No início do mês, entre os dias 1º e 2 de janeiro, uma trabalhadora doméstica de 55 anos com deficiência intelectual foi resgatada por auditores-fiscais da Superintendência Regional do Trabalho (SRTb/RS) no município de Campo Bom (RS). Segundo a investigação do caso, a vítima trabalhava há cerca de 40 anos em condições análogas à escravidão – sem remuneração e acesso a direitos trabalhistas, sofrendo agressões físicas, verbais e pressões psicológicas.
Além disso, a investigação aponta que a empregada doméstica era impedida de se comunicar com vizinhos e com sua família, tendo contato somente com o núcleo familiar para o qual trabalhava. A trabalhadora também teve seus documentos confiscados pela patroa e não havia frequentado escolas.
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“Ela morava em um anexo à casa dos patrões e sofria pressões psicológicas sobre ameaças de como o mundo lá fora seria perigoso. Ela tinha muito medo da interação com pessoas do lado de fora da casa. Então, não sabia da condição desfavorável que se encontrava e queria se manter naquele lugar porque tinha sido orientada de que sair de lá seria ruim e perigoso para ela”, explica Rafael Giguer, auditor-fiscal do trabalho da SRTb/RS.
De acordo com Lucilene Pacini, a auditora-fiscal do trabalho que coordenou a operação, na denúncia protocolada na ouvidoria do Ministério da Mulher da Família e dos Direitos Humanos e encaminhada ao Ministério Público do Trabalho, consta que o denunciante presenciou cenas de maus tratos, agressões e humilhações à vítima.
Rafael Giguer conta que, nas conversas com vizinhos, o que chamou a atenção foi que eles não sabiam da condição de deficiência cognitiva da vítima, porque eles não eram autorizados a conversar com ela. Segundo o auditor-fiscal do trabalho, a empregadora também não deixava os familiares da vítima se aproximarem, sendo que um irmão havia tentado um contato sem sucesso há três meses.
“Ela era orientada a não conversar com ninguém. Os vizinhos demonstravam alto nível de indignação e falavam que ela não era filha da família da empregadora ou que era empregada doméstica. O termo que eles utilizavam era ‘escrava’ e relataram muitas agressões verbais, físicas e submissão a trabalhos degradantes”, destaca Giguer.
A operação foi realizada em parceria com o Ministério Público do Trabalho, Polícia Rodoviária Federal e com a Secretaria de Assistência Social. Segundo Lucilene Pacini, esse é o primeiro resgate de empregada doméstica realizada no estado. Os nomes dos envolvidos no caso não foram divulgados.
Cerca de 40 anos de trabalho análogo à escravidão
Não é possível precisar com exatidão, mas, de acordo com a apuração realizada e de conversas com vizinhos, a vítima chegou até a família da empregadora ainda criança, com cerca de menos de 10 anos. Por conta de problemas familiares, ela e os irmãos moravam com uma tia que residia na rua da empregadora. Segundo relatos ouvidos pela investigação, a menina foi trocada pela tia em troca de bens para desenvolver serviços domésticos tanto na casa quanto no mercadinho de propriedade da família em que foi deixada.
“Dizem também que ela sofreu um acidente quando criança, o que contribuiu para a deficiência intelectual dela, mas ela nunca frequentou uma escola para pessoas com deficiência ou qualquer instituição e assistência social que pudesse auxiliar no seu desenvolvimento”, aponta a auditora-fiscal do trabalho Lucilene.
Após o resgate, a vítima foi encaminhada, provisoriamente, para um local que abriga mulheres que sofreram violência no município de Campo Bom e será encaminhada para um residencial inclusivo para pessoas com deficiência. Segundo Rafael Giguer, isso acontece de forma provisória, enquanto contatam todos os familiares e verificam se ela retorna a viver com eles.
“A parte da assistência é a mais preocupante de todas e é a mais delicada, porque, de fato, por mais que sejam vínculos de abuso trabalhista, era o único vínculo que ela tinha. Então, tirar o vínculo é complicado. Ficamos muito aliviados em saber que existe uma família viva e que existe um desejo de aproximação, o que é muito importante”, relata Giguer.
Também foi emitida a guia de seguro-desemprego do trabalhador resgatado para a vítima, o que garante o recebimento de três parcelas de um salário mínimo. Na esfera administrativa, a empregadora foi autuada e notificada ao pagamento das verbas salariais e rescisórias dos últimos cinco anos – que é o tempo previsto na Lei -, sobretudo, do pagamento de todos os salários que não foram pagos no tempo correto. Os auditores-fiscais do trabalho calcularam em R$93.815,53 as verbas rescisórias da empregada doméstica.
Maurício Krepsky, chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério do Trabalho e Previdência, conta que, nesses casos, os relatórios completos das ações fiscais podem ser encaminhados à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal para que eles possam abrir os procedimentos criminais para poder investigar se houve também crime.
“Fica a cargo da Polícia Federal e do Ministério Público Federal analisar se aquilo também configura crime, porque o processo penal tem outras particularidades que são diferentes do processo administrativo”, explica Krepsky.
Dados sobre condições de trabalho escravo
De acordo com números divulgados neste ano, 1.937 trabalhadores em condições análogas à escravidão foram resgatados em 2021 pela Inspeção de Trabalho no Brasil, a maior soma desde 2013, que foi de 2.808 trabalhadores. De acordo com os dados disponíveis dos trabalhadores resgatados, 90% eram homens e 80% se autodeclararam negros.
Só o serviço doméstico envolveu 27 vítimas, sendo que, em 2020, haviam sido três. Nesta semana de fevereiro, outra trabalhadora doméstica foi resgatada em Campina Grande, na Paraíba, em condições análogas à escravidão.
“Em relação ao trabalhos domésticos análogos à escravidão, são situações muito complexas que envolvem, a maior parte dos casos, décadas de exploração, então, temos que ter um apoio grande da assistência social. O procedimento de pós-resgate exige muito mais cuidado no caso de trabalho escravo doméstico do que nos demais casos”, afirma Maurício Krepsky.
Denúncias de trabalho análogo ao de escravidão podem ser feitas de forma anônima no Sistema Ipê.
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