Pesquisa mostra que a probabilidade de sobrevivência de mulheres negras é 10% menor em casos de câncer de mama; médica diz que fatores sociais influenciam no resultado
Texto: Flávia Ribeiro | Edição: Nataly Simões | Imagem: Miguel A. Padriñán/Pexels
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A sobrevida de mulheres negras em casos de câncer de mama é até 10% menor do que a de mulheres brancas, segundo pesquisa realizada pelo programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O estudo usou dados do Sistema Único de Saúde (SUS), incluiu cerca de 60 mil mulheres e sugere que o diagnóstico tardio seria um dos principais motivos.
“O momento do diagnóstico determina como vai ser o prognóstico dessa mulher. Como a mulher vai evoluir, qual a qualidade de vida que ela vai ter, porque se ela se submeter a um tratamento muito agressivo pode comprometer a sua qualidade de vida, podem ficar sequelas. Dependendo do tipo de tumor, da lesão, maior a probabilidade de ela evoluir para óbito”, destaca a médica de Família e Comunidade Ana Carolina de Paula, em entrevista ao Alma Preta.
A médica enfatiza que a raça não é considerada como um fator de risco, logo há outros fatores influenciando no quadro. “Na teoria, não existe uma pré-disposição genética ou biológica que explique diferenças estatísticas que mostram maior prevalência entre mulheres negras de câncer de mama mais agressivo a ponto de que elas sejam mais levadas a óbito. O que explica isso seria o fator social”, pontua.
Cerca de 80% dos usuários do SUS são pessoas negras, de qacordo com dados do Ministério da Saúde. Para muitas dessas pessoas, este é único serviço de saúde com o qual podem contar. No entanto, o acesso é demorado. “Esse é um dos grandes desafios do SUS: a demora para conseguir os serviços. Muitas vezes está disponível, mas o tempo para que ele seja realizado é que pode custar a vida de muitas mulheres”, explica Ana Carolina.
O intervalo entre o momento em que a mulher percebe que há algo de errado na mama até conseguir a primeira consulta médica aumenta a chance de um diagnóstico tardio. “Outro fator é o tempo entre a consulta e a realização do exame. Até ela conseguir a mamografia, até conseguir voltar na unidade de saúde, até ser encaminhada a um mastologista e que seja pedida a biopsia e que o resultado volte confirmando o diagnóstico de câncer de mama. Quando esse intervalo é muito longo, aumenta a chance de óbito”, complementa a médica.
Ana Carolina explica que o diagnóstico é considerado tardio quando o câncer já está disseminado em outros órgãos além da mama, por isso é importante os exames de rastreio e da mamografia, feita anualmente ou de acordo com a indicação do médico. “Quando fazemos um diagnóstico de câncer de mama com menos de 1 centímetro, a chance de cura é de cerca de 95%. Quanto mais tarde, mais a doença avança, o tumor vai aumentando, a chance de cura vai diminuindo. É imprescindível fazer o diagnóstico o mais cedo possível para ter maior chance de cura, para que o tratamento seja menos agressivo possível e para que a evolução para o óbito seja a menor possível”, fala.
A influência do racismo
Com histórico da doença na família e incentivada pelas campanhas de conscientização, a arquiteta e urbanista Charô Nunes diz que começou cedo a fazer os exames de saúde. “Uma prima foi vitimada pelo câncer antes de completar 30 anos, percebi que tudo aquilo que vi acontecer com tantos outros familiares desde a minha primeira infância poderia acontecer comigo. Só não sabia que até para nos prevenir a gente dá de cara com o racismo de tanta gente branca”, relata Charô.
Ela recebeu o diagnóstico aos 33 anos de idade, mas teve que insistir para que os alertas dados pelo seu corpo fossem levados em consideração por profissionais de saúde. “Um dia percebi que algo estava diferente no meu corpo. Como muitas mulheres negras, a partir de então tive de fazer muito barulho para ser ouvida. Sentia dores, o que me disseram ser um bom sinal, imagine. A velha ideia de que nosso corpo pode aguentar a dor, o sofrimento. Sequer precisa ser examinado. Outra coisa, segundo os mastologistas brancos que consultei câncer de mama não dói. Estavam errados”, frisa a arquiteta.
Esse processo levou um ano inteiro e inúmeras consultas até que Charô conseguisse a requisição para uma mamografia digital. “Queriam me convencer que estava tudo bem, que sentia dor por causa de uma “depressão”, um assunto que também me toca profundamente. Por isso não diria que recebi, precisei lutar por meu diagnóstico. Embora tivesse acesso a um plano de saúde, certamente essa não seria a minha estória se eu fosse branca”, analisa.
Apesar do tempo para ser diagnosticada, o tumor era extremamente pequeno, menos de um centímetro. No entanto, era agressivo. O tratamento indicado foi cirurgia e radioterapia, mas não quimio. “Não cortei os cabelos. Isso muda para cada paciente, algumas fazem quimio, tomam remédios, precisam evitar certos alimentos, precisam fazer exames com grande regularidade. É preciso, antes de mais nada, falar com os profissionais e se forem racistas, insistir nas perguntas. É nosso direito ter informação qualificada”, ressalta a arquiteta.
Outro fator que faz diferença em quem está em tratamento é o aspecto emocional. Anos após o tratamento, Charô teve que buscar apoio fora da medicina. “A experiência de enfrentar o câncer também mexe com a emoção. Quando recebi o diagnóstico achei que ia morrer. E mesmo depois de ter sido tratada, essa sensação custou a me abandonar. As águas sagradas e os encantos foram fundamentais para que finalmente voltasse a me sentir viva e finalmente segura”, relembra.
A arquiteta destaca a importância de campanhas de saúde como o Outubro Rosa e o Setembro Amarelo, mas que é necessário que enfatizem a realidade de pessoas negras, que são as mais atingidas e as que menos têm acesso a serviços de saúde. Além disso, não é possível estabelecer uma conversa séria sobre o câncer com quem espera uma estória de superação para se inspirar.
“Falar de câncer de mama é política. Falar de câncer de mama também é falar de racismo, em respeito a todas vidas que perdemos todos os anos. Enquanto as pessoas falarem de superação, não vão discutir que a defesa do SUS é essencial para gente viver. Que não se trata de força de vontade ou coragem, só maquiagem não resolve. Precisamos de políticas públicas”, finaliza.
Foto Interna: Acervo Pessoal/Charô Nunes