PUBLICIDADE
PUBLICIDADE
Pesquisar
Close this search box.

“Não é um dia de celebração, é uma data para reafirmar direitos”, diz babalorixá sobre Dia da Liberdade de Cultos Religiosos

Celebrado neste sábado (7), Dia da Liberdade de Cultos Religiosos traz à tona casos de intolerância e racismo religioso contra manifestações que fogem do Cristianismo; novo governo promulgou o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé
Imagem mostra mulheres que são adeptas à religiões de matrizes africanas sérias e vestidas com indumentárias. Neste sábado é Dia da Liberdade de Cultos Religiosos

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

6 de janeiro de 2023

Há um ano, o Terreiro das Salinas, localizado em São José da Coroa Grande, no Litoral Sul de Pernambuco, começava 2022 aterrorizado por um ataque característico de “racismo religioso”, como os próprios representantes do espaço definem. Naquele 1º de janeiro, o local foi incendiado e grande parte dos objetos sagrados destruídos pelos criminosos. O atentado aconteceu na mesma semana em que se celebra o Dia da Liberdade de Cultos Religiosos, marco reservado no calendário anual para este sábado (7). Um ano depois, a responsabilização pelo crime ainda segue indefinida.

À Alma Preta Jornalismo, o cientista da religião, acadêmico em Direito e o babalorixá Edson de Omulu reconhece a data como importante para a sociedade brasileira, mas ressalta que há inúmeros motivos para que o Dia da Liberdade de Cultos Religiosos não seja comemorado. O incêndio ao Terreiro das Salinas é um deles. “É inevitável a gente falar sobre a importância desse dia e entender que ele importa não como motivo de comemoração, mas como motivo de constante enfrentamento por que não vivemos a igualdade no nosso país do ponto de vista religioso”.

Quer receber nossa newsletter?

Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!

Uma pesquisa inédita coordenada pela Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro) e pela entidade Ilê Omolu Oxum divulgada na metade do segundo semestre de 2022 mostra que 78,4% de pais e mães de santo já foram vítimas de violência no Brasil, seja ela por intolerância ou racismo religioso. O mesmo levantamento aponta ainda que 91,7% dos entrevistados – 255 líderes, no total – já ouviram algum tipo de preconceito por fazer parte de alguma religião de matriz africana.

“O componente da intolerância, da violência, dos crimes de ódio que ainda acontecem no Brasil desemborcam em datas como essa como o momento da gente aprofundar as reflexões com a sociedade e com os poderes constituintes para que esse dia seja acompanhado de vários outros dias do ano de ações efetivas para a promoção da liberdade religiosa”, pontua o religioso.

A mesma pesquisa abordou ainda o despreparo das delegacias brasileiras em tratar e registrar adequadamente os crimes relacionados à intolerância e racismo religioso. No tópico “denúncias”, o estudo revela que 68,63% dos líderes informaram que não conhecem postos policiais locais preparados para receber esse tipo de discriminação. Já 45,5% dizem não perceber acolhimento ao tentar denunciar esses tipos de crimes através do Disque-Denúncia.

O projeto “Racismo Religioso: Respeita Minha Fé!”, de iniciativa do Centro Social e Tenda de Umbanda Caboclo Flecheiro, no bairro de Águas Compridas, em Olinda, na Região Metropolitana do Recife (RMR), também fez um levantamento para que casos como o do Terreiro das Salinas não sejam apenas mais um dentre as centenas de crimes que se enquadram como intolerância e racismo religioso anualmente. O estudo fez uma cartografia social dos terreiros do Grande Recife e também acompanha juridicamente alguns crimes denunciados à Justiça

Coordenado pelo pai Edson, o estudo concluiu que nos últimos quatro anos, mais de 1,5 mil pessoas de terreiro foram vítimas de perseguição religiosa no município. Desse total, 90% não tiveram nenhuma resposta das autoridades. O crime ocorrido no início de 2022 no Terreiro das Salinas encorpa a estatística por ainda não ter sido concluído. O babalorixá explica este fenômeno através da formação histórica dos brasileiros.

Violência histórica e racismo religioso

De acordo com o cientista da religião, a população, no geral, é resultado de um processo de violência, exploração, separação e sequestro. Isso porque, inicialmente, os exploradores europeus impuseram seus costumes e tradições aos povos indígenas que viviam no Brasil. Depois, essa violência foi direcionada às pessoas negras, que tiveram suas práticas e formas de vida suplantadas por uma então supremacia branca. Por isso, a importância do Dia da Liberdade de Cultos Religiosos.

“Em dado momento na construção da igreja católica no início da nossa história, eles diziam que o negro sequer tinha alma. Então, se o negro nem a alma tinha como é que ele ia ter religião? A tradição europeia não respeitou a tradição religiosa indígena e muito menos a africana. Muito pelo contrário: a própria expansão marítima decorreu de uma suposta cruzada contra a expansão do Islã e, em seguida, a expansão do próprio protestantismo”, relembra, fazendo menção que a hegemonia cristã muitas vezes contribui para a falta da diversidade religiosa.

No início, ainda na antiguidade Clássica, o Cristianismo era perseguido. Contudo, depois que o Império Romano cedeu a liberdade ao culto cristão esse papel se inverteu. Os seguidores de Cristo passaram a perseguir toda e qualquer cerimônia religiosa que fugisse da sua crença. Isso fica ainda mais evidente na Idade Média, quando a Igreja Católica tornou-se a maior e mais importante instituição da sociedade. Cabe lembrar que foi nesta época que surgiu o protestantismo, que por mais que cultuasse o mesmo Deus, também passou a ser perseguido.

“A tradição cristã católica é precisa criar demônios o tempo todo. Não só não só na tradição bíblica, mas também na realidade concreta das sociedades humanas. Uma hora esse mal a ser atacado é o infiel muçulmano, outra hora é o infiel protestante, outra hora se torna as religiões de matrizes africanas”, comenta pai Edson.

De perseguida a perseguidora

Engana-se quem pensa que a perseguição religiosa acontece apenas a outras religiões que fogem do escopo cristão. Muitos líderes também são intolerantes com os próximos membros da instituição. Esta foi uma realidade sentida por Dany Creuza, ex-membro da Igreja Presbiteriana, que se viu vítima da opressão imposta pelo fundamentalismo religioso.

Creuza contou a Alma Preta que passou a ficar desconfortável na instituição depois que passou a se orgulhar do coletivo Voz de Maria. Segundo ela, este é um grupo que se autodenomina cristão e feminista. O constrangimento vinha depois que ela se apresentava como mulher cristã e dizia também que fazia parte de movimentos que lutam pelo direito das mulheres, como se fossem pontos antagônicos. A perseguição, inclusive, passou a ficar ainda mais intensa depois que a instituição passou a fazer parte do governo Bolsonaro.

“Comecei a me sentir muito mal porque aquelas agressões, falas e “brincadeiras” estavam vindo de pessoas que eu sempre convivi. Desde criança, eu era amiga daquelas pessoas [que passaram a perseguir]. Um dos momentos que, para mim foram mais angustiantes, foi quando passei a virada de ano na igreja. Naquele ano, eu fui sozinha para o culto da virada e sentei sozinha em um banco, pois todos os meus amigos estavam sentados juntos, mas nenhum deles me chamou para sentar juntamente com eles”, relembra Creuza.

“Lembro que à meia-noite, quando todos da igreja se ajoelham para orar, eu comecei a chorar e a orar pedindo a Deus que perdoasse eles. Nesse dia eu me senti sozinha na igreja, mesmo estando rodeada de pessoas”, lamentou Creuza, que depois de um tempo decidiu fazer parte de outra igreja. Ela conta que, no começo foi difícil porque além de sair da Presbiteriana, teve que se afastar do ciclo de amigos que tinha.

“Já não conseguia sair mais com eles pois sempre falavam mal da política, falavam sobre o golpe de Dilma, falavam mal do MST [Movimento Sem-Terra). Naquela época, eu estava participando de vários eventos do movimento. Era super desconfortável pra mim estar num grupo de pessoas que só falavam mal e falavam várias mentiras/fake news acerca do público ao qual eu trabalho”.

Leia também: Marina Silva anuncia secretaria para fortalecimento de povos tradicionais

Bolsonarismo e a intolerância religiosa

Nos últimos quatro anos, Jair Bolsonaro (PL) viu sua popularidade crescer às custas das alianças firmadas com igrejas cristãs, especialmente a Universal do Reino de Deus e a Igreja Presbiteriano, que terminaram adotando o discurso do ex-presidente dentro de suas respectivas instituições para captar mais aderência ao discurso de que tudo que fugissem do cristianismo era considerado demoníaco.

Assim, além de chefe de Estado, o político também se comportava como uma liderança religiosa, com bastante adesão dos cristãos neopentecostais. “Era uma relação de ‘neopadroado’, mas agora acomodando as religiões neopentecostais que cresceram muito nos últimos anos no Brasil e que cresceram também uma perspectiva de projeto de poder dentro da política para viabilizar seus templos, líderes e comunidades a obterem recursos junto ao Estado. A nação bancava uma série de pontos supostamente voltados para a comunidade, mas que, quando a gente vai investigar, muitas vezes encontramos séries de desvios de corrupção. A Igreja Universal do Reino de Deus foi expulsa de Angola por conta disso”, afirma o cientista da religião Edson de Omulu.

Defesa à liberdade religiosa

Agora, com o novo governo em exercício, a esperança da defesa dos direitos à pluralidade religiosa voltou a crescer. Às vésperas do Dias da Liberdade de Cultos Religiosos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou, nessa quina-feira (5), a promulgação do Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé, em comprometimento a uma carta assinada pelo mandatário ainda nas Eleições 2022 que reafirmava o compromisso com a liberdade de culto e de religião.

O marco, a partir deste ano, passar a ser comemorado no dia 21 de março, data reservada para o Dia Internacional contra a Discriminação Racial, criada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1966, em memória das 69 vítimas de um massacre ocorrido em Sharpeville, bairro negro da África do Sul, durante o apartheid.

Naquele período, os brancos expulsaram mais de 3,5 milhões de negros que residiam na região, tomando certa de 87% do território africano. O apartheid foi instituído por um pastor protestante de ascendência francesa, Daniel François Malan, em 1948. O período só acabou em 1994 depois que Nelson Mandela ganhou as primeiras eleições livres do estado

“No Brasil, hoje, a gente chega no Dia da Liberdade de Cultos Religiosos, assim como no Dia da Consciência Negra: não é uma data para se celebrar. É um dia para reafirmar direitos e que eu espero que, agora que a gente tem um governante à frente do nosso país, possamos restabelecer um processo de políticas públicas para promoção da liberdade religiosa no nosso país que a 4 anos foi interrompido”, analisa pai Edson.

“Falta nossas crianças irem à escola na sexta-feira trajando o branco, que é a indumentária característica da nossa fé que representa a paz e Oxalá, sem ser agredida pela vizinha, pelo motorista do coletivo, por outros passageiros, pelo porteiro e professora da escola. Falta uma criança adepta ao judaísmo não ter lideranças políticas ou mesmo professores negando o que foi o holocausto, dizendo que aquilo não aconteceu, chegando a agredir a ancestralidade daquela criança. É muito difícil a gente encontrar esse caminho se a gente não partir para uma educação. Se a gente tiver políticas públicas de educação para uma cultura de paz, jamais poderemos celebrar esse dia 7”, finaliza o religioso.

Resposta

A Alma Preta entrou em contato com a Polícia Civil de Pernambuco para saber como andam as investigações sobre o crime que aconteceu no Terreiro das Salinas, no Litoral Sul do Estado. De acordo com a Delegacia de São José da Coroa Grande, “o Inquérito Policial já foi finalizado e remetido ao Ministério Público de Pernambuco [MPPE]”. A Alma Preta também contatou o MP, mas, até a publicação desta reportagem, a instituição apenas informou que a demanda estava em apuração. Caso o MPPE envie uma nova resposta, esta matéria será atualizada.

Leia também: Funai quebra histórico militarista e tem sua primeira presidenta indígena em 55 anos

  • Redação

    A Alma Preta é uma agência de notícias e comunicação especializada na temática étnico-racial no Brasil.

Leia Mais

PUBLICIDADE

Destaques

AudioVisual

Podcast

papo-preto-logo

Cotidiano