Movimento pelo bem viver propõe para a pós-pandemia relação harmoniosa entre humanidade e natureza, com base em lições ancestrais
Texto: Juca Guimarães e Pedro Borges I Edição: Pedro Borges | Ilustração: Alma Preta
Quer receber nossa newsletter?
Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!
O ano de 2020 marca um ponto crucial de reflexão da humanidade sobre os impactos do modelo social e econômico que marcou o planeta durante o século 20. Grande parte deste processo se encontra em xeque diante da pandemia da Covid-19, o novo coronavírus.
Dados ambientais, pesquisas de comportamento, crises econômicas e análises de saúde apontam que, em nível mundial, a sociedade, do jeito que está, caminha rumo ao colapso. Um exemplo é o ar que respiramos. Cerca de 90% das pessoas respira, diariamente, um ar com elevados níveis de poluentes, que são responsáveis pela morte de 7 milhões de pessoas por ano, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS).
“A comunidade científica monitora uma sexta extinção em massa, e ela é causada pelo modo predatório de vida, que inclusive hierarquiza vidas. Nessa, os pretos, pobres e vulneráveis são os primeiros a morrer, além de já sofrerem constantemente com a exploração e empobrecimento causado pelo capitalismo. Nós, seres humanos, estamos levando o mundo para a extinção. Essa visão ocidental e eurocêntrica além de obsoleta é suicida”, diz Juliana Gonçalves, fundadora do coletivo Marcha das Mulheres Negras SP e mestranda da Universidade de São Paulo (USP) em Estudos Culturais.
As cinco primeiras extinções em massa, cambriana, ordoviciana, devoniana, permiana e triássica jurássica, ocorreram entre 488 milhões e 65 milhões de anos atrás, nas eras Paleozóica e Mesozóica, por conta de alterações bruscas no clima e quedas de meteoros, que levaram à extinção de mais de 98% das espécies do planeta, entre elas os dinossauros. O atual processo de dizimação em massa é chamada de extinção do holoceno, relacionada diretamente com a interferência da humanidade no planeta, cujos primeiros ancestrais surgiram há 4 milhões de anos.
A pandemia da Covid-19, o novo coronavírus, é mais uma prova evidente da falência do modo de vida atual. Entre janeiro e o final de maio, a doença matou 371.166 pessoas no planeta e infectou 6,05 milhões.
“Uma sociedade onde se destaca o acúmulo pela exploração, que é pautado na necropolítica, onde uns têm que morrer para que outros vivam dos privilégios dessa exploração, é uma sociedade doente, em desacordo com o horizonte ético-político do Bem Viver”, diz a psicóloga Clélia Prestes, autora de tese de doutorado para a Universidade de São Paulo (USP) sobre as relações entre o Bem Viver e a saúde.
A alternativa para salvar a terra e a sociedade pode vir dos ensinamentos do bem viver, um conceito que ganha destaque no debate político, social e ambiental. O movimento é baseado nos conhecimentos ancestrais, colaborativismo e o equilíbrio ambiental.
Nilma Bentes, escritora e engenheira agrônoma, explica que o conceito estimula um cotidiano mais coletivo e menos individualista, sem a mercantilização da vida das pessoas e dos recursos da natureza e sem a exploração de tudo ao máximo pelo lucro. Para ela, ser cidadão não é ser consumidor, é estar comprometido com o respeito à natureza e à descolonização do pensamento.
“Temos que buscar inspiração nos ensinamentos ancestrais, que não tinham como objetivo o acúmulo de bens materiais e financeiros, o lucro e a especulação dos mercados financeiros. Não se sustenta um modelo de crescimento econômico exponencial contínuo porque os recursos são finitos. Temos que voltar a valorizar o ‘ser’. O ser precisa ser maior que o ter”, diz Nilma Bentes, que também é ativista dos direitos das mulheres, negros e comunidades tradicionais na região amazônica.
A preservação do meio-ambiente, segundo Kinda Benguela van Gastel, a articuladora do movimento Engajamundo, deve ser prioridade na agenda política global. O monitoramento feito via satélite pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), na região dos nove estados da Amazônia Legal, divulgado em novembro do ano passado, mostrou um aumento de 29,5% na áreas desmatada, entre agosto de 2018 e julho de 2019.
“Da forma como as coisas estão sendo levadas, os ambientes não estão sustentado. É preciso se antecipar para recuperar algumas mudanças que podem ser reversíveis. Caso contrário, teremos perdas de espécies e ecossistemas inteiros. Temos que mudar o entendimento das pessoas sobre o meio-ambiente. A pandemia do Covid-19 trouxe novas experiências e tempo de reflexão. A necessidade de consumir menos e de forma consciente é uma delas. Não pode ser uma mudança só de rotina, mas da cabeça das pessoas”, diz.
Em 19 de agosto de 2019, por volta das 15h, toda a cidade de São Paulo ficou escura como se fosse noite. Isso aconteceu por conta de uma frente fria e da fumaça vinda das queimadas da região amazônica por conta do desmatamento de floresta e da implantação de pasto e da monocultura da soja.
Uma das alternativas à monocultura e à proposta de queimar florestas e biomas é a construção de hortas comunitárias e o incentivo à agricultura familiar. Na própria cidade de São Paulo, coletivos têm aproveitado a água das chuvas para gerar renda, emprego e alimento.
O coletivo Imargem, com ações focadas na proteção do meio ambiente no extremo sul da cidade, desenvolve parcerias para a proteção das áreas de mananciais. O grupo tem vários projetos funcionando na região com geração de emprego, renda para a comunidade local. Alguns projetos, contudo, precisam do investimento público e poderiam impactar de maneira ainda mais positiva a proteção da água e a criação de postos de trabalho.
“Por exemplo a implantação de sistemas mais ecoeficientes, como tecnologias permaculturais, bacias de evapotranspiração, filtros de bananeira, cisternas entre outras muitas possibilidades já incubadas em vários territórios. Aqui no Grajaú e Parelheiros temos vários exemplos positivos”, diz Wellington Neri, articulador do Imargem e conhecido nos movimentos sociais como Tim.
Economia e bem viver
A população mundial é de 7,8 bilhões de pessoas. Em 1900 era 1,6 bilhão e, segundo as estimativas de projeção de população da Organização das Nações Unidas (ONU), em 2100, serão 10,9 bilhões de pessoas dividindo o planeta. A porção dos 1% mais ricos do planeta acumula 82% de toda a riqueza produzida no mundo, de acordo com o levantamento da ONG Oxfam Brasil.
Na economia, o bem viver condena a concentração de renda e destaca a importância do colaborativismo, dos comércios locais e do fortalecimento das iniciativas solidárias como forma de propor uma vida saudável para todos. É o que sugere Juliana Gonçalves. “Agora em tempos de isolamento que temos que sair de casa apenas para o estritamente necessário, podemos escolher entre dar nosso dinheiro para as grandes redes de supermercado ou estimular a economia do nosso bairro. O bem viver assinala o segundo não como uma medida de desespero, mas como parte da engrenagem que estimula a economia local. É influenciada pelo bem viver, que as mulheres do coletivo que eu faço parte, a Marcha das Mulheres Negras de SP, compram máscaras costuradas por mulheres negras empobrecidas para doar para outras famílias chefiadas em sua maioria por mulheres negras”, diz.
O pesquisador Ivamar Santos, militante do movimento negro desde os anos 70, conta que o Bem Viver está constantemente pulsando no cotidiano dos quilombolas. Ele visitou mais de 100 quilombos da região norte do país.
“O compartilhamento é fato marcante no modo de vida dos quilombos. As dificuldades são superadas coletivamente. As histórias e ensinamentos dos antepassados são contadas todas as noites. A cultura é praticada diariamente para celebrar a ancestralidade”, diz, Ivamar, que só no estado do Amapá, visitou 69 quilombos. Ele é criador do coletivo Amazonizando, que tem o objetivo de divulgar os ensinamentos, o modo de vida, a ancestralidade dos povos tradicionais da região amazônica e o Bem Viver.
Mais do que uma economia direcionada para o interesse dos seres humanos, o movimento acredita na necessidade do desenvolvimento financeiro de toda humanidade estar em diálogo e em respeito aos biomas da natureza. “O bem viver prega uma economia submetida à ecologia, respeitando o meio-ambiente. Hoje é o contrário. A ecologia é submetida à economia e sem a distribuição das riquezas. É necessário um conjunto de mudanças estruturais com o uso dos ensinamentos do bem viver. É uma questão de sobrevivência”, avalia Nilma Bentes.
A sobrevivência para os quilombolas da Ilha da Maré, na Baía de Todos os Santos, em Salvador (BA), é um exemplo desse modo de vida e atuação. As práticas são desenvolvidas a partir do modelo do bem viver.
“As comunidades pesqueiras quilombolas daqui estão se reinventando sempre, de acordo com as nossas relações com a natureza. É ela que determina o modo de vida. As marés, as estações do ano norteiam a nossa economia, o que vamos produzir e como vamos produzir coletivamente. Desde os anos 1990, já aconteceram 53 crimes ambientais na Baía de Todos os Santos. Existem cemitérios de árvores frutíferas na região, o que comprometeu a segurança alimentar das família, mas as comunidades que sabem respeitar a natureza estão seguindo em frente. A natureza nos ajuda a fazer grandes reflexões”, disse Eliete Paraguassu, moradora e pesqueira da Ilha da Maré, na Baía de Todos os Santos, em Salvador.
A potência e o respeito ao meio ambiente para o desenvolvimento financeiro das comunidades locais são descritos por Mariah Fernandes, dirigente nacional da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e quilombola de Parelhas, na região do Seridó, no Rio Grande Norte.
“Estamos enfrentando problemas que estão abalando as nossas economias muito por causa da pandemia. Mas a nossa relação com a natureza é forte. O ar, a água, a terra e a floresta são o nosso território, que reproduz a nossa existência e a nossa tradição. É um espaço que a gente protege porque é onde vivemos”, diz.
Para Mariah, a visão quilombola da força da natureza é a base para o equilíbrio da vida, apesar das constantes ameaças de expulsão de suas terras. “Desde sempre, nós quilombolas, produzimos de maneira intensa. A gente sempre teve um olhar particular de quem cultua a ancestralidade e tradições. Valorizar, amar e interagir de forma viva com o território mantém as garantias de subsistências”, diz.
A quilombola exemplifica que a produção agrícola em harmonia com a natureza, chamada de agroecologia, é um modelo sustentável de agricultura familiar. “Estamos com matas vivas em nossas terras há 400 anos. São matas vivas e produtivas. O agronegócio mata e o modo de vida quilombola, que tem uma tradição de centenas de anos, protege a vida”, acrescenta.
A redução da produção industrial no Brasil tem gerado impacto nas atividades dos quilombolas, que fazem comércio com as cidades, mas também trouxe mudanças positivas na natureza. “A venda de produtos e o etnoturismo pararam. A poluição no ar, por outro lado, diminuiu. Esses dois últimos meses foi um alívio para a natureza. O ar ficou mais limpo nos territórios. As chuvas já começaram a seguir o seu ciclo natural como era antigamente”, disse Biko Rodrigues, coordenador executivo da CONAQ e moradora do quilombo do Ivaporunduva, no Vale do Ribeira, interior de São Paulo.
A mudança da natureza durante a pandemia indica que um outro modelo de relação com o meio-ambiente é possível, de acordo com Biko. “A natureza está voltando a falar com a gente. Os rios que tinham agrotóxicos estão com água limpa e os peixes vão voltar. Se a ganância do homem parar, se parar de pensar no dinheiro e colocar outros bens que são mais importantes como a qualidade de vida, respirar ar puro, alimentação adequada, as coisas vão melhorar. É lógico que não é para abrir mão de ter os bens necessários para uma vida de qualidade, mas sem precisar saquear a natureza”, diz.
O modelo de agricultura familiar, como o adotado nos quilombos, é responsável pela diversidade dos alimentos produzidos no Brasil. Cerca de 70% de todos os alimentos consumidos pelos brasileiros foram plantados em propriedades pequenas, de até quatro módulos fiscais, onde a família dona da terra é quem planta, cuida, colhe e vende.
“Uma sociedade que consegue tirar o seu sustento e proteger o meio-ambiente é a ideal. Sem ir além disso, porque ir além disso é voltar a um passado que nos trouxe ao momento que estamos hoje com metade do mundo passando fome dentro de casa. Os povos quilombolas têm muito a ensinar com a sua forma de gerir a sua economia. Os elementos da natureza são importantes para que a vida exista com abundância”, diz Biko.
A agricultura familiar ajuda a proteger as nascentes dos rios e a ativar a economia local. Por ano, a agricultura familiar movimenta cerca de R$ 107 bilhões. “O que é mais que a economia total de pelo menos 12 estados”, avalia o economista Carlos Mário Guedes de Guedes, ex-presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e diretor do Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural.
Já o agronegócio, com grandes plantações de monoculturas, está avançando sem limites sobre áreas de proteção ambiental e florestas, prática defendida pelo governo do presidente Jair Bolsonaro. O ministro do meio-ambiente Ricardo Salles sugeriu inclusive que o governo aproveitasse a pandemia do covid-19 para “passar a boiada” e enfraquecer as leis de proteção ambiental para favorecer o agronegócio.
Saúde
A psicólogo Clélia Prestes escreveu uma tese de doutorado para a Universidade de São Paulo (USP) falando sobre as relações entre o Bem Viver e a saúde.
“Bem viver é a saúde pessoal conciliada com o equilíbrio da comunidade e da natureza, em resistência a poderes hegemônicos. Ele rejeita as ideias de superioridade de uma coisa sobre outra. Não faz sentido visões eurocêntricas, patriarcado, de hegemonia brancas ou outras dominações políticas””, diz a autora da tese “Estratégias de promoção da saúde de mulheres negras: interseccionalidade e Bem Viver”.
Clélia dá um exemplo de como a saúde e a sobrevivência das pessoas é afetada atualmente pela conjuntura social. “Uma sociedade onde se destaca o acúmulo pela exploração, que é pautado na necropolítica, onde uns têm que morrer para que outros vivam dos privilégios dessa exploração, é uma sociedade doente, em desacordo com o horizonte ético-político do Bem Viver”, diz.
Esta reportagem é uma parceria entre o Alma Preta e o ClimaInfo.