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No Brasil, duas crianças são assassinadas todos os dias

2 de novembro de 2016

Dados mostram que genocídio da população negra começa antes mesmo da juventude, já aos 13 anos de idade

Texto: Pedro Borges e Solon Neto / Infográficos: Vinicius Martins / Edição de Imagens: Solon Neto e Vinicus Martins

Há algo de podre na república do Brasil. Os jovens estão morrendo. Na maioria das vezes, assassinados. Na maioria das vezes, negros. A guerra cotidiana desce as ruas em rios de lágrimas, em Mães de Maio, em marchas fúnebres e em canções cinzentas de ódio. Um golpe ininterrupto que já dura cinco séculos.

Um dos casos a ganhar destaque aconteceu no dia 02/06/2016. A vítima, Ítalo Ferreira de Jesus Siqueira, um menino negro de 10 anos, tornou-se parte de uma tendência secular. Suspeito de furto de automóvel, Ítalo foi perseguido por quatro policiais militares e em seguida morto com um tiro no olho esquerdo na rua Nelson Gama de Oliveira, Vila Andrade, Zona Sul de São Paulo. O carro, um Daihatsu preto, tinha 18 anos de idade, o colega que acompanhava Ítalo, 11.

À época, o colega sobrevivente deu um depoimento gravado pelos policiais após o ocorrido. De acordo com o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), a criança ficou por 5 horas com os policiais antes da gravação. O vídeo, exibido milhares de vezes na internet e novamente em rede nacional no programa Fantástico, da rede Globo, no dia 05/06 do mesmo ano, ganhou grande repercussão. Nele, o garoto confirma a versão da polícia de que houve disparos realizados por Ítalo de um revólver calibre 38.

Dias depois, o Conselho Estadual da Pessoa Humana de São Paulo, CONDEPE-SP, solicitou à Secretaria da Segurança Pública e ao Ministério Público do Estado de São Paulo que investigassem se os autores do vídeo praticaram crime de “submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento”, previsto no estatuto da criança e do adolescente, ECA. Segundo o Conselho, houve evidências de coação dos policiais sobre o menino e questionamento acerca das condições do interrogatório.

As mudanças no depoimento do menino de 11 anos, e mais tarde dos próprios policiais envolvidos, levantaram dúvidas sobre a versão apresentada no dia do crime. A versão amplamente divulgada pela mídia com tiroteio e perseguição em alta velocidade sofreu abalos com o andar das investigações.

O menino de 11 anos foi o primeiro a mudar sua versão. Ele disse à Corregedoria da Polícia Militar que não houve disparos após a batida, apenas durante a perseguição. Depois, ao lado da mãe e de um psicólogo, a criança disse ainda que a dupla não tinha revólver e que a arma foi plantada pelos policiais. Ele disse ter sido coagido pelos PMs para confirmar a narrativa deles.

Em matéria da PONTE, o advogado Ariel de Castro Alves, do CONDEPE-SP, acompanhou o depoimento do garoto e afirmou: “O menino disse que os policiais o jogaram de bruços no chão e falaram que iam matá-lo se não o levassem até a mãe dele. Ele também contou que recebeu o soco de um PM e estava com um hematoma do lado esquerdo do rosto”. 

 Infográfico Ítalo FINAL

Fuca, integrante do Comitê contra o Genocídio do Povo Preto e Periférico e da Frente Negra do Grajaú, conta que a demora dos policiais para retornar à delegacia é procedimento padrão. “Eles tentam fazer uma história, uma farsa, para contar a versão deles. Então eles demoram 4 horas, 5 horas, tem caso que demora mais tempo para todos estarem cientes da versão. Eles bolam as histórias deles e vão até o fim”.

À época, a Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP) não entrou em detalhes, e declarou em nota ao Alma Preta que “Todas as versões apresentadas estão sendo analisadas e as testemunhas do caso, ouvidas”.

Já Luiz Carlos Santos, relator do caso no Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CONDEPE), vai na mesma linha do que disse Fuca. “Muitas vezes a gente ouve casos que vem aqui no CONDEPE que o depoimento é colocado pronto na mesa e a pessoa assina. Esse tipo de depoimento é um depoimento preparado, pronto já. Para assinar e ir embora. A gente percebe que é uma coisa já engendrada.”

Para ele, o treinamento policial precisa ser mudado, pois a abordagem policial não é adequada, muda de acordo com a região e a cor da pessoa. “A abordagem policial num bairro como o Morumbi é diferente de uma abordagem policial na periferia, a gente percebe que há uma diferença, e geralmente nessa abordagem se vai em cima do negro.” Luiz acredita que o negro é visto com preconceito pelo policial, principalmente quando está em bairros nobres. “Na região em que eles foram mortos, a região do Morumbi, a gente percebe que não se admite que exista roubo. E quando se deparam com o negro, aí é dobrado essa condenação antecipada. Eles condenam antes da questão de verificação.”

Luiz Carlos continua e afirma que mesmo uma criança não está livre dessa pré-condenação. “Mesmo sendo uma criança, para eles não importa. A gente percebe que eles querem proteger o território e fazer a segurança”. 

O relator teve contato com a mãe da criança que, na época, encontrava-se em estado de choque.

No dia 10/06, a investigação divulgou um laudo que apontava pólvora e resquícios de chumbo na mão de Ítalo. Chamou a atenção da Polícia Civil o fato de uma luva, que teria sido utilizada por Ítalo durante toda a perseguição, não ter rastros de pólvora e chumbo. Para a investigação, não havia sinais claros de disparo de dentro do carro. De acordo com delegados do Departamento de Homicídios e Proteção da Pessoa (DHPP), basta os policiais terem encostado a arma nas mãos da criança para alterarem o resultado. Na época a perícia da Policia Civil, em relatório, disse que havia certeza de mudança da cena do fato. O carro foi revirado, o corpo do menino tirado da posição original e o suposto revólver calibre 38 de Ítalo foi retirado da cena.

No dia 11/06, moradores do Morumbi, região nobre de São Paulo foram às ruas protestar em favor dos policiais que mataram Ítalo e foram recebidos por um grupo maior de negros, moradores de periferia, que exigiam justiça e denunciavam o racismo e a violência. O vídeo abaixo, da PONTE Jornalismo, mostra o quão tensa fora a situação.

Os manifestantes cumprimentaram diversos policiais militares, que por sua vez bateram continência aos manisfestantes.

Brasil e a naturalização da violência

As notícias do caso geraram discussões na sociedade brasileira, que de pronto se pôs a perguntar: “ele merecia morrer?”. Muitas das respostas vistas em comentários nas notícias e no vídeo sobre o caso mostram que a nossa familiaridade com a morte anda de mãos dadas com o racismo e seu companheiro inseparável, o ódio.

Comentários Ítalo

Independente das investigações, a morte de uma criança de 10 anos responsável por furtar um carro tem o apoio da sociedade, segundo Fuca. “A ação do policial é uma ação que, infelizmente, a grande parcela da sociedade faria o mesmo. Dariam o tiro na cabeça do menino, tirariam do carro e dariam um tapa na cara. Ou fariam pior”.

A afirmação de Fuca dá conta de uma forma de pensar bastante recorrente na sociedade brasileira. Segundo uma pesquisa realizada pelo DataFolha a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 6 a cada 10 brasileiros acreditam que “bandido bom, é bandido morto”. 

A mesma pesquisa aponta medo na sociedade brasileira. 76% dos entrevistados afirmam temer que sejam assassinados. Da mesma forma, 64% creem que a polícia é caçada pelo crime, enquanto que 70% acreditam que a mesma polícia exagera na violência. Os que dizem ter medo de serem vítimas da Polícia Militar somam 59%.

Comentários Ítalo 2

O Brasil sempre foi um país violento. Parte do dia-a-dia no país, a violência parece já não comove tanto. Ela está nos noticiários, nos programas de fim de tarde repletos de perseguições policiais, e senta ao lado dos brasileiros na mesa de jantar enquanto assistem ao último jornal da noite. Mesmo uma criança pode estar nessa conta.

As estatísticas brasileiras são frias. Estamos entre as 8 nações que mais matam jovens no mundo e entre as 11 que mais matam com arma de fogo. Entre 1998 e 2012, as mortes de jovens aumentaram 199%. 

Mas o acréscimo não é com qualquer jovem. Há um perfil específico sentindo o aroma da pólvora. Enquanto entre 2002 e 2012, houve queda de 24,8% no número de jovens brancos mortos, as mortes de jovens negros subiram 38,7%.

Em 2015, na cidade de São Paulo, maior cidade da América Latina, a polícia matou 412 vezes, cerca de 1 quarto dos 1.591 assassinatos da cidade naquele ano. Ou seja, a cada 4 assassinatos na capital, 1 foi cometido pela polícia.

A maioria das vítimas da polícia na capital paulista é negra. Pretos e pardos somam 72% das vítimas. Somente em 2015, foram mortos 947 negros em São Paulo, do quais 511 eram jovens. 

Em São Paulo, o Alma Preta perguntou à Secretaria da Segurança Pública do Estado, por que a polícia paulista mata mais negros que brancos. A secretaria, no entanto, respondeu que a polícia é bem treinada para lidar com a diversidade. “Os policiais são preparados para lidar com a diversidade racial, com disciplina de Direitos Humanos nas escolas de formação das polícias Civil e Militar.”

No Rio de Janeiro, a Anistia Internacional acompanhou 220 investigações sobre mortes causadas por policiais de 2011 a 2015 na cidade. Em quatro anos apenas um policial chegou a ser formalmente acusado pela Justiça e 183 investigações ainda não tinham sido concluídas.

Crianças são vítimas da violência

No Brasil, duas crianças assassinadas por dia. Dados de 2012 mostram que 743 crianças foram mortas entre os 10 e os 14 anos, uma taxa de 4,3 mortos para cada 100 mil habitantes, de acordo com o Mapa da Violência.

Os números variam conforme a faixa etária. Dos 5 aos 9 anos, foram125 homicídios, o que representa 0,8 para cada 100 mil habitantes. Já na faixa de 15 a 19, o salto é de 9.295 jovens mortos, número de 53,8 para 100 mil habitantes. 

A taxa média mundial de homicídios para cada 100 mil habitantes é de 6,2 de acordo com “Relatório Global sobre Homicídios das Nações Unidas” de 2013. O nível brasileiro era de 25,2.

Quando os dados se referem apenas à mortalidade por armas de fogo, o Brasil segue rompendo a barreira média das Nações Unidas de maneira precoce. Se aos 13 anos a média é de 3 mortos para cada 100 mil habitantes, aos 14 esse número salta para 10,4 assassinados por armas de fogo para cada 100 mil habitantes.

O Mapa da Violência apresenta o conceito de vitimização. O resultado resulta da relação entre as taxas brancas e as taxas negras de homicídio. Assim, se em determinado ano, a vitimização negra foi de 20,0%, isso significa que, proporcionalmente, morreram 20,0% mais negros que brancos. O valor zero indica que morrem proporcionalmente o mesmo número de brancos e de negros. Valores negativos indicam que morrem, proporcionalmente, mais brancos que negros.

Mortes e proporções 1

Em 2002, o índice de vitimização negra foi de 73: morreram proporcionalmente 73% mais negros que brancos. Em 2012, esse índice sobe para 146,5. A vitimização negra, no período de 2002 a 2012, cresceu significativamente: 100,7%, mais que duplicou.

No ano de 2012 as Armas de Fogo vitimaram 10.632 brancos e 28.946 negros, o que representa 11,8 óbitos para cada 100 mil brancos e 28,5 para cada 100 mil negros. Dessa forma, a vitimização negra foi de 142%, nesse ano; morreram proporcionalmente e por Armas de Fogo 142% mais negros que brancos: duas vezes e meia mais.

Com relação aos níveis de vitimização por armas de fogo de negros, existem estados da federação, como Alagoas e Paraíba, onde essa seletividade racial nos homicídios supera a casa de 1.000%. Em outras palavras, para cada branco vítima de arma de fogo nesses estados, 10 negros morrem vítimas de homicídio intencional.

Todos esses números assustadores reforçam a necessidade de enfrentar o genocídio da população negra e não permitir a naturalização da morte de jovens negros. Na visão de Fuca. “Precisamos, primeiro, barrar esse silêncio. Isso acontecer de uma maneira natural e é péssimo. É preciso discutir mais e mais as condições do nosso povo e como a gente muda isso”.

Ítalo não foi um ponto fora da curva. Em 2015, 111 tiros ceifaram 5 vidas jovens, negras e inocentes, no Rio de Janeiro. Eles se deitam nas estatísticas enquanto a espera pelo julgamento de sua morte se senta à mesa jantar com os brasileiros.

Uma criança negra vinda de situação vulnerável que não inspira consenso na comoção por sua morte talvez devesse fazer esse brasileiro pensar.

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