Texto: Pedro Borges / Ilustração: João Carlos / Infográfico: Vinicius Martins/ Artes: Solon Neto
Tributação no país alimenta o que teóricos e ativistas chamam de racismo estrutural
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A alta tributação sempre foi presente na história brasileira. Seja durante a plantação de cana de açúcar, café, ou mesmo na mineração, Portugal sempre cobrou elevadas quantias financeiras do Brasil.
Após a proclamação da independência, em 1822, a taxação começa a ser estruturada de acordo com os interesses dominantes nacionais. A elite agrária, então coordenadora da economia do país, decidiu não tributar as grandes plantações, ou seja, o seu negócio. A cobrança de impostos se limitou à arrecadação das movimentações financeiras no comércio exterior.
Até 13 de Maio de 1888, ainda durante o regime escravista, pretas e pretos viviam sob a condição de não serem tributados, mas sim objetos de tributação. “A consolidação da Lei Teixeira de Freitas, que era a legislação civil em vigor depois das ordenações do rei, considerava os negros como ‘semoventes’, ou seja, como gado. Tinha um registro específico, no cartório, ‘o sujeito tem tantos escravos’. Era considerado coisa”, explica Renato Gomes, advogado tributarista.
Para ele, a tributação brasileira ganha novo caráter com o fim da escravidão e o início de um projeto industrial, com Getúlio Vargas e o golpe de estado em 1930. “A partir da industrialização, eu começo a ter uma ideia de geração de riqueza urbana. Vai se tarifar a renda do trabalhador e o imposto sobre vendas e consignações, que é o avô do ISS (Imposto Sobre Serviços). É o início da ideia de taxar as outras fontes de riqueza de modo a permitir uma maior arrecadação para o país”.
A taxação no meio urbano sobre o consumo e a renda do trabalhador exigiu a construção de um sistema tributário articulado. Se antes havia uma série de leis que tentavam remediar e remendar a legislação brasileira, é no ano de 1965 que se constrói a emenda 18, o primeiro código tributário do país, projeto de autoria de Rubens Gomes de Souza. É nesse momento da história que se opta por cobrar de maneira mais significativa o consumo e a riqueza adquirida.
Consumo
A tributação pode ser feita em três momentos de geração de riqueza: adquirida, poupada e consumida. O Brasil escolheu tarifar de maneira significativa o consumo, o que para Renato significa a possibilidade de cobrar todas pessoas, inclusive aquelas que não têm renda. “As pessoas precisam comer e viver. Mesmo que embaixo da ponte, vive e adquire bens. Perceba que a riqueza enquanto consumida tem uma abrangência e uma capilaridade maior do que os outros momentos da aquisição”.
Silvio Almeida, professor do Mackenzie e advogado tributarista, aponta que, no consumo, não há, como nas outras esferas de arrecadação, uma colaboração progressiva. Todos, independente da renda, vão pagar os mesmos impostos. “Pobre come pão e rico também; ambos pagam o mesmo tributo incidente sobre o preço do pão. A diferença é o quanto dispõem para gastar com suas demais necessidades”.
Dados referentes a 2015 e divulgados pela Receita Federal mostram como o consumo de bens e serviços sustentou quase metade (49,68%) do montante arrecadado pela União, estados e municípios. Em 2015, 32,66% do Produto Interno Bruto (PIB) do país veio da carga tributária e metade deste valor (16,22%) foi proveniente da cobrança sobre o consumo. Comparação internacional feita em 2014, a partir dos dados da Receita Federal, colocou o Brasil em 2° lugar na lista dos 30 países que mais tributam o consumo. Apenas a Hungria ficou a frente do Brasil.
Outro aspecto cruel dessa equação é o contexto social em que estamos inseridos: a sociedade de consumo, construída e alimentada de maneira diária pelo marketing e pela publicidade. “A ideia de cidadania foi substituída pela ideia de consumidor. O consumidor tem direitos, né? O consumidor, porém, só é o sujeito consumindo”, explica Renato Gomes.
Salário do trabalhador
Silvio Almeida explica como a tributação também é severa sobre a renda dos trabalhadores. Além de pagar ao consumir, o proletariado também é tarifado na renda com uma série de encargos. “Quando se recebe um salário cujo valor não está isento do pagamento de imposto de renda, a legislação tributária determina que o empregador desconte diretamente da folha de pagamento o imposto de renda e o repasse à Receita Federal. É o Imposto de Renda retido na fonte”.
No Brasil, a taxação é feita sobre a renda, que é resultado do rendimento do trabalhador menos as suas despesas. Ou seja, quando se tributa a renda, não se considera que o trabalhador já teve custos. Por uma questão técnica, o governo antecipa a arrecadação e dá a possibilidade do cidadão apresentar seus gastos e ser ressarcido. Mesmo assim, existem áreas onde há um limite para a compensação, como na declaração da existência de dependentes da renda ou ainda para educação.
Mesmo que o encargo sobre o Imposto de Renda varie entre 7,5% e 27,5%, a cobrança é avaliada como alta e onerosa. Depois da arrecadação por consumo, é por meio do imposto de renda que o Estado mais concentra recursos. A tributação representou 25,83% de toda a carga tributária, o que significou, em 2015, 8,44% do PIB.
Dados da Receita Federal ajudam a entender a desigualdade social no país, pois é possível constatar que menos de 1% dos contribuintes têm cerca de 25% de toda riqueza declarada em bens e ativos financeiros no Brasil. O número de pessoas com renda superior a 160 salários mínimos caiu de 73.743 mil em 2012 para 71.440 mil em 2013. Essa quantia representa 0,3% dos declarantes de imposto de renda e o valor financeiro de R$ 298 bilhões.
Os grandes salários, como o de jogadores de futebol dos principais clubes do país, costumam seguir uma lógica diferente de tributação, conta Renato Gomes. “Jogador de futebol não recebe os seus rendimentos, que são altíssimos, de mais de 100 mil reais por mês, na carteira de trabalho e como pessoa física. Eles recebem a parte significativa, 90%, 80%, como direito de imagem. Se o sujeito ganha 100 mil reais, só de contribuição previdenciária, o clube teria que pagar 20 mil reais. Então como faz? Vamos colocar 10 mil reais de salário e 90 mil de direito de imagem. O clube vai pagar 20% sobre os 10 mil, porque 90 mil ele está pagando direito de imagem, não na folha salarial”.
Silvio Almeida recorda outro exemplo para certificar a ideia de que os não assalariados convencionais têm benefícios tributários. “A distribuição do lucro pelas empresas pode se dar na forma de pagamento de dividendos ou ainda, como “Juros sobre Capital Próprio” (JSCP), ambas com vantagens imensas para quem é sócio de uma empresa, podendo, muitas vezes, nada pagar de Imposto de Renda sobre o lucro a ele distribuído”.
Outro setor de geração de riqueza muito privilegiado é a acumulação a partir de territórios. A cobrança, tanto nas áreas urbanas (IPTU) quanto nas rurais (ITR), é baixa e o valor arrecadado é irrisório para o Estado. Apesar da previsão constitucional de maior taxação na medida em que não há utilização do espaço, essa ferramenta tem sido pouco empregada para enfrentar a especulação imobiliária ou fundiária.
A tributação sobre propriedade foi de apenas 4,44% da carga tributária, o que representou 1,45% do PIB em 2015. Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em 2012, o percentual arrecadado pelo Brasil é a metade do acumulado em países como Estados Unidos (12%) e Reino Unido (12%); e 50% a menos que Argentina (9%) e França (9%).
Entre os cinco impostos que incidem sobre a propriedade em vigor, a menor arrecadação é do Imposto Territorial Rural (ITR), único de responsabilidade da União. Só de Imposto sobre Patrimônio Territorial Urbano (IPTU), o município de São Paulo recebeu, em 2013, R$ 5,45 bilhões, ou seja, mais do que seis vezes do valor arrecadado do ITR em todo o país no mesmo período, R$ 864 milhões, de acordo com o Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor Público Brasileiro (Siconfi).
Renato explica como a baixa tributação de propriedades no Brasil e o insignificante valor de arrecadação são questões históricas do país. “O Brasil é um país criado em capitanias hereditárias. Ele nasceu com grandes propriedades. Não é normal, mas a gente entende porque essas grandes propriedades territoriais até hoje não são tarifadas”.
A disparidade tributária do Brasil se estende para o setor financeiro. Este é outro segmento produtor de riquezas pouco taxado no país. Em último lugar, a tributação sobre as transações financeiras representou 1,8% da carga tributária, ou seja, 0,59% do PIB. No caso do Imposto Sobre Operações Financeiras (IOF), houve uma queda real de 1,61%, ou seja, recuo para R$ 5,8 bilhões nos primeiro bimestre de 2016.
A isenção tributária de determinados segmentos sociais ganha mais força com a possibilidade de acesso à informação dos setores privilegiados. O sistema tributário, cheio de remendos constitucionais, contém uma série de lacunas e falhas que permitem ao empresário diminuir a taxação sobre a sua atividade financeira, de acordo com Renato Gomes. “Há métodos e mecanismos que possibilitam um planejamento tarifário para que haja exoneração, ao passo que as camadas mais populares, por não terem esse conhecimento de mercado financeiro, de economia, de tributação, de direitos, são taxadas, até porque a sua maior fonte de renda é o salário formal, que já vem descontado”.
Comunicação e alta tributação: onde investir?
Os principais veículos de mídia no Brasil consolidaram a ideia de que o país é o detentor da maior carga tributária do mundo, o que é uma falácia. “Ela é muito grande, mas não é a maior. Qualquer pessoa com um pouquinho de tempo vai buscar no Google e ver que não é. Recentemente saiu uma lista e o Brasil é a 38° maior carga tributária. A gente está falando de uma das dez maiores economias do planeta”.
Silvio recorda que essa construção dificulta qualquer debate sobre tributação e endossa o desejo do empresariado de impor a maior privatização da economia, precarização dos serviços públicos e aumento do espaço para a iniciativa privada. “Isso trava de antemão qualquer possibilidade de uma reforma. Veja o bombardeio midiático e até jurídico ao prefeito de São Paulo quando resolveu alterar a planta básica do IPTU, isentando alguns imóveis do pagamento, mas aumentado de algumas regiões. A única pauta aceitável é a de “simplificação” do sistema de pagamentos e de “redução da carga tributária”, o que diante da situação fiscal do Brasil, agravada pela dívida pública e pelos altos juros, é uma piada de péssimo gosto”.
A diminuição da carga tributária no Brasil, pauta do grande empresariado nacional, é motivo de reflexão e questionamento para Silvio. “Se a carga tributária diminuir (para os ricos, claro), os recursos seriam aplicados em mais empregos e mais investimentos como é a justificativa apresentada pelos defensores da medida?”.
A dúvida ganha ainda mais força quando se analisa para onde se investe aquilo que se arrecada. “Só em 2014, o governo federal gastou R$ 978 bilhões – 45,11% de todo o Orçamento executado no ano – com juros e amortizações da dívida pública. Ela é o resultado da emissão de títulos do governo para a captação de dinheiro junto ao mercado financeiro. É um procedimento nebuloso que drena o orçamento brasileiro de tal forma que praticamente inviabiliza o necessário investimento em direitos sociais”, descreve Silvio.
Em 2013, o montante investido na saúde foi de R$ 190 bilhões, o que representa 3,6% do PIB do país. Os números com a educação são um pouco maiores. Estima-se que o gasto bruto tenha ficado na casa dos R$ 348 bilhões, o que representa 6,6% do PIB da época. Os números são baseados em dados do IBGE.
Os dados são ínfimos se comparados à verba destinada ao pagamento da dívida pública. Nada que não possa piorar com o governo Temer e a proposta da PEC 241, aprovada pela Câmara dos Deputados e que propõe o congelamento dos gastos públicos pelos próximos 20 anos. A expectativa é reduzir os investimentos públicos já em 1,5% e 2% do PIB nos próximos três anos, o que traria efeitos trágicos para a saúde e a educação públicas.
Racismo
Entender o sistema tributário, na concepção de Silvio Almeida, é fundamental para a compreensão daquilo que é chamado de racismo estrutural no país. “O sistema tributário brasileiro é uma peça – e das mais importantes – do que chamamos de “racismo estrutural”. Isso porque a tributação no Brasil tem um caráter regressivo, incidindo de modo sensível sobre os rendimentos das pessoas mais pobres, que, segundo estatísticas, são negras em sua grande maioria”.
“Com menos recurso e sendo mais tributado, o negro tem menos dinheiro para se aperfeiçoar, para se divertir, para fazer tudo. E é óbvio que isso impede a ascensão social”, descreve Renato Gomes, ao apresentar a centralidade do sistema tributário para a manutenção do racismo.
Para ele, o peso tributário se torna ainda mais significativo quando a mulher negra é colocada em pauta. “É feita a análise de quanto a tributação impacta na renda das pessoas. E você vê o impacto significativamente maior nos 10% mais pobres do que nos 10% mais ricos. Existe uma gradatividade, e quando você vai analisar quem é essa população mais pobre, você vê que ela é majoritariamente de negros. E entre os negros, a maior parcela é de mulheres negras”.
Silvio exalta que essa é uma pauta da comunidade negra e por isso deve haver um enfrentamento político para a mudança dessa agenda. “Um sistema tributário tão profundamente injusto é o índice de uma sociedade cuja lógica é a desigualdade e que assim quer permanecer. A dinâmica do racismo no Brasil é também tributária”.
Essa necessidade de envolvimento perpassa pelo conhecimento da história brasileira. A comunidade negra precisa saber e o Estado reconhecer que parte das riquezas nacionais foram construídas em períodos históricos de super-exploração de corpos negros. “A questão tributária ajuda a reproduzir a desigualdade e perpetuar riquezas que muitas vezes não foram construídas com “pioneirismo”, “empreendedorismo” e nem com “trabalho duro”, como quer fazer crer certo discurso liberal. Às vezes estamos falando de fortunas que se levantaram em períodos sombrios da história do Brasil, como a escravidão e a ditadura militar, mantidas com forte auxílio do Estado”, recorda Silvio.
Saída tributária de outros países e os limites do capitalismo
Nos EUA e em outros países, diferentes escolhas políticas foram tomadas no âmbito tributário. Os norte-americanos decidiram por taxar as grandes heranças como forma de arrecadação para o Estado, de acordo com Renato Gomes. “Os EUA não tributam a fortuna. É uma maneira de incentivar a formação dela. Mas eles tributam, a partir de determinados níveis, de maneira bastante significativa, a herança. Há até a possibilidade de você ter uma diminuição da tributação com a criação de uma fundação. Há exemplos desde a Rockfeller, até a mais recente, a fundação Bill Gates”.
Silvio recorda o modelo de nações europeias, com propostas distintas da dos dos EUA, como forma de questionar a taxação sobre grandes fortunas no Brasil. “Em países como Áustria, Suécia, Dinamarca, Holanda e Reino Unido, a tributação pode chegar a 50%, a depender da faixa de rendimentos. Já os impostos sobre patrimônio (herança, por exemplo), também são relevantes, coisa que no Brasil é praticamente inexistente”.
Aqui, há uma imensa dificuldade para se debater algo previsto na constituição, que é a taxação das grandes fortunas, proposta que não é suficiente para resolver a questão, de acordo com Silvio Almeida. “Apesar da previsão de um imposto sobre grandes fortunas, sua implantação, além de insuficiente para resolver o problema que remete às finanças públicas e ao direito financeiro, não avança. Observa-se uma forte resistência da sociedade quando se trata de falar de reforma tributária”.
Mesmo com propostas díspares e que proporcionam uma menor desigualdade social, o capitalismo necessita dessa diferente condição para se manter. “Não existe capitalismo com igualdade material, e para tanto o sistema tributário tem que operar nesse sentido. Nos países do capitalismo central o que se tem é uma menor desigualdade, porque lá se tem indústrias, massa salarial relevante, consumo e Estados que se estruturam para defender essas condições internas do funcionamento de suas respectivas economias. Mas isso não significa que nesses países o sistema tributário não prestigie os mais ricos, como muito bem demonstrou o trabalho de Thomas Piketty, ‘O capitalismo no século XXI’”.