A apuração da maioria dos assassinatos ocorridos no Rio de Janeiro em 2020 e decorrente de ações policiais está parada ou em um ritmo muito lento no Ministério Público do estado. A denúncia foi feita por advogados ouvidos pela Alma Preta.
Segundo informações documentadas pela Rede de Mães Contra a Violência do Estado, desde 2016, são 70 inquéritos parados. Os casos eram apurados pelo Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (Gaesp), criado em 2015 para atuar em invetigações relacionadas a crimes envolvendo policiais militares e civis.
“Basicamente todos os casos envolvendo policiais, em que as pessoas morreram por violência, mas não houve registro de resistência, como foi o caso da Ágatha, estão travados. No início deste ano aconteceu uma reformulação que acabou com todos os grupamentos, como era o caso do Gaesp, que cuidava de vários casos de violência policial no Rio”, relata o advogado Rodrigo Mondego, membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ.
A justificativa dada por funcionários do órgão é de que a demora na apuração dos casos é consequência do período pandêmico. “Fomos informados que os procedimentos estavam bastante paralisados em razão da pandemia”, relata uma ex-promotora do Grupamento Especial de Segurança Pública, que não terá o nome revelado pela reportagem para a preservação de sua identidade.
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O prazo definido por lei para a conclusão de um inquérito é de 30 dias, mas em 95% das delegacias do Rio de Janeiro pode levar até dois anos. Segundo o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), a demora para conclusão de inquéritos é resultado da estrutura precária das delegacias.
Por outro lado, quem já está familiarizado com o sistema contesta. “A gente culpa muito as delegacias, mas elas são consequência do sistema, é um ambiente muito fascista, o MP é o órgão mais racista possível”, afirma a advogada Mariana Rodrigues, da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ.
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A advogada aponta a intervenção de milícias e facções criminosas como uma das dificuldades para o acesso a provas e exames. Segundo ela, o único caso de assassinato provocado por policiais concluído pelo Ministério Público do Rio, desde 2019, foi o de Agatha Felix, de oito anos, morta após ter sido atingida por disparos feitos pelo policial militar Rodrigo José de Matos Soares, que responde processo por homicídio qualificado. “Quando passa da esfera da delegacia, a gente sente que o caso acabou”, desabafa Mariana.
Caso Fábio
A demora enfrentada pela diarista Elisângela dos Santos, de 43 anos, na investigação do assassinato do filho é um exemplo dos casos travados no Ministério Público. Fábio dos Santos Vieira foi morto pela polícia carioca em junho de 2019 e, até agora, não há respostas sobre o andamento do caso. “Eu já esperei tempo demais”, desabafa a mãe.
Fábio tinha 21 anos, trabalhava como entregador e foi baleado na Avenida Washington Luiz quando voltava com um amigo de Petrópolis para o bairro em que morava. “A gente já teve audiência com o Ministério Público, a testemunha já foi ouvida. O que me deixa confusa é que o amigo que estava com ele foi liberado, sem documento, sem nada, trouxe até a moto para casa”, relembra Elisângela.
Depois do início do processo, o caso foi para o Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (GAESP), um dos órgãos afetados pela reorganização do Ministério Público do Rio. Segundo a advogada, o caso poderia ser concluído de duas formas: com o uso de agentes punitivos para prender o policial que cometeu o crime ou declarar auto de resistência, justificando que a vítima reagiu à abordagem policial.
“No caso do Fábio é algo irremediável, não tem imagens de câmera do local do crime e os socorristas que poderiam prestar depoimento não foram encontrados. Prevalece a palavra da polícia e, muito provavelmente, o caso vai ser encerrado como auto de resistência”, analisa Mariana.
Fábio Vieira foi baleado no dia 13 de junho de 2019 e morreu no dia 22 do mesmo mês. Foto: Acervo Pessoal
A falta de acesso das famílias aos direitos das vítimas também colabora para a demora na conclusão de inquéritos no MP, segundo Patrícia Oliveira, da Rede Nacional de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo do Estado. “Se você é morador de favela e você foi assassinado, você não tem prioridade. O mesmo vale quando se fala em auto de resistência, o caso não vai para frente. Os casos ficam parados porque não existe vontade nenhuma de concluir isso”, avalia a ativista.
Outro lado
No início de março o Diário Oficial do Estado publicou a resolução do Ministério Público do Rio de Janeiro sobre o futuro do grupo de investigação. O documento não apresenta planos específicos para o Gaesp que, segundo uma ex-promotora, não possui coordenação ou promotores nos casos desde o início de 2021.
Procurado pela Alma Preta para comentar sobre a paralisação na apuração das mortes que envolvem policiais, o MP-RJ não se posicionou. Caso o órgão responda, esse texto será atualizado.