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“Não existe Candomblé sem folha”

18 de junho de 2018

O Alma Preta visitou três terreiros do extremo sul de São Paulo para entender a relação da religião com o meio ambiente, e como o desmatamento, e a especulação imobiliária afetam esse culto

Texto / Thalyta Martins
Imagem / Léu Britto

Há algum tempo é possível observar nos meios de comunicação, na fila do supermercado, no ônibus ou na sala de casa, alguns debates sobre desmatamento na Amazônia, mudanças climáticas, meio ambiente, saúde dos rios e mares, acesso ao saneamento básico e impacto das indústrias e seus combustíveis fósseis na atmosfera.

É fato irrefutável que as ações humanas sobre a natureza e, também, o consumo desenfreado estão acabando com os meios naturais de fornecimento de água, alimento, ar e terra. No entanto, algumas pessoas, coletivos ou empresas, mobilizam-se contra essa visão que acredita que pelo desenvolvimento econômico, “os meios justificam o fim”, e propõem uma sociedade menos agressiva com o meio ambiente.

Mas há também aqueles povos que sempre tiveram essa preocupação e atentaram-se em causar o menor impacto possível na natureza e lutar pela preservação dos ecossistemas por compreender que, sem eles, nada seria da humanidade. Exemplos são os povos indígenas, que diariamente lutam pelo direito de preservarem seus espaços e sua cultura; e as religiões de matriz africana, que têm em sua essência o cuidado com o meio ambiente e o culto utilizando a folha.

Na semana do dia 10 de junho, o Alma Preta visitou três terreiros na região de Parelheiros, extremo sul de São Paulo, com o fotógrafo Léu Britto, do DiCampana Foto Coletivo, para entender um pouco dessa relação de sacralidade dos religiosos com o meio ambiente.

“A folha é o fundamento”

A primeira Casa visitada por nós foi a Ilê Asé Oni Ona, do Pai Paulinho e da Mãe Janaina. Ela funciona desde abril de 2018 e 16 pessoas frequentam o local religiosamente, segundo ele. A Casa está firmada na Estrada da Ponte Seca, no Bairro Marsilac, Distrito de Parelheiros, extremo Sul de São Paulo.

Segundo o Pai da casa, a folha é o fundamento. “Não se faz Orixá, não se cultua o Orixá sem folha. Folha é tudo!”.

Na propriedade que está em processo de construção, ele afirma que houve a preocupação de afetar menos possível o meio ambiente.

“Muitas oferendas são feitas dentro do roncó, o quarto onde ficam os assentamentos dos Orixás. Mas tem muita oferenda que a gente faz na rua, da porta pra fora. Eu sempre falo para os meus filhos que o que puder substituir por material biodegradável, é melhor. Por exemplo, vai fazer um acarajé para Iansã e vai entregar no pé do bambuzal. Aí ao invés de entregar com um alguidar [vasilha] de barro, a gente substitui por folha de mamona.”

Ele também falou que as fossas são de cimento, para que não haja contaminação da terra e da água ao redor. Até o momento, 20% do terreno onde está a casa foi utilizado. Pai Paulinho nos disse como funciona a compensação e a recuperação ambiental dentro do espaço onde fica o Ilê, apontando para árvores que foram replantadas e a plantação de novas espécies. Lá mesmo, ele e sua família colhem para os rituais e cultos a Aroeira, o Peregun, o Xaxim, a Bromélia e pegam também a Ota, uma pedra que é possível encontrar na água.

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Pai Paulinho nos recebeu no Ilê acompanhado de sua esposa, Mãe Janaina, a filha Bia e o filho mais velho, Gui, que estava dormindo (Foto: Léu Britto)

O Pai falou que, apesar da distância, do difícil acesso por ônibus e a falta de infraestrutura necessária de qualidade para a convivência humana, como energia, água encanada, internet e asfalto, ele gosta do lugar.

“Aqui você não escuta nada. Só o trem e, de vez em quando, o tucano, que vem comer o Obará, que é um assentamento feito com frutas muito ligado à Oxossi. Quando a gente renova o Obará, vem tucanos e papagaios do mato para comer… Aí é axé pra gente, mostra que foi aceito.”

“A natureza é o nosso Deus”

A segunda casa que nos recebeu foi o Asé Ylê Hozooane, do Sacerdote Luiz Antonio Katulemburange Amorim, da Nação de Angola. Ela funciona desde 1980 também em Parelheiros.

“Quando chegamos aqui, éramos nós e quase ninguém”, afirmou o Pai, que recebeu o Alma Preta e o DiCampana Foto Coletivo para um tour pelo terreiro e uma conversa sobre os Orixás, sobre enfrentamento e resistência aos intolerantes.

De acordo com ele, “Oxum, dona da família, da fertilidade, é, naturalmente, padroeira de Parelheiros, porque ela é dona da água doce, e ⅓ de toda água que São Paulo bebe sai daqui, de Parelheiros.”

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Sacerdote Katulemburange na sua sala de atendimento (Foto: Léu Britto)

Ele nos disse que é muito importante para o Candomblé ter natureza por perto e ressaltou a importância do espaço próprio em Parelheiros.

“Candomblé precisa do chão, porque tem muita coisa que é plantada.”

Apontando para os espaços verdes, ele disse que está perto de tudo o que ele precisa para continuar o seu culto: cachoeira, mato, “tudo”!

“A folha é tudo, sem folha não existe Orixá! É o nosso sangue verde! Nós somos como os índios: a gente vive a natureza, a natureza é o nosso Deus!”

“Se não tiver natureza, não tem como ser Candomblé”

Para fechar o dia, Mãe Mona Deuy nos recebeu em seu Ilê N’zo Maza Sakula, parte da casa da família desde 1978, ano em que ela, seu marido e os três filhos mudaram-se para Parelheiros. Segundo ela, a chegada das pessoas trouxe infraestrutura e melhorou a convivência humana, mas, ao mesmo tempo, tirou um pouco da liberdade de culto.

“Quando eu mudei tinha umas três, quatro casas. A gente se sentia mais à vontade, em termos da prática da religião. A nossa religião é muito boa, mas muito mal vista, né? Tem pessoas que não entendem, que fazem questão de não entender.”

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Mãe Mona Deuy dentro do seu Ilê (Foto: Léu Britto)

Ela expôs ao Alma Preta a tristeza por saber de certos impedimentos para o culto religioso por meio das oferendas. Segundo ela, impedir alguém de colocar sua oferenda na natureza para os Orixás é um ataque direto à religião.

“A natureza é o lugar onde a gente faz as nossas oferendas, os nossos despachos. Ali pra frente temos bastante mato, mas eu acho um pouco difícil [concretizar as ações], porque mesmo quando a gente não entra com animais, entra com oferendas simples, às vezes não deixam por. Mas a gente sempre dá um jeito! Ficar sem fazer as nossas coisas a gente não fica!”

De acordo com ela, sem natureza não existe o Candomblé. Plantas como Alecrim, Colônia, Folha da Costa, Folha da Fortuna, Manjericão, Nega Nina, Oripepe, Poejo e Sangue Lavou são usadas em rituais.

“A natureza é tudo para o Candomblé. É da natureza que a gente retira as folhas sagradas e a energia. Se não tiver não tem como ser! Faz parte!”

Parelheiros

Parelheiros é um distrito localizado no extremo Sul de São Paulo, uma área de manancial que produz água potável para a metrópole. É lá que está o único rio limpo da cidade, o Rio Capivari. Além disso, é uma área de Mata Atlântica que abriga comunidades tradicionais indígenas, comunidades de produtores orgânicos de alimentos e comunidades afrobrasileiras.

De acordo com Jaison Pongiluppi Lara, do Coletivo Imargem, educador e permacultor da Casa Ecoativa, essa área é protegida por leis ambientais, na teoria, mas, na prática, sofre com o descaso do poder público e a especulação imobiliária.

Pai Paulinho confirma: “Aqui tem uma represa, a Capivari Mono, que está praticamente jogado às traças. Você não vê um carro da Sabesp aqui. Tem locais que a administração pública poderia dar um pouco mais de atenção porque aqui é a mina de água.”

Jaison disse que, mesmo o extremo Sul sendo um espaço de interesse da cidade por produzir cultura, alimento, ar, água, recursos e bens materiais para convivência das pessoas na cidade, há uma falta de políticas efetivas para a região.

“É um lugar que tem essas riquezas, mas está fragilizado perante o olhar do poder público. As pessoas têm que se organizar de outros jeitos para tentar fazer uma contranarrativa e lutar contra esse processo capitalista e as desigualdades sociais que assolam principalmente a população da periferia”, afirmou.

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Vista do Ilê Asé Oni Ona, no Bairro Engenheiro Marsilac, Parelheiros (Foto: Léu Britto)

Ele também citou a tentativa de implementação de um aeroporto no distrito. “É uma face dessa especulação imobiliária. Com certeza o maior impactado nisso tudo é o ciclo natural, o meio ambiente. Hoje a gente tem uma parcela mínima de Mata Atlântica, do que era originalmente. O meio ambiente não são só as árvores, também tem as pessoas, os saberes populares, tudo isso é afetado.”

Confira o álbum de fotos no Facebook.

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