No Brasil, pessoas que têm um ente querido em situação de encarceramento são submetidas a momentos desconfortáveis quando se propõe a visitar alguém nos presídios, sendo o constrangimento maior quando se trata de mulheres negras. É o que apontam os dados do relatório “Revista Vexatória: Uma Prática Constante”, realizado pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), juntamente com outras instituições.
A análise demonstra como a seletividade penal que organiza o encarceramento no Brasil se espelha também nos familiares que interagem com as demandas da prisão. A maioria das pessoas que visita algum parente em presídio afirma que já enfrentou a revista íntima, totalizando 77,7%.
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E entre esta porcentagem, 97,7% corresponde ao público feminino. Em relação à raça, percebe-se que a violação ocorre de forma muito mais acentuada em mulheres negras, 69,9% – 15,4% pretas e 54,5% pardas – do que em brancas ( 26,3%).
Segundo o estudo, a revista vexatória – termo já caracterizado por outros estudos como estupro institucionalizado – viola a dignidade sexual, e corrobora com a violência institucional de gênero, ressaltando o papel de representantes do poder público para a produção da prática.
A análise ainda pontua que a revista vexatória deixa marcas difíceis de serem esquecidas ao longo da vida dessas mulheres, pois sequer crianças ou idosas são poupadas. Vistas como suspeitas de antemão, milhares de mulheres enfrentam o vasculhamento de seus corpos sem poder reagir.
“Elas são colocadas diante de uma escolha em que nenhum caminho é desprovido de sofrimentos ilegítimos e inaceitáveis: ou passam pelo trauma da devassa de seus corpos por pessoas que as veem como suspeitas, ou deixam de visitar seus familiares, abrindo mão da convivência familiar que nutre as relações”, salienta o informe.
Relatos e violações
A Alma Preta Jornalismo reuniu os relatos de algumas mulheres negras (pretas e pardas) que foram entrevistadas para a pesquisa a respeito da visita vexatória que são vítimas nos presídios. Com identidade resguardada, essas mulheres têm um sentimento em comum: sentir que são tratadas como se também tivessem cometido um crime.
“Já somos julgadas e condenadas por um crime que não cometemos, crime dos nossos que estão presos, e quando vamos para uma visita, no meu caso, o pai de minhas três filhas, uma de 12 anos e duas de 11 anos, somos sentenciadas a humilhações e abusos que considero sexual institucionalizada”, diz uma mulher da Paraíba.
A lei brasileira determina que qualquer pessoa que enfrenta alguma abordagem policial tem o direito de ser revistada por um agente do mesmo sexo. No entanto, os dados da pesquisa revelam que, entre as mulheres que relataram terem passado por revista íntima, 1,4% delas afirmaram que já foram revistadas por agentes prisionais do sexo masculino.
“Minha última visita fizeram eu tirar até a calcinha, ao ponto de um funcionário homem ficar na porta”, afirma uma mulher do Distrito Federal.
Outro ponto violento que ocorre na revista vexatória é a obrigatoriedade de se agachar sobre um espelho e abrir com as mãos as cavidades das partes íntimas na frente dos agentes penitenciários. O informe ressalta que a imposição de tal prática violadora de direitos é muito mais comum entre as mulheres do que homens: apenas dois homens entrevistados relataram terem sido submetidos a esse tipo de prática.
No entanto, no que tange ao recorte racial, as pessoas negras estão mais sujeitas a esse procedimento: para as entrevistadas, a medida constrangedora foi imposta para 71,5% das mulheres negras – sendo pretas 18,3% e pardas 53,2% –, mas também é observada em pessoas brancas, em número significativamente menor ( 26%).
A obrigatoriedade de contrair os músculos e tossir no procedimento de revista vexatória foi vivenciado por 45,6% dos familiares, dentre esses, sendo imposta a 72,3% de pessoas negras e 28% em brancos.
Crianças
A presença de crianças é parte da realidade das visitas nos presídios, pois parentes levam filhos e filhas para visitarem os pais, mães e avós que estão presos, para manter os vínculos afetivos. Grande parte dos familiares (54,1%) afirmaram que seus filhos já foram submetidos a procedimentos vexatórios.
“Neste ponto, chama a atenção a questão racial, pois a maioria das crianças são negras (65,2%), enquanto 27,9% dos declarados brancos sofreram essa violação. Assim, quase na mesma proporção, mas de maneira inversa, 72,1% dos familiares brancos não foram obrigados a submeter seus filhos a procedimentos vexatórios”, enfatiza a pesquisa.
Mais grave ainda é o fato de que 23,1% das pessoas relataram que quando seus filhos sofreram esses procedimentos íntimos não foi lhes dado o direito de estar presente. Logo, a revista foi feita por agentes prisionais sem o acompanhamento da mãe, pai ou responsável.
“O recorte racial também merece destaque: 77,7% das pessoas que não puderam acompanhar seus filhos eram negras, enquanto que em número muito menor, 18,5% eram brancas”, diz o texto.
De acordo com o documento do ITTC, a revista vexatória acaba por influenciar uma ruptura dos vínculos familiares e traz sofrimento para as pessoas presas e crianças, pois tal prática tem como um dos seus resultados impedir visitas. Os responsáveis legais das crianças evitam levá-las para não expô-las a práticas de violência e constrangimento.
“Esse ritual perverso de humilhações colaborou para que 34,5% dos familiares deixassem de fazer as visitas e número ainda maior, 66,6%, deles não levassem seus filhos. Tal situação revela mais uma forma de violência, pois quando o Estado não assegura condições para que os familiares possam fazer as visitas de forma que sua dignidade humana não seja violada, acaba também por esvaziar o direito de visitação garantido à pessoa presa”, finaliza o informe.
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