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Moradia própria ainda é uma realidade distante para a população negra

A falta de dinheiro para construir e comprar resulta em um Brasil com déficit habitacional de cerca de 6 milhões de casas, o que resulta em 30 milhões de pessoas sem ter onde morar

 

Imagem: Dora Lia Gomes/Alma Preta Jornalismo

Foto: Imagem: Dora Lia Gomes/Alma Preta Jornalismo

17 de abril de 2023

O sonho da moradia própria é uma realidade distante para a população negra do Brasil. Apesar de programas sociais, como o “Minha Casa, Minha Vida” buscarem amenizar os efeitos do déficit habitacional em todo o território brasileiro, três em cada 10 brasileiros (sendo dois negros) ainda moram de aluguel, em ocupações ou de favor com outras pessoas, segundo dados do Datafolha.

Atualmente, o Brasil possui um déficit habitacional de 6 milhões de domicílios, segundo a última pesquisa da Fundação João Pinheiro (FJP). Ao multiplicar esse dado pelo número médio de habitantes por domicílio, o resultado quantitativo é de quase 30 milhões de pessoas sem moradia.

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No entanto, os números não batem: ao mesmo tempo em que há tantas pessoas sem ter um lugar para morar, existem 6,8 milhões de imóveis desocupados e sem uso nos centros das grandes cidades do país, segundo a FJP.

“Infelizmente, nos últimos quatro anos, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) interrompeu o Minha Casa, Minha Vida e abriu o Casa Verde e Amarela, que não era pensado para a faixa um, que são as pessoas em vulnerabilidade e que são maioria afetada pelo déficit habitacional”, é o que enfatiza o Arquiteto e Urbanista Dênis Pacheco, Gerente de Programas do Habitat para a Humanidade Brasil.

Casa própria, mas insalubre

Dênis Pacheco salienta que é importante compreender os dois tipos de déficits habitacionais: o quantitativo, ou seja, de pessoas que não têm casa para morar, e o qualitativo, que tange às pessoas que têm uma moradia insalubre.

Dados mais recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que 66,4% dos lares brasileiros são próprios. Outros 6,1%, são próprios, mas ainda estão sendo pagos. Porém, a última pesquisa da FJP mostrou que quase 25 milhões de domicílios brasileiros são considerados inadequados no Brasil.

Isso se dá devido a três fatores principais: a carência de infraestrutura, que se refere à moradia localizada em territórios sem acesso a serviços básicos, como coleta de lixo, acesso à água e saneamento; carência edilícia, que considera o que existe da porta de casa para dentro, revelando inúmeras casas que não possuem banheiro, ou só contam com um cômodo para todos os moradores, por exemplo; e irregularidade fundiária, que geralmente acontece quando uma família é dona da casa – ou seja, da construção propriamente dita – mas não é detentora do terreno onde vive, o que a deixa mais propensa a sofrer ameaças de despejo e remoção irregulares.

Outro dado alarmante é que o Brasil tem 3,9 milhões de pessoas (62% negras) que vivem em 13.297 áreas de risco. Dessas, quatro mil localidades são classificadas como de “risco muito alto”, de deslizamentos e inundações, por exemplo. Já o número de áreas classificadas como de “risco alto” é de 9.291. Os dados podem ser visualizados no painel do Serviço Geológico do Brasil, vinculado ao Ministério de Minas e Energia.

“São moradias precárias, mas que causam doenças ao próprio morador. A pessoa tem um teto, mas é um teto extremamente precário, que potencializa ainda mais as vulnerabilidades preexistentes dessa família”, comenta o Gerente de Projetos do Habitat para a Humanidade.

Quanto custa ter uma casa para chamar de sua?

De acordo com o IBGE, o custo nacional da construção, por metro quadrado, foi de R$ 1.652,27 em julho de 2022, sendo R$ 987,88 relativos aos materiais e R$ 664,39 à mão de obra. Esse valor é 14% maior do que em 2021 (R$ 1.448,78).

Para calcular o custo médio, o instituto considera apenas a construção. Não entram na conta os gastos com terreno, despesas com projetos em geral, licenças, seguros, instalações provisórias e equipamentos em geral.

Na prática, para construir uma moradia de 80 metros quadrados, por exemplo, se gasta, em média, R$ 132 mil. Mas esse valor já foi bem menor: em 2013 o preço médio era de R$ 835,95.

Considerando os estados, o Rio de Janeiro é o lugar onde é mais caro construir: são R$ 1.818,89 por metro quadrado, em média. Esse valor cai para R$ 1.446,76 em Sergipe – estado onde é mais barato levantar um imóvel. Logo, na prática, se gasta, em média, R$ 145 mil para construir uma casa de 80 metros quadrados no Rio de Janeiro, e R$ 115 mil no Sergipe – uma diferença de 26%.

Quanto às regiões do Brasil, o valor médio de construção de uma moradia por metro quadrado é o seguinte: Nordeste, R$ 1.546,52; Norte, R$ 1.622,08; Centro-Oeste, R$ 1.658,26; Sul, R$ 1.717,01; e Sudeste, R$ 1.793,94.

Já quem não tem imóvel próprio desembolsa, em média, 31% da renda familiar com o pagamento do aluguel, segundo o Censo Quinto Andar de Moradia, realizado em parceria com o Datafolha. O valor médio de aluguel no Brasil é R$ 686, mas pode chegar a muito mais dependendo da região.

A média mais cara é a do Sudeste, no valor de R$ 824, ou 34% da renda familiar, com quase o dobro do valor cobrado no Nordeste R$ 400 (27% da renda familiar).

Já o financiamento imobiliário tem um valor médio mais alto, mas compromete menos o orçamento das famílias. Com isso, os dados “indicam que a renda média de quem tem a casa própria é, sim, superior à da renda daqueles que moram de aluguel”, explica Thiago Reis, gerente de dados do QuintoAndar.

Segundo a pesquisa, o financiamento compromete 27% da renda familiar no país e uma parcela custa R$ 715,00. O estudo aponta ainda que, entre as regiões metropolitanas, o financiamento mais caro é o de São Paulo (R$ 1.206), à frente do Rio de Janeiro (R$ 1.111) e de Belo Horizonte (R$ 827).

Tijolo por tijolo

Desde 2016, a cabeleireira guarulhense Patrícia Santos tenta melhorar as condições da casa em que mora com o pai. Na época, a moradia estava precária, com chão de terra batido, partes feitas de madeira (barraco), com atraso nas contas de água e luz. Ela conta que devido ao alcoolismo do pai, desde 1999 a casa estava nesse estado.

Aos poucos e com muita luta, a mulher negra começou a comprar os materiais com o dinheiro que juntava e, às vezes, utilizava o cartão de crédito emprestado de suas cunhadas. De segunda à sexta, Patrícia trabalhava fixa como costureira. Depois do expediente e aos finais de semana, ela atendia a domicílio suas clientes de cabelo, unhas e depilação, até 0h, 1h30 da manhã. Seu companheiro na época era responsável por pagar as contas de dentro de casa e a obra ficava por responsabilidade dela.

“A situação ficou difícil quando meu pai teve um AVC, em 2018. Eu havia construído apenas dois cômodos, e tive que parar. Eu ia fazer quatro cômodos – dois em cima, dois embaixo – mas não tive mais condições financeiras e nem pedreiro para fazer o serviço”, conta.

A cabelereira, manicure e depiladora Patrícia Santos, durante a construção de sua casa e salão | Créditos: Acervo PessoalA cabelereira, manicure e depiladora Patrícia Santos, durante a construção de sua casa e salão | Créditos: Acervo Pessoal

Em novembro de 2018, o ex-marido de Patrícia cometeu suicídio dentro da casa, que ainda não estava acabada. Nessa época, a depiladora teve que se desdobrar com os cuidados com o pai, que havia ficado com sequelas do AVC, das contas de casa e da construção de uma moradia digna para ela e seu pai.

“Desde o início eu sempre quis fazer um salão para eu poder trabalhar, por meu pai ser alcoólatra. Em 2020 eu voltei a mexer na obra, fiz o salão na frente e fiquei com dois cômodos no fundo”, relata.

Com a dificuldade de encontrar pedreiros, Patrícia meteu a mão na massa com seu atual companheiro, que aprendeu a fazer as coisas pela internet. Hoje, depois de muita luta, ela conseguiu organizar um espaço para que pudesse trabalhar, mas mesmo assim afirma que existem melhorias a fazer, pois o custo de construção, segundo ela, é muito alto.

O P&D Studio de Beleza depois de pronto | Créditos: Acervo PessoalO P&D Studio de Beleza depois de pronto | Créditos: Acervo Pessoal

Obras inacabadas

Empréstimos, cartões de crédito, preparação financeira e utilização de terreno dos pais. Nem todo esse combo foi suficiente para que a jornalista e analista de mídias sociais Gabriela Oliveira conseguisse concluir o projeto de sua moradia própria sem dívidas ou coisas ainda por fazer.

Desde setembro de 2021 ela e o noivo buscam concluir a obra em Guarulhos (SP), que consiste em um quarto, uma cozinha dividida com a sala e um banheiro, cômodos edificados em cima da casa de seus pais, que são feirantes. Com problemas com pedreiros, Gabriela e o noivo passaram a trabalhar na construção.

“Quando a gente subiu para a casa, só tínhamos o quarto pronto. Foi demorando alguns meses para se fazer o restante. Não conseguimos até hoje fazer a escada, então subimos por um tipo de barranco”, descreve.

Acesso à casa de Gabriela Oliveira. Sem recursos, ela não conseguiu ainda concluir a escada | Créditos: Acervo PessoalAcesso à casa de Gabriela Oliveira. Sem recursos, ela não conseguiu ainda concluir a escada | Créditos: Acervo Pessoal

Gabriela conta que o terreno foi comprado pelos pais com o prêmio que eles ganharam no concurso Papa Tudo. Foi aí que eles levantaram alguns cômodos e mesmo sem acabamento, optaram por se mudar para uma casa própria.

“Contudo, apesar da minha casa estar inacabada e a dos meus pais também, é melhor morar assim do que pagar aluguel”, destaca.

Dívidas, dificuldades e planejamento financeiro

Gabriela contou à Alma Preta que, em média, gastou mais de R$ 65 mil na obra até o momento, o que a deixou com muitas dívidas, inclusive com pedreiros. “Ficou dívida de cartão, de empréstimo, de parcelamento, juros. Fora o material, móveis. E a gente ainda não acabou”, diz.

Apesar do planejamento financeiro – realizado por ela e pelo noivo desde 2017 – Gabriela diz que o valor gasto superou e muito as reservas, que eram de mais ou menos R$ 6 mil. Além disso, ela precisou fazer uma cirurgia ortognática em 2021, o que fez o casal utilizar do dinheiro guardado para o pagamento de fisioterapia.

Para terminar a casa, pelos cálculos de Gabriela, é necessário o valor de R$ 10 mil, montante fora do orçamento dela no momento e que não considera suas dívidas atuais, que acumulam cerca de 30 mil.

Gabriela Oliveira, durante a construção de sua casa | Créditos: Acervo PessoalGabriela Oliveira, durante a construção de sua casa | Créditos: Acervo Pessoal

E para quem busca financiar um imóvel em vez de construir, é ilusão pensar que não terá dívidas ou que um planejamento financeiro é suficiente para não ficar no vermelho. É o caso de Ana Maria Aleixo, atendente financeira, que financiou um imóvel recentemente em Indaiatuba (SP).

“Mesmo tendo um valor guardado, devido a um bem que vendemos, ficamos com dívida. Na teoria, o financiamento que eu fiz, de 40 anos, não pode comprometer mais do que 30% da renda familiar, mas confesso que está custando um pouco mais”, detalha Ana Maria.

Ocupações cumprem o que o Estado deixa a desejar

Outra realidade no Brasil é a moradia coletiva em ocupações e acampamentos, espaços que abrigam cerca de 142 mil famílias espalhadas por todo o país, sendo elas majoritariamente negras.

Localizado em Valinhos, na região de Campinas (SP), o acampamento Marielle Vive, por exemplo, é uma ocupação rural que luta contra o déficit habitacional brasileiro – função que, segundo a acampada, arquiteta e professora Cíntia Zaparoli, é pertinente ao Estado.

A ocupação se tornou referência em produção de alimentos saudáveis, alfabetização, cultura e convivência para 400 famílias, sendo o maior acampamento do MST no Estado de São Paulo. O que antes era uma grande área improdutiva, hoje recebe os cuidados coletivos das famílias que vieram das periferias de cidades como Valinhos, Vinhedo, Limeira, Campinas, Hortolândia, Sumaré e Americana.

A área foi ocupada em 14 de abril de 2018, exatamente um mês depois da execução da vereadora Marielle Franco, cujo nome, em homenagem, batiza também o acampamento. Hoje, o acampamento conta com uma horta Mandala, que abastece não só as famílias que vivem na área, mas também as ações de solidariedade contra a fome; recebe oficinas de formação das mais variadas; e já alfabetizou seus moradores.

Cíntia Zaparoli conta que o acampamento já passou por cinco reintegrações de posse e que na pandemia serviu de abrigo para as famílias em vulnerabilidade social, em especial, para também evitar o contágio do coronavírus no deslocamento.

A própria prefeitura de Valinhos já indicou a ocupação para pessoas que buscavam um local para morar, segundo ela, o que coloca acampamentos como referência de como o Estado deveria agir com pessoas que precisam ter um lugar para morar: tratando-as com dignidade.

“Várias pessoas que moravam na rua vieram para o acampamento, algumas ficam, outras não, mas todos têm suas tarefas, como segurança, cozinha, horta, educação por exemplo. Tudo alinhado à luta do MST”.

Leia também: ‘100 dias de governo Lula: o que foi feito para a população negra’

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