Décadas depois do maior massacre em presídio, o Carandiru, o Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da China
Texto / Lucas Veloso | Edição / Vinicius Martins | Imagem / Luiz Novaes/Folhapress
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“O tumulto durou cerca de meia hora e quando a gente viu, a polícia já estava invadindo”. Com essas palavras, Antonio da Silva, um dos sobreviventes do Carandiru, lembra do massacre no presídio, há 27 anos atrás.
A tragédia aconteceu no complexo penitenciário localizado na região norte da cidade de São Paulo. Segundo depoimentos, as ações começaram depois que uma briga entre “Coelho” e “Barba”, dois presos, saiu do controle. A Polícia Militar entrou com a suposta missão de apaziguar a situação. Após pouco mais de uma 1h dentro do presídio, a rebelião foi controlada e 111 pessoas foram assassinadas.
Em entrevista exclusiva ao Alma Preta, Alcides*, tenente da Polícia Militar de São Paulo e integrante da operação, conta que estava na sua viatura quando ficou sabendo da rebelião e logo foi para o local.
O militar, um dos primeiros a chegar, disse que lá viu “um fogo muito alto, uma gritaria e eles jogando caco, privada pela janela. Estava a visão do inferno”, resume.
A Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA) foi o primeiro batalhão a entrar e fazer o confronto, após ordens da alta cúpula da polícia e do Coronel da PM, Ubiratan Guimarães.
Antônio diz que, quando a polícia chegou, começou a ouvir uma série de rajadas de metralhadoras. Decidiu então correr para dentro da sua cela e logo ouviu o grito dos policiais: “a morte chegou!”.
Agnaldo da Silva, outro sobrevivente, afirma que viu a polícia matar presos na entrada do presídio, nos corredores e no pátio, para onde os detentos foram levados depois da rebelião. Lá, segundo Agnaldo, os policiais matavam “só os que estavam baleados”.
“Eu não entrei nessa primeira parte, eu fiquei lá do lado de fora. Houve barulho de tiro, bastante, vários tiros”, é o que conta Alcides. Ele relata que quando entrou, “não tinha mais tiro, mas estavam lá, vários corpos no chão”.
“A situação dentro do presídio era caótica”, define o tenente. A função da sua equipe era a de “tirar os presos das celas. Tinha sangue no chão misturado com água, porque eles quebraram canos lá dentro. Tinha cinco dedos de água misturado com sangue, uma cena dantesca”, recordou. “Não tem como tanta gente assim morrer de um lado e nenhum do outro”.
Na época, o Carandiru contava com 7.257 prisioneiros, mais do que o dobro da sua capacidade. No Pavilhão 9, local do massacre, eram 2.706 pessoas detidas, seção destinada aos réus primários, aqueles detentos considerados de menor periculosidade. Para conter a rebelião, o Estado contou com cerca de 350 agentes de segurança.
Para o tenente, houve um erro de procedimento por parte da corporação. “Eu acho que não deveria ter sido a ROTA a entrar primeiro lá”, aponta. Para ele, “se tivesse sido o 3° Batalhão de Choque, por exemplo, eu acho que não haveria o número de mortes que houve”.
Ele lembra, porém, que independente da tropa, é importante destacar que os presos “não receberam ninguém com flores lá”. Os detentos foram “correndo, foram para cima, tanto que assim, quando eu entrei, tinha óleo nas escadas. Eles devem ter pegado da cozinha. A situação realmente estava feia”.
Pelas coisas que viu, ele acha justificável a morte dos presos, na medida em que os policiais poderiam ter atirado em legítima defesa.
Outro sobrevivente do Carandiru, Agnaldo da Silva, discorda. Ele afirma que ninguém no Pavilhão 9 tinha armas de fogo. Ele ataca a versão de que os presos atacaram os policiais, pois “não tinha condições, de um lado eram metralhadoras e do outro, pedaços de pau, estiletes e facas”.
Apesar de suas defesas, Alcides questiona: “111 morreram. Será que aqueles 111 foram para cima? Será que houve a necessidade de matar os 111?”.
Uma análise forense feita no local concluiu que todos os tiros partiram de armas da polícia. Há provas de que os policiais também alteraram a cena do crime. Muitos detentos foram mortos quando estavam nus, de joelhos, com as mãos para cima.
Ainda, de acordo com o documento, policiais executaram detentos que testemunharam o ocorrido, que foram feridos, ou que foram forçados a remover corpos.
‘São oito mortos’
Na época, uma reportagem da TV Globo da época apresentou a informação, concedida pelo Diretor da Casa de Detenção, de que eram 8 os mortos depois da rebelião controlada. Alcides lembra que a Secretaria de Segurança Pública não queria divulgar a informação, porque “ninguém queria dar a notícia”.
“Só que era uma época que as notícias já chegavam. Difícil esconder por muito tempo, aliás, não tinha como”, diz. “As pessoas morreram lá, tinham parentes, famílias, não tinha como atenuar nada”, resume.
Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e membro do Núcleo de Estudos Interdisciplinares do Negro Brasileiro (Neinb), Dennis de Oliveira recorda que a rádio Jovem Pan, com repórteres em várias sedes regionais do Instituto Médio Legal (IML), foi quem revelou o número de mortos maior do que a primeira versão oficial do Estado.
“Diante desta situação, o governo foi obrigado a reconhecer que houve um número muito maior de pessoas mortas que a primeira versão oficial divulgada, que dizia que eram pouco mais que uma dezena”, afirma Oliveira.
O pesquisador analisa a época como um período de ‘grande instabilidade econômica, política e social’. Havia o processo de impeachment de Collor. “O país estava mergulhado em uma grave recessão econômica por conta dos desmandos do governo. O desemprego era altíssimo, a economia estava desorganizada e, por isso, a crise social era gigante”.
Para ele, naquela conjuntura social, aumentou a população excluída pelos projetos do Estado. “Naquele tempo, a violência institucional contra a periferia funcionou como um mecanismo de controle destas populações para impedi-las de buscarem mais espaços na sociedade”, pontua.
Outra lembrança dele é que em 1992, a Polícia Militar em São Paulo chegou ao índice de quase quatro assassinatos praticados por dia, um dos mais altos do mundo, superando regiões em guerra. “Hoje, infelizmente, a situação pouco mudou”, critica o especialista.
Em setembro, os dados, divulgados pelo Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, indicaram que os policiais civis e militares mataram 6.220 pessoas no decorrer do ano de 2018. Os números se referem a possíveis confrontos e não incluem casos em que agentes praticaram homicídio. Um aumento de 20% se comparada ao ano de 2017, quando 5.179 pessoas foram mortas.
O número de mortos por policiais no país vem subindo desde 2013. Em números absolutos, a polícia do Rio de Janeiro, foi quem mais, matou (1.534), depois tem São Paulo (851) e Bahia (794).
O julgamento dos policiais
Entre 1992 a 1996, o caso tramitou na Justiça Militar, onde a investigação pouco avançou. Em 13 de fevereiro de 1996, o massacre foi transferido para a justiça comum devido aos indícios de responsabilidade de civis, como o governador e o secretário de segurança pública da época, Luiz Antônio Fleury Filho e Pedro Franco de Campos, respectivamente.
Mesmo com a passagem para a justiça comum, houve poucos avanços. O caso foi dividido em quatro partes para facilitar a sua investigação. Cada etapa de julgamento focou na responsabilização e no entendimento do que acontecera em cada um dos quatro andares do Pavilhão 9.
No dia 21 de abril de 2013, a primeira etapa do julgamento condenou 23 policiais a 156 anos de reclusão pela morte de 13 detentos que estavam no primeiro andar do Pavilhão 9. Na sequência, em agosto do mesmo ano, a segunda fase tratou da atuação dos policiais da ROTA no segundo piso do presídio. A justiça condenou 25 policiais a 624 anos de reclusão pela morte de 52.
O quarto e último andar teve o seu julgamento em março de 2014. Nove policiais do Grupo de Ações Táticas Especiais (GATE) foram condenados a 96 anos de prisão pela morte de 8 detentos. Um dos policiais teve a pena de 104 anos por já ter uma condenação anterior.
Em abril de 2014, o julgamento do terceiro piso sentenciou 15 policiais do Comando de Operações Especiais, COE, pelo homicídio de 4 detentos. Cada um deles recebeu a pena de 48 anos.
Mais julgamentos
Ubiratan Guimarães, o coordenador da operação, foi o primeiro a ser condenado a 623 anos de reclusão, depois de ser responsabilizado pela morte de 102 pessoas. Ubiratan, porém, foi absolvido pela justiça comum. Em 10 de setembro de 2006, ele foi baleado em seu apartamento e faleceu.
No dia 10 de dezembro de 2014, o militar Cirineu Carlos Letang Silva teve o seu julgamento em separado. A sua defesa argumentava que Letang não tinha condições psicológicas para ser julgado. Um exame de sanidade mental, concluiu que Letang tinha personalidade paranoica, mas poderia ser responsabilizado. Ele atuou no segundo andar do Carandiru e foi condenado a 624 anos de prisão.
Em setembro de 2016, uma reviravolta no caso. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) anulou todos os julgamentos realizados entre 2013 e 2014. O desembargador do processo, Ivan Sartori, afirmou que “não houve massacre, houve legítima defesa e cumprimento do processo pela PM”. Os demais desembargadores, Camilo Léllis e Edison Brandão, discordaram da posição de Sartori, mas defenderam a anulação do processo, porque o Ministério Público não havia conseguido individualizar a ação de cada policial.
A situação mudou em 11 de Abril de 2017, quando a 4° Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), determinou que novo julgamento, dos 74 policiais acusados de participar no massacre, fosse feito. A sessão ainda não foi marcada.
Sistema carcerário hoje
Em julho, o Brasil contabilizou pelo menos 812.564 presos, segundo o Banco de Monitoramento de Prisões, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Os dados mostram que, do total da população carcerária, 41,5% (337.126) são presos provisórios – pessoas ainda não condenadas.
O último levantamento realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), em 2016, apontou que a população presa é predominantemente composta por pretos e pardos (65%), o grupo racial negro.
O banco de monitoramento do CNJ é alimentado diariamente com dados fornecidos pelos tribunais estaduais. Ainda assim, o número de presos pode ser ainda maior, isso porque alguns estados não completaram a implantação do sistema, e ainda fornecem informações incompletas.
Segundo diagnóstico do Depen, o crescimento é de 8,3% ao ano. Nesse ritmo, o número de presos pode chegar a quase 1,5 milhão em 2025, equivalente à população de cidades como Belém e Goiânia.
De acordo com a publicação Luta antiprisional no mundo contemporâneo: um estudo sobre experiências em outras nações de redução da população carcerária, da Pastoral Carcerária, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos – 2 milhões 100 mil pessoas – e da China – 1 milhão e 600 mil pessoas.
Em novembro passado, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) visitou alguns presídios brasileiros, inclusive no estado de São Paulo, e constatou diversas violações dos direitos que cabem à população privada de liberdade.
No relatório produzido após as vistorias, a CIDH observou “o impacto desproporcional do aparato repressivo do Estado contra essas populações [mais vulneráveis]. Permanecendo impunes, as violações cometidas por agentes de segurança pública atingem um caráter sistemático”.
No mês de maio deste ano, uma rebelião entre internos no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (COMPAJ), em Manaus, capital do estado do Amazonas, provocou a morte de pelo menos 57 pessoas, deixando ainda quatro feridas. Na ocasião, a CIDH condenou os fatos e relembrou as ações feitas pela instituição contra o tratamento dispensado aos presos brasileiros.
“A CIDH e a Corte Interamericana, através de seus diversos mecanismos, fizeram reiteradas recomendações ao Estado do Brasil. A Comissão concedeu medidas cautelares e tramitou petições e casos sobre o assunto, realizou audiências públicas, realizou visitas a centros de detenção, e emitiu comunicados para a imprensa”, divulgou na época.
A instituição ainda alegou que as mortes ocorreram em um contexto de reiterados atos de violência nos presídios do sistema penitenciário do Brasil, caracterizados por “graves problemas de superlotação e condições de detenção deploráveis”, dizia o comunicado.
* O nome utilizado é fictício.