“Eles estão envenenando a gente”. A fala é de uma moradora de Cachoeira do Arari (PA), no Arquipélago do Marajó, cidade localizada a quase 130 quilômetros da capital paraense. Ela se refere ao uso de agrotóxicos nas plantações de arroz da cidade.
O cultivo de arroz passou por uma expansão desenfreada na região na última década, impulsionado pela instalação da família Quartiero. As fazendas de arroz mantidas pela família se ampliaram para a zona urbana do município e já abrangem cerca de 30% do território.
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A moradora, que não quis se identificar por temer retaliações, denuncia que diariamente um avião da empresa sobrevoa a cidade e pulveriza a extensa área da plantação. De acordo com seu relato, o vento leva o agrotóxico também para as residências das pessoas que moram na região. Como resultado, a população tem desenvolvido doenças respiratórias, inflamações e irritações na pele, com danos ainda aos animais e à pequena agricultura desenvolvida nos quintais dos moradores.
“Não tem porque sobrevoar a cidade inteira e pulverizar até as roupas e fraldas das crianças que estendemos nos quintais, Era para passar apenas no plantio deles. Eu e meu filho já desenvolvemos várias doenças, como rinite e sinusite. Já fui bater no hospital de madrugada para tomar injeção, antialérgico e não dá jeito. Isso é um problema generalizado no município. As autoridades ainda não se atentaram para a gravidade do que essas pessoas estão fazendo com a gente”, conta.
Agronegócio acumula problemas no Pará
Em agosto, a Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública do Pará realizou uma visita técnica à cidade e constatou os diversos problemas causados pelo agronegócio. Além dos danos à saúde provocado pelos agrotóxicos, a falta de moradia em razão da expansão da rizicultura (nome dado ao cultivo agrícola de arroz) também é uma realidade.
Isso porque, de acordo com moradores, existe um projeto federal para a construção de moradias populares, mas devido ao crescimento dos arrozais a área que restaria para a obra seria um terreno de menos de um hectare. Por esse motivo, cerca de 600 famílias ocuparam uma zona de arrozais na entrada da cidade, reivindicando que a área total de 13 mil hectares seja desapropriada para construção das habitações.
A situação é alarmante também em relação ao rio Arari, via de acesso ao município e fonte de abastecimento e sustento para as comunidades. Para irrigar a plantação, a empresa criou um sistema de desvio das águas do rio que afeta a pesca, a reprodução de peixes e a subsistência da maioria das famílias do município, além da contaminação por causa do uso de veneno.
Há relatos de aterramentos de lagos e igarapés e devastação na área florestal, que abala o agroextrativismo de espécies como tucumã e bacuri e a vida animal. Os marrecos, inclusive, aves típicas das florestas de Cachoeira do Arari e que integram a famosa culinária tradicional do município, quase desapareceram, aponta a denúncia, após o desmatamento sem controle pelos arrozeiros.
Outra situação de violação de direitos dos moradores de Cachoeira do Arari é quanto à suposta cobrança aos pescadores para adentrarem na área do rio Arari, onde ficam as fazendas de arroz. Alguns pescadores afirmam serem obrigados a pagar para pescar e que a cobrança é feita de acordo com a quantidade do pescado, chegando a pagar R$ 3 por cada quilo de peixe. Também houve denúncias de pescadores que são ameaçados por pistoleiros dos arrozais, que não permitem que os barcos trafeguem no rio.
Um relatório da visita institucional foi elaborado e encaminhado aos órgãos competentes. A Defensoria Agrária de Castanhal recebeu o documento e já pediu a habilitação do processo judicial, que tramita na Vara Única de Cachoeira do Arari. “A juíza determinou a intimação do Ministério Público para se manifestar com relação ao nosso pedido. Além disso, a gente já instaurou um procedimento administrativo com várias diligências e oficiamos órgãos ambientais e de investigação. A gente também vai fazer uma análise fundiária do território, considerando que ele está em uma área de cerca de 13 mil hectares e que existem regras e normas de limitação do uso do solo”, explicou a defensora pública agrária de Castanhal, Andréia Barreto.
“Após essa diligência, vamos concluir qual é a outra forma de atuação, já que o processo judicial trata especificamente da ação possessória, mas a Defensoria vai atuar em outras frentes e assegurar o direito à moradia e proteção das comunidades tradicionais na área do entorno do conflito”, finaliza a defensora pública.
‘Empresa só deixa o veneno para o município’
Para a visita técnica, a comitiva da Ouvidoria foi recebida pelo prefeito de Cachoeira do Arari, Antônio Augusto Figueiredo (MDB), para tratar sobre a reivindicação da moradia e sobre o crime ambiental. O gestor da cidade afirmou que, à época da chegada no município, há 13 anos, o projeto do arrozal foi liberado pelo governo estadual, mas que, atualmente, a empresa só deixa “o veneno” para o município.
O prefeito também informou que está em negociação com o governo federal para implantação de um projeto de moradias populares na área ocupada, a partir da desapropriação da plantação de arroz. Essa área também é reivindicada pela família Quartiero, mas o gestor da cidade disse que a terra é pública e que a documentação apresentada pelo arrozeiro é ilegal.
Para uma outra moradora ouvida pela reportagem, porém, o prefeito não toma providências em relação aos danos da expansão do cultivo. “Nós procuramos a Prefeitura, a Secretaria de Meio Ambiente e eles não nos respondem, não interagem nas postagens de redes sociais que denunciam o problema. A prefeitura precisa tomar uma providência”, diz.
A Alma Preta procurou a Prefeitura de Cachoeira para falar sobre o assunto. Até a publicação deste texto, não houve resposta. Caso a gestão municipal se posicione, o texto será atualizado.
Uma versão anterior desta reportagem afirmava que a família Quartiero, alvo das denúncias de moradores da região do Arquipélago do Marajó, controlava a Camil Alimentos, uma das maiores produtoras de arroz do Brasil. Procurada pela reportagem, a empresa afirmou “não ter qualquer relação” com os negócios da família Quartiero em Cachoeira do Arari. Segundo a Camil, apesar do mesmo sobrenome, nenhum membro da família “faz parte do quadro societário e nem figura entre os fornecedores da companhia”. A informação foi corrigida.