguinhos que fez e não quer deixá-los. Já Lívia explica que é bom ter um lugar próprio para morar com segurança, mas que é ruim “ser longe de tudo”.

Sem resolver o impasse com a prefeitura não é possível levar ao bairro o básico para a sobrevivência. As escolas, hospitais e comércio da região são longe para quem anda a pé. Como solução imediata os moradores brigam para que os ônibus circulem na região com mais frequência.

Na rua ao lado mora Luana, com o esposo Wanderson e os filhos João Gabriel e Caio Vinícius. A amiga de Sarah conta que chegou no assentamento desempregada, assim como o marido, ex-funcionário da falida empresa Ajax, em Bauru. Graças a alguns bicos aqui e ali, conseguiram erguer uma casa no Estrela.

Lista das responsáveis pela louça em cada dia da semana. Quando chegamos, Lívia arrumava a cozinha (FOTO: Elisa Espósito)

“Aqui é um por todos e todos por um, é uma família”. Sempre que possível Luana compartilha das compras de mercado, se falta na casa de alguém. “A gente não quer moradia de graça. A gente quer pagar mas não tem condição de financiar uma casa”, desabafa a moradora. “Hoje a gente malemá tem condição de sustentar um filho com um salário mínimo”.

Bauru vive um cenário alarmante: enquanto 73,7% da população tem renda de até dois salários mínimos, segundo dados de uma pesquisa encomendada pela Empresa Municipal de Desenvolvimento Urbano e Rural de Bauru (EMDURB), cerca de 4 mil famílias estão cadastradas e são moradoras dos sete assentamentos com bandeira do MSLT na cidade, de acordo com a coordenadoria do movimento.

Segundo a coordenação, somente seis famílias decidiram sair do Estrela de Davi depois de anunciado o procedimento de reintegração de posse pela prefeitura. Das 500 famílias que ainda estão ali, ninguém sabe ao certo para onde ir. “Não tem emprego. A gente pede auxílio, a SEBES não dá condição, e se a gente for parar na rua as crianças vão pro Conselho Tutelar”, denuncia Luana. Quando estava finalizando um processo seletivo para ser contratada, perdeu a vaga ao dizer que morava no assentamento.

Brechó da vizinhança, roupas a partir de 1 real e uma alternativa para conseguir renda (FOTO: Elisa Espósito)

O preconceito com pessoas assentadas é grande não só no mundo dos adultos, mas também entre as crianças. Maria Eduarda, logo de manhã, já pensa na conversa que vai enfrentar pela tarde na escola em que estuda, a E.E. Padre Antônio Jorge Lima no bairro Nobuji Nagasawa, próximo ao Estrela de Davi.

“Na minha escola tem preconceito com a gente. Tem mais dez crianças daqui que estudam lá no Padre, tem uma outra aluna que chamou a gente de favelado, meus pais de drogado. Então hoje a gente vai conversar com ela porque a gente assume que mora no assentamento”, explica a menina de 12 anos. “A gente não tem vergonha de morar aqui”.

Patrícia Regina Hortêncio é uma das coordenadoras do Estrela de Davi e salienta a contradição nas ações do poder público. “A prefeitura repassa a responsabilidade pela assistência social ao MSLT, 30% das famílias que estão aqui no assentamento foram encaminhadas pela SEBES. Agora a prefeitura ameaça a reintegração de posse”, explica.

O terreno atualmente ocupado pelo Estrela de Davi na Quinta da Bela Olinda estava sem uso há 25 anos. Até 2012 eram lotes urbanos. No mesmo ano o então prefeito Rodrigo Agostinho, amparado pela justificativa de atrair empresas e indústrias para a cidade, transformou a área no Distrito Industrial IV. Em 2016, início da ocupação pelo MSLT, o projeto ainda não havia sido concretizado e os lotes seguiam sem uso.

O conflito de interesses é o maior adversário do direito à moradia. Os moradores denunciam que grande parte da mídia ignora as demandas dos moradores e buscam criminalizar o movimento. “Se acontece qualquer coisa aqui a mídia vai botar a culpa no movimento, então a gente toma cuidado até com roupas curtas no caso das mulheres”, lamenta Patrícia.

Brechó da vizinhança, roupas a partir de 1 real e uma alternativa para conseguir renda (FOTO: Elisa Espósito)

As regras no assentamento são formas de evitar os constantes ataques, a criminalização do movimento e uma forma de organização. “É um movimento social e é tudo democrático, tem regras e se não cumprir toma advertência. Não pode drogas no assentamento, por exemplo. Se acontecer, tem 12 horas para sair”, explica Sarah.

Sentada na janela da casa está Mariana, mostrando todos os ursos de pelúcia e apontando suas respectivas donas. O elefante, menorzinho e um pouco sujo de terra, é o dela. “Quando a gente chegou, no ano passado, eu ainda tinha seis anos, mas o tempo passou rápido e já fiz sete. Agora já vou fazer oito de novo”, conta, antes de correr para perguntar à mãe qual era o dia de seu aniversário. “5 de fevereiro!”.

No quintal de terra batida, Lorena abraça a mãe. Sarah, assim como os demais moradores, pretende resistir e lutar pelo direito a uma das condições de vida mais básicas: a habitação. Com a ordem de reintegração de posse adiada e sem previsão de acordos que contemplem todas as famílias assentadas, o caminho é longo e muito precisa ser feito. No Estrela de Davi, o consenso é fazer valer a Constituição e o direito à moradia digna.

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