Como movimentos pela libertação do povo negro foram vistos como instrumentos de resistência a ditaduras e de políticas imperialistas dos EUA em meados do século XX?
Texto / Dudu Ribeiro*
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“Sou muito grosseira, sou uma mulher das docas. Eu sou uma mulher muito bruta, mas tenho que aprender; então, eu tenho que prestar atenção duas vezes”. Agustina Rivas vestia botas militares verde-oliva, uma pistola .45 no cinto, um rifle M-16 no ombro e duas bazucas em um jipe que ela e dois mergulhadores rebeldes tinham tomado de assalto de soldados americanos. A negra Agustina tinha apenas 16 anos quando enfrentou a invasão de 42 mil fuzileiros navais norte-americanos na República Dominicana. A Força Interamericana de Paz (FIP), sob o pretexto de cessar uma guerra civil desencadeada pela derrubada do presidente eleito Juan Bosch, do Partido Revolucionário Dominicano (PRD), investia para conter as fronteiras da Revolução Cubana no Caribe, buscando sufocar as ações populares nas Américas.
A ilha de São Domingo, palco da primeira revolução negra no continente, era um cenário de guerra. O governo do PRD foi eleito e derrubado em sete meses, mais precisamente no dia 27 de setembro de 1963, em uma conspiração de interesses que envolviam os Estados Unidos, por meio da Agência Central de Inteligência (CIA), as oligarquias dominicanas e a alta cúpula da hierarquia eclesiástica, além de militares. O governo de Bosch investiu os primeiros meses em defender reformas populares, como a democratização da terra e a nacionalização de empresas estrangeiras, depois de três décadas da ditadura do General Rafael Leónidas Trujillo. Cerca de 35 mil haitianos que viviam no país foram assassinados em apenas seis dias no ano de 1937. Um recado lançado para sombrear a história de resistência haitiana na ilha de São Domingo e que era aquele também um recado a toda a ilha sobre respostas aos processos de resistência e soberania populares que ousassem desafiar o regime. A preta Agustina Rivas participou da insurreição civil-militar conhecida como a Revolução de Abril, que derrubou o golpe para restabelecer o governo de Juan Bosch. A resposta foi a Operação Power Pack, do presidente dos Estados Unidos Lyndon B. Johnson, que enviou os milhares de militares à ilha. Durante aproximadamente cinco meses, de maio a setembro de 1965, o país contou com dois governos: o Governo Constitucionalista, oriundo das resistências ao golpe, e o Governo de Reconstrução Nacional, com o candidato mais conservador.
Assinado o acordo de Reconciliação Nacional, no entanto foram realizadas novas eleições, com a vitória do candidato de direita, Joaquín Balager, apoiado pelos Estados Unidos. Terminadas as batalhas sangrentas do período revolucionário, uma caçada foi iniciada contra todos aqueles e aquelas sem nomes e sobrenomes, que lutaram na revolução. Tina Bazuca, como ficou conhecida Agustina Rivas teve a sua garganta cortada e o corpo jogado na ponte sobre o rio Ozama. A mesma ponte que ela mesma havia defendido nos dias de abril de 1965.
Naquele momento, mais ao norte mais nas Américas, surgia o Partido dos Panteras Negras para a Autodefesa, organização fundada pelos irmãos Huey Newton e Bobby Seale, para combater a opressão racial, a tortura, o assassinato, encarceramento em massa de negras e negros, a violência praticada por policiais e outros agentes em todo o país. Os Panteras Negras lançaram em 1966 uma plataforma unificada em 10 pontos que incluíram demandas por liberdade, terra, habitação, emprego e educação para as pessoas negras, em um país que se declarava livre da escravidão desde 1863. Em 1969, J. Edgar Hoover, diretor do FBI, declarou os Panteras Negras como “a maior ameaça a segurança interna dos Estados Unidos da América”.
Panteras Negras (Imagem: Stephen Shames)
No mesmo período, o governo dos Estados Unidos criou o COINTELTRO, um programa de contrainteligência realizado por intermédio do FBI para combater a ameaça comunista a partir, inclusive, de operações ilegais em território norte americano e no exterior. E não demorou para as agências deslocarem parte significativa dos recursos para combater a “ameaça comunista” negra.
A partir da ação do partido, negros e negras dos Estados Unidos haviam passado a organizar brigadas de autodefesa nos bairros, produzindo e distribuindo até 300 mil exemplares semanais de seu jornal, que atingiu a marca de 500 edições, e chegaram a alimentar 10 mil crianças por dia através de seu programa de alimentação. Construíram uma organização que podia defender a comunidade negra contra a brutalidade policial e, ao mesmo tempo, produzir uma visão anticapitalista.
Em 1969, Fred Hampton, de 21 anos, e Mark Clark, de 22, foram assassinados por 14 agentes da polícia de Chicago enquanto dormiam: cerca de 100 projéteis foram disparados contra os dois. Entre os anos de 1963 e 1969, Martin Luther King, Malcom X e Medgar Evers foram assassinados. Mais de 900 pessoas foram presas, o que massacrou parte importante da ação de luta por liberdade da população afro-americana na década de 1960.
Naquele período, o Brasil vivia sob o regime civil militar que derrubou o presidente eleito João Goulart. Em 24 de maio daquele mesmo ano, 1965, 1.250 militares brasileiros da recém-criada Força Interamericana do Brasil (Faibras), a maioria de jovens entre 18 e 20 anos, partiram do Rio de Janeiro e se juntaram a soldados de El Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica, El Salvador e Paraguai, além dos Estados Unidos, na Força Interamericana de Paz (FIP) para combater a “ameaça comunista” na ilha de São Domingo. Ao mesmo tempo, a ditadura brasileira perseguia o líder negro baiano Carlos Marighella, fundador da Ação Libertadora Nacional (ALN).
Em 4 de novembro de 1969, Carlos Marighella foi fuzilado em um fusca na Alameda Casa Branca, no Jardins, em São Paulo. Cerca de 40 homens, entre civis e militares, abriram fogo contra o líder da ALN sob o comando do delegado Sérgio Fleury, do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social). Entre os anos de 1969 e 1971, mais de 200 pessoas foram executadas pelos homens comandados por Fleury na capital paulista, conhecidos como esquadrão da morte.
Carlos Marighella
Considerando levantamentos policiais do período, entre 1963 e 1975 os grupos de extermínio formados por policiais mataram quase 900 pessoas no Rio e em São Paulo.
O essencial dos percursos que aqui busco costurar é a percepção da violência e da produção de mortes nas experiências de liberdade e independência do povo negro também no século XX e atualidade da luta contra a escravidão, reapresentando o fato de que os processos de resistência e luta construídos não deram conta de superar a escravidão ainda nos dias de hoje. E o nosso abolicionismo continua na pauta. As experiências negras nos diversos espaços do chamado mundo Atlântico do século XX, onde se construíam as ideias e instrumentos das modernas democracias ocidentais, e os diversos movimentos históricos contínuos de pessoas e de papéis através dos oceanos e de outras águas, encontra a marca da violência contra a nossa forma de existência, atravessa os mares e nos permite conectar eventos que deslocam problemas como o da liberdade, os fenômenos de raça e antirracismo e os seus movimentos políticos e revolucionários.
A viabilidade das nações europeias e da América do Norte no período descrito até aqui como pós-escravista nas Américas, determinado o fim do comércio de pessoas, não rompeu com a nossa história de escravização. Em nenhum dos povos. O estabelecimento de outras bases para a exploração do trabalho no mundo capitalista ainda promove a escravização de uma população estimada de até 37 milhões de pessoas no mundo. E os efeitos da sangrenta história escravista estão nas instituições onde nós operamos as nossas relações cotidianas hoje.
Os países escravistas ocidentais falharam em superar a escravidão porque nunca de fato se importaram em fazê-lo. A aplicação do direito penal e a sofisticação de outros mecanismos de controle reforçam a extensão, para a sociedade pós-abolição, das regras sociais do mundo escravista, sequestram a possibilidade de cidadania para a população negra, promovendo a construção de uma economia das violências que passa a ser “a exposição da população negra a uma ameaça incondicional de morte”. Sua relação com o marco jurídico e das demais instituições das modernas democracias se dá por meio de posição de precariedade diante da vida. Para Mbembe, a articulação entre velhas e novas formas de dominação é exatamente, nas modernas democracias, o que fará surgir uma nova forma de governo da vida e das mentalidades tendo como característica fundamental a sujeição da vida ao poder da morte. A produção social da subordinação e inferiorização, e os processos de produção de vitalismo e morte informados pela filiação racial orientam a perspectiva de controle e punição, expressos nos códigos e práticas penais, herdados do império e consoantes com o projeto político excludente nas Américas.
Quando buscamos reconstituir as conexões entre as diversas reconfigurações dos mecanismos de controle social no século XX e a produção de resistências negras ao processo histórico do genocídio aprofundado pelo capitalismo, encontraremos a permanência de um conjunto de empreendimentos herdados das relações escravagistas. O liberalismo e o racismo corporificavam os dois grandes modelos teóricos que organizam a arquitetura punitiva positivista e a forma de atuação de guerra contra as insurgências negras que pudessem abalar o projeto de supremacia racial branca no mundo. É nesse lugar, de uma convivência paradoxal entre o reforço do indivíduo e sua responsabilidade pessoal, propagado pelo capitalismo, e a percepção de atuação de um grupo orientado por condições biológicas singulares, inconcebível fora das suas agências violadas durante a escravidão, que iremos encontrar as matérias puníveis, e para quem é dirigida o poder de matar.
As agências que organizam o saber fazer policial, bem como as que produzem as narrativas criminológicas e os resultados judiciais, mas que ao mesmo tempo utilizam-se da força da espetacularização midiática e da banalização das mortes, estão vinculadas a projetos históricos não superados. Sofisticaram antigos mecanismos, criaram novos, mas continuam com as mãos sujas da morte de Tina Bazuka e Malcom X. A filósofa Hannah Arendt, branca, ao sair e relatar o julgamento de um dos grandes malfeitores da época nazista, Adolf Eichmann, falou sobre banalidade do mal, onde afirmou ter visto um burocrata, preocupado em cumprir as ordens, para quem as ordens substituíam a reflexão, qualquer pensamento que não fosse o de bem cumprir as ordens. Pensamento técnico, descasado da ética, banalidade que tanto facilita a vida, a facilidade de cumprir ordens.
Os períodos de repressão militar no Brasil no século XX produziram um dos mais graves e profundos resultados na vida da população negra, mas as histórias contadas são em sua maioria das personagens brancas, das diversas organizações políticas. Pouco debatida, pouco refletida, a hegemonia na produção de ideologias embranquecidas sufoca também esse processo da nossa história. Tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo, é nesse momento por exemplo, que os esquadrões da morte investem na produção de uma série de assassinatos, espetacularizados, baseado em idéias de “justiçamento”, por exemplo, com operações que retiravam presos comuns, pretos, de dentro de presídios, assassinavam cruelmente e expunha na mídia. Quando se revela mais uma vez que a substituição do espetáculo do suplício pela economia dos direitos suspensos relatados por Foucault, na história das punições e regimes, está mais para a somatória do que para distinção. Espetacularizar a barbárie e suspender direitos. Pôs-se em prática uma nova forma de ver o mundo e lidar com assassinatos em sociedades em processo de urbanização, baseado na caça à “criminalidade”. Os homicídios passam a ser ampliados, menos sofisticados, usados como uma “forma eficaz para limpar a sociedade dos bandidos” e, assim, respondiam ao desejo de vingança fomentado em uma população amedrontada.
As teorias raciais e os mecanismos presentes da escravização promoveram nas cidades a construção da pessoa criminosa antes mesmo do crime. Mas também fomentou a agência de interesses contra as insurgências negras e anticapitalistas. A resposta exibida, e aplaudida pela sociedade, é banalizar o mal, fazer com que ela saia das altas cúpulas, e sejam prática do cotidiano de cada cidadão e cidadã comum. Para que não choremos nossas mortes. Para que não resgatemos nossos nomes. O mal banalizado, a necropolítica que opera nossas vidas, é empurrada das mãos dos torturadores e dos que assinam os papéis e fazem posts no Twitter, para as pessoas de “mãos limpas” que geram um sistema que permite que pessoas banais façam coisas como a tortura, o assassinato, a matança e reivindiquem agir em nome da sociedade.
A banalização do mal sombreia a impunidade daqueles e daquelas que desfrutam dos crimes praticados contra a humanidade, que são oriundos, nações e pessoas, de um projeto de massacre global contra milhares de povos, e que associados ao desenvolvimento histórico do capitalismo, são precisamente as mesmas que constituem as principais beneficiárias dessa globalização imposta sobre as pautas neoliberalismo. Do saque às riquezas nacionais, da produção em larga escala da morte como exercício do controle da vida, de um neocolonialismo financeiro, que impedem historicamente o exercício da livre determinação dos povos e nos condiciona a um processo cotidiano de guerra por sobrevivência, de todas nós.
Pelas muitas anônimas e conhecidas que percorreram a nossa história, e que podem ou não aparecer em algum dos anais das histórias embranquecidas e escritas por aí; das muitas Tina Bazuca cheias de bombas molotov amarradas na cintura; da vizinhança em torno da Ponte Duarte, onde sua mãe vivia e foi o epicentro da revolução, até as águas do Rio Ozama; recontar a nossa história de revoluções, do povo negro na diáspora, é preciso. É por Agustina Rivas, Carlos Marighella, Mark Clark, Fred Hampton, Marielle Franco. É por todas.
Nós entendemos o recado e nunca deixaremos os nossos postos. Porque como Tina, nós sempre prestamos atenção duas vezes. Não vai ter volta!
*Dudu Ribeiro é formado em História pela Universidade Federal da Bahia e Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História na mesma universidade. Coordena com outras pretas a estratégia Iniciativa Negra por Uma Nova Política de Drogas e é integrante da organização de torcedoras e torcedores Brigada Marighella, em Salvador, na Bahia. Rubro-negro, começou no uso de drogas com o açúcar por volta de 1986.