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Nutricídio, mas também pode chamar de fome

5 de novembro de 2020

O termo, ainda pouco conhecido, torna ainda mais clara a diferença da comida no prato da população negra e periférica brasileira

Texto: Edda Ribeiro, especial para o Alma Preta e para O Joio e O Trigo

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Apesar de no papel a legislação brasileira garantir que “a alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal”, a Lei 11.346, de 2006, não leva em conta as reais condições sociais do país. Essa é a constatação a que chegam pesquisadores e ativistas que lutam pela equidade na mesa, em relação à normativa que prevê diretrizes para o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional do Brasil.

A importância da alimentação básica no cotidiano nacional ganhou urgência na imprensa em setembro – com o aumento dos preços do arroz e do feijão, e o pedido de revisão do Guia Alimentar para a População Brasileira pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Também trouxe curiosidade sobre um novo termo, que pode servir de abreviação para o processo multifatorial que mata brasileiros na base da fome: o nutricídio.

A expressão, que tem como sinônimo o genocídio alimentar, foi criada pelo norte-americano Llaila Afrika, médico e autor do livro Nutricide: The Nutritional Destruction of the Black Race, considerado uma das autoridades mundiais em saúde e nutrição.

“Os estudos de Afrika revelam que a população negra, dentro e fora da África, sofre historicamente males físicos, mentais e espirituais por conta da dieta compulsória trazida pela colonização europeia. Em resumo, o termo anuncia a destruição nutricional da raça negra”, afirma Márcia Cris, ativista do Movimento Afro Vegano, que passou a pesquisar o trabalho do médico nascido em Baltimore e a relacioná-lo com a realidade brasileira. “Através do resgate da história dos povos africanos, ele nos dá uma visão do quanto fomos e ainda somos agredidos pelo sistema alimentar ‘branco’, e do quanto é importante voltarmos a nossa atenção para as nossas origens.”

Comer para preservar

Em suas publicações, Llaila Afrika se refere ao açúcar, à farinha branca e ao sal refinado como os ingredientes mais prejudiciais da dieta moderna. “Além dos alimentos ultraprocessados, encontramos os embutidos, os laticínios, produtos cheios de açúcar e a gordura em excesso. Refrigerantes e sucos de caixinha são um capítulo à parte, pois contêm calorias acima do recomendado pela OMS (Organização Mundial da Saúde)”, recorda a ativista.

Para Luana de Brito, integrante da Teia de Articulação pelo Fortalecimento da Segurança Alimentar e Nutricional, o nutricídio surge a partir da lógica baseada no uso de agrotóxicos, transgênicos e ultraprocessados, e que incentiva o consumo desses alimentos em detrimento de opções in natura. Outra característica elencada por ela são os desertos alimentares, espaços nos quais é muito difícil encontrar alimentos frescos. Os mais atingidos por esse processo são pessoas negras e moradoras de áreas distantes dos centros urbanos, como mostra uma série de reportagens do Joio.

Menos de 1/3 da população consome frutas e hortaliças na frequência ideal. O percentual de pessoas que consome pelo menos cinco porções diárias desse tipo de alimento, como recomendado pela OMS, é de 27% entre a população branca e de 20% entre a população negra, segundo o Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel 2019).

A alimentação saudável é considerada um direito humano no Brasil, e o nutricídio pode ser compreendido como “a expressão do não cumprimento desse direito”. Suas causas, apontam especialistas, residem em fatores como a ausência de políticas de proteção social para lidar com os interesses de mercado do sistema de produção, processamento e distribuição de alimentos, que afetam os ideários da segurança alimentar e nutricional.

“A comida não deve somente ser vista como representação monetária; é preciso assumir seu papel de comunhão com a preservação do planeta e da vida humana. Para isso, a produção com base em valores agroecológicos de preservação de patrimônios alimentares vivos da cultura alimentar mantidos pelas práticas dos povos originários e da população tradicional de matriz africana é importante”, diz Denise Oliveira, coordenadora do Programa de Alimentação, Nutrição, Saúde e Cultura da Fiocruz Brasília.

Termos diferentes, alvos semelhantes

Nutricídio, genocídio alimentar, insegurança alimentar, desertos alimentares são expressões que remetem ao estado da fome. “No Brasil, é fácil prever qual a população mais afetada por essa condição”, observa Luana de Brito. A insegurança alimentar atinge mais a população negra, nordestina e rural, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). O levantamento mais recente revela que um em cada três domicílios com pessoas de referência negras (29,8%) estava em insegurança alimentar. Os lares referenciados em brancos, na mesma situação, eram praticamente a metade (14,4%).

Essa realidade tem seu diagnóstico reforçado por outro estudo, a recém-divulgada Pesquisa de Orçamentos Familiares do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), correspondente a 2017 e 2018, que aponta que os domicílios com maiores níveis de insegurança alimentar nesses anos eram formados pela população parda (acima de 50%). E que 15,8% do total de domicílios com insegurança alimentar grave tinha como referência uma pessoa preta. Nos domicílios com segurança alimentar, esse percentual é de 10%.

Registros oficiais no Brasil relacionam eventos históricos e o surgimento de termos relacionados com a alimentação no mundo. Um exemplo é “segurança alimentar”, expressão presente em pesquisas do IBGE. O termo, como mostra estudo da Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos, teve seu início na Europa, com força de uso a partir da constituição da Organização das Nações Unidas.

Ao longo dos anos, acordos e movimentos populares moldaram os princípios fundamentais dessa expressão, mas ainda hoje estudiosos apontam que a variedade de palavras é insuficiente para ir além de nomear estruturas de preconceito.

“A invisibilidade histórica de indicadores sociais e epidemiológicos representa o racismo estrutural sobre a população negra brasileira”, afirma Oliveira. “O resultado dessa situação que busca homogeneizar a pobreza como estrutura econômica, e não étnico-racial, contribui para negligenciar a ausência de políticas públicas de proteção social inclusivas e de reparação social que vem se perpetuando em governos desde a Proclamação da República para a população negra no Brasil. A insegurança alimentar, sobretudo em bolsões de pobreza urbanos e em áreas rurais, é decorrente desse processo.”

A pandemia do novo coronavírus também evidenciou que a alimentação é um elemento importante na cadeia de letalidade do vírus. Hipertensão e diabetes, doenças que integram o grupo de risco da doença, são mais comuns em pessoas negras. Brito lembra que pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde em 2017 indicou que a diabetes mellitus tipo II atinge as mulheres negras em 50% mais do que as mulheres brancas. No Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto​, a hipertensão atinge 30,3% dos brasileiros brancos e 49,3% de negros.

O Informe Covid-19, da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) e da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), indica que, com a crise sanitária, o aumento do desemprego e a queda na renda geraram uma mudança na dieta das famílias. Muitas pessoas passaram a optar por alimentos mais baratos e de menor qualidade nutricional, com mais gorduras saturadas, açúcar, sódio e calorias. Ou seja, o futuro próximo não será melhor.

Reportagem produzida com base em dados cedidos por Luana de Brito, integrante da Teia de Articulação pelo Fortalecimento da Segurança Alimentar e Nutricional.

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