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“Acredito na verdade”, diz homem negro que passou de testemunha para suspeito por morte de idoso

André Arcanjo, 41, foi apontado como suspeito sobre um crime de latrocínio de um idoso amigo, que conhecia há mais de 20 anos

Imagem mostra André Arcanjo posicionado mais para o lado esquerdo da imagem. Ele usa óculos com lentes retangulares na cor preta, camisa básica escura e alargador em uma das orelhas

Foto: Imagem: Reprodução/Instagram

9 de maio de 2022

Seis meses, 24 dias, 17 horas e 43 minutos: este foi o tempo que André Arcanjo (41) passou detido no Centro de Observação e Triagem Prof. Everardo Luna (Cotel), em Pernambuco. O auxiliar de farmácia foi surpreendido ao passar de testemunha para acusado de um crime de latrocínio contra seu vizinho – idoso que conhecia há mais de 20 anos. Detido desde de outubro de 2021, há 10 dias a justiça de Pernambuco concedeu o direito dele responder ao processo em liberdade. 

O crime ocorreu no dia 11 de julho de 2021, no bairro de Areias, Zona Oeste do Recife. Na data, André foi convidado por um vizinho, identificado como seu Valdo, para visitá-lo. O local já era frequentado por ele, que, como profissional de saúde voluntário, costumeiramente prestava cuidados à esposa do vizinho, que tem Alzheimer.

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De acordo com a versão de André, logo após chegar à casa de seu Valdo, eles foram surpreendidos por dois assaltantes. Ele então teria sido rendido e levado para um cômodo separado com outros dois homens que prestavam serviços de manutenção na casa, quando seu Valdo foi assassinado. Ainda assim, com a partida dos criminosos, ele tentou reanimar o vizinho e chegou a contatar o socorro médico. André permaneceu no local até a chegada do Instituto de Medicina Legal, o IML.

Apesar da experiência traumática, Arcanjo cooperou com a polícia desde o princípio: foi à delegacia sem advogados e prestou depoimento para contribuir com as investigações. Entretanto, quase três meses após o ocorrido, ele passou a ser suspeito de cooperar com a realização do crime. Sua prisão temporária foi decretada e, atualmente, responde como réu por crime de latrocínio, indiciado pelo delegado Vitor Meira Toscano Pereira, da 4ª Delegacia de Polícia de Homicídios do DHPP, na conclusão do inquérito.

Para a Polícia Civil de Pernambuco, André teria facilitado a entrada dos criminosos na casa. De acordo com Wanderson Albuquerque, advogado de defesa, o celular de André foi apreendido e ficou à disposição da justiça porque lá consta o registro do convite para ele comparecer à residência. Isso, por si só, já seria capaz de demonstrar que não há envolvimento no crime.

“No entanto, na linha investigativa da polícia, o fato de André ter demorado três ou quatro segundos para fechar a porta colaborou com a ação dos assaltantes. Essa é a única coisa que o vincula. Na opinião da defesa, essa demora não justifica ou indica a autoria do crime, principalmente, se for considerado o fato de que ele não estava de posse da chave que fecharia tal portão”, explica.

Mesmo assim, a polícia civil representou o pedido de prisão temporária com a justificativa de interrogar André. Neste ponto, Wanderson revela também outras incongruências no caso. “A polícia representou pela prisão temporária unicamente para realizar o interrogatório, mesmo André já tendo sido ouvido como testemunha e não ter criado qualquer obstáculo para ser ouvido novamente. Além disso, após a prisão, André não foi interrogado novamente”, diz. 

Anna Beatriz Silva, advogada criminalista especialista em Direito Penal e Processo Penal, integrante da Articulação Negra de Pernambuco (ANEPE), revela que a prisão de André é um reflexo do racismo estrutural que naturaliza e perpetua a utilização da prisão preventiva e prisão cautelar como forma de responsabilização antes da avaliação das provas e do transcorrer processual. 

Dias de reclusão

Em conversa com a Alma Preta Jornalismo, André detalhou como se sentiu ao passar de testemunha para acusado do crime e como foram os encaminhamentos desde a chegada da polícia em sua residência até a sua prisão decretada. 

“Seu Valdo era meu amigo de anos e recorria a mim, pessoa em quem confiava para ajudar no que fosse preciso. Valdo era uma pessoa muito sozinha, vivia com sua esposa, que, por questões de saúde, já vivia acamada e eu me disponibilizou em ajudar. Até no momento da morte dele, eu quem fiquei dizendo que ele não iria morrer enquanto o SAMU não chegasse. Vivi o luto pela perda de um amigo e ainda por cima levando a culpa sobre algo que não cometi. No dia em que a polícia chegou na minha casa, não imaginava que essa angústia começaria na minha vida”, desabafa. 

Questionado sobre como foi a abordagem da polícia em sua residência, Arcanjo detalha que tinha ido à igreja no mesmo dia para aguar as plantas. Na volta, recebeu uma ligação da polícia informando que estavam em sua porta para a entrega de uma intimação. André conta que avisou que já voltava para casa e, prontamente, responderia às demandas requisitadas pela justiça.

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“Disseram que eles precisavam me levar à delegacia para assinar alguns documentos. Mesmo sem entender, fui. A angústia começou quando, mesmo sem eu entender o porquê, fui colocado em uma cela, inclusive, para esperar algo que eu nem sabia o que era. Momentos que eu não conseguia assimilar que era visto como possível suspeito”, conta.

Na mesma data do comparecimento à delegacia, 6 de outubro, André foi encaminhado ao COTEL. Em sua chegada, atordoado, André conta que foi colocado em uma cela com mais 166 pessoas encarceradas, em uma área que tinha como metragem seis por três metros. De estrutura, a cela contava com apenas um banheiro e não dispunha de ventilador ou energia elétrica. 

Arcanjo destaca que, assim que chegou à unidade prisional, teve o seu cabelo raspado – algo que ele questiona se tinha a intenção de humilhá-lo ou não – e observou como as refeições eram feitas e servidas.

“Vendo essas situações e estando naquele ambiente, de início, parecia que eu tinha perdido toda a minha fé. Meu mundo acabou ali, principalmente por isso, por ser preso por algo que não fiz. Só com o tempo, fui me ‘familiarizando’ e abrandando o coração, no aguardo das respostas dos advogados. Trabalhei de faxineiro para comer, viver melhor e pagar as coisas dentro do presídio. Sabia que ali não era sinônimo de estar bem, mas ia cortando os dias em uma folha de papel, contando sair logo dali”, detalha. 

Liberdade concedida

Após terem sido negados os pedidos de revogação da prisão temporária e de habeas corpus, a justiça de Pernambuco concedeu o direito de responder ao processo em liberdade para André. A concessão aconteceu depois da primeira audiência de instrução no dia 19 de abril de 2022. Na audiência, foram ouvidas apenas testemunhas chamadas pela acusação, realizada pelo Ministério Público de Pernambuco (MPPE), e nenhuma delas citou Arcanjo sequer como suspeito do crime, corroborando com os argumentos que já estavam sendo defendidos pela defesa. 

No mesmo dia em que deixou o Centro de Observação e Triagem Prof. Everardo Luna (Cotel), André e dona Maria do Carmo, sua mãe, puderam dar o abraço tão esperado. De joelhos, agradecerem a Deus pelo direito de responder ao restante do processo em liberdade. Arcanjo também foi recebido por sua comunidade religiosa, familiares e amigos em dois dias de festa para celebrar o momento tão esperado. 

“Para eu sair logo dali, minha mãe tinha feito uma promessa que assim que saísse meu alvará, ela iria se ajoelhar em frente ao presídio como forma de agradecimento a Deus. E assim fizemos. Ali, minha sensação era de felicidade, mas de remorso pela injustiça e um pouco de revolta pelo que vi e vivi. Vivenciando aquela dinâmica, pude perceber que só fui liberado por ter tido o apoio da mídia, da igreja, da minha mãe, amigos e da família, mas sei de pessoas que estão há dois anos lá e nem foram ouvidas. Poderia ser eu, homem negro e periférico”, reflete. 

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André e dona Maria do Carmo, sua mãe, ajoelhados em frente ao Centro de Observação e Triagem Prof. Everardo Luna (Cotel) como forma de agradecimento por sua liberação; o reencontro foi possível no último dia 29 de abril | Imagem: Arquivo pessoal

Agora, o processo continua a ser julgado no próximo dia 2 de junho de 2022, na segunda parte da audiência de instrução, que acontecerá de forma presencial no Fórum da Joana Bezerra, na região central do Recife. A advogada que acompanha o caso, Anna Beatriz, adianta que, nesta fase, serão ouvidas as testemunhas de defesa. Ela suscita que, provavelmente, o Ministério Público – órgão acusador – pedirá perícia e complementações probatórias, assim como a defesa, o que pode alongar mais o processo.

“Passado esse momento, aí será o momento do último ato processual, que trará as alegações finais, tanto da acusação, como da defesa, para depois vir a sentença. Provavelmente, essas alegações serão dadas por escrito, período em que deve ser dado um prazo ao MP, que deveria responder de forma oral, mas o órgão alega que trabalha com muitos processos, o que deve estender mais o encerramento do caso. Por isso, é muito importante a permanência de uma mobilização em defesa de André e a continuidade da luta. A gente precisa realmente da absolvição, que só vai vim com uma sentença que se preste a analisar minimamente a concretude dos fatos”, aponta. 

Sobre os próximos passos, André afirma estar confiante que haverá sua absolvição diante de todos os apontamentos prestados à justiça e que indicam sua inculpabilidade no caso. 

“Acredito que a verdade vai prevalecer. Todo o material para investigação foi apreendido. O meu celular e o de Seu Valdo vítima, estão nas mãos da justiça. Acredito que se faz necessária uma perícia, algo que senti falta e que me colocou detido em uma série de injustiças. Mas a verdade prevalecerá. É isso que me faz confiante. Não tenho medo de voltar para lá [COTEL]. Eu acredito na verdade”, finaliza.

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