Seja em novelas, filmes ou na imprensa televisiva, a presença de pessoas pretas e pardas em posição de destaque está longe de refletir a composição étnico-racial do Brasil
Texto / Amauri Eugênio Jr.
Imagem / Reprodução / Rede Globo
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Salvador é a capital federal com o maior percentual de pessoas pretas e pardas na composição populacional. A principal cidade da Bahia tem 80,2% de pessoas negras dentro da composição étnico-racial. A população brasileira é formada por quase 54% de pessoas negras, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
A mesma Salvador é retratada em “Segundo Sol”, novela das 21h da Rede Globo, mas não parece ser a mesma Salvador da vida real. Na trama, o par romântico dos primeiros episódios foi formado pelos atores Emilio Dantas (Beto Falcão/Miguel) e Giovanna Antonelli (Luzia/Ariella), enquanto os demais papéis de destaque são de Deborah Secco (Karola, a vilã), Vladimir Brichta (Remy), Adriana Esteves (Lauretta) e, na segunda fase, Chay Suede e Luisa Arraes interpretarão os filhos de Luzia – Ícaro e Manuela, respectivamente. É importante ressaltar que não se trata de crítica aos atores citados – ambos têm méritos na carreira -, mas sim ao contexto em que foram inseridos.
Ainda, o papel relevante destinado a um ator negro na produção é o de Roberval, interpretado por Fabrício Boliveira.
Desse modo, pode-se dizer que “Segundo Sol” promoveu whitewashing (lavagem branca, em tradução livre do inglês). Esse termo é usado para situações em que a escalação de atores brancos ocorre em casos nos quais deveria haver representação de outras etnias.
Giovanna Antonelli, Emilio Dantas e Deborah Secco (Imagem: Divulgação / Rede Globo)
A Coordigualdade (Coordenadoria Nacional de Promoção à Igualdade de Oportunidade e Eliminação da Discriminação no Trabalho), do Ministério Público do Trabalho, enviou, em 11 de maio, documento para haver representação racial mais significativa na novela. Caso não sejam tomadas medidas necessárias para mudar esse panorama, a emissora poderá ser acionada na Justiça por esse motivo.
Apesar de este caso não ser inédito, ainda mais ao se levar em conta que produções da Globo, SBT e Record têm, segundo o portal UOL, 7,98% de atores negros nos respectivos elencos, trata-se de algo mais profundo do que uma mera questão artística.
“A falta de representatividade é algo gritante. A [estrutura da] televisão brasileira remete a meados do século passado e ninguém pegou no pé com o passar do tempo. Quando a pessoa negra aparece, é associada a estereótipos negativos: a mulher é associada à sexualidade e atores negros interpretam bandidos. A explicação para isso é a lógica racista na Globo e na sociedade, pois não é possível dissociar a mídia das relações sociais”, explica Francisco Fernandes Ladeira, mestre em geografia e articulista do Observatório da Imprensa.
Representatividade conta
Em 2015, o filme “Star Wars: Episódio VII – O Despertar da Força”, um dos protagonistas era Finn, interpretado pelo ator inglês – e negro – John Boyega. Apesar de alguns fãs terem reclamado sobre a presença de um personagem não-caucasiano na trama, o longa dirigido por J.J. Abrams tornou-se, à época, o filme com a maior bilheteria dos EUA. Ainda naquele mesmo período, a foto do garoto Matias Melquíades segurando o boneco do personagem viralizou nas redes sociais e levantou debates relativos à representatividade.
Imagem: Reprodução / Facebook
Ainda que uns e outros digam que isso se trata de problematização sem fundamento ou até mesmo vitimismo, o fato é que representatividade conta. E conta muito. “Parâmetros de identificação subjetiva são criados e, de alguma forma, o jovem que assiste à televisão se identificará com os atores”, ressalta Ladeira, sobre a identificação com determinado personagem, apesar de a televisão não ter o mesmo poder de antes. “Hoje, a novela perdeu um pouco da força que tinha em comparação com a era pré-internet.”
Como consequência, quando uma pessoa de determinado grupo étnico-racial vê alguém desse mesmo segmento interpretando papéis de personagens subalternos ou inseridos em contexto criminal, isso poderá ter influência definitiva em sua formação social. “Desde pequeno, a pessoa negra incorpora esse aspecto negativo em si e isso influenciará a postura dela na sociedade,” detalha Francisco Fernandes Ladeira, sobre como esse aspecto tende a invisibilizar a pessoa negra na sociedade.
O que a Globo tem a ver?
Vamos levar em conta que a Rede Globo, assim como as demais emissoras cujas redes são abertas, receberam concessão estatal para radiodifusão. Em resumo: apesar de comportarem-se como empresas privadas, dependem de autorização do Estado para poderem operar na rede aberta.
Desse modo, é importante destacar que as emissoras, pontualmente falando, têm responsabilidade social também por esse motivo. Logo, a questão racial engloba esse cenário – “ainda mais a Globo, que se apresenta como representante do Brasil”, destaca Ladeira. E há milhões de negros entre os milhões de uns, diga-se de passagem.
Todavia, voltando à relação mídia e sociedade, que se retroalimenta de modo contínuo, a mídia reproduz estereótipos ao mesmo tempo em que é influenciada pelo comportamento social – vide Ali Kamel, diretor-geral de jornalismo da Globo, ter publicado o livro “Não Somos Racistas”. “Um diretor da Globo dizer isso diz muito sobre a emissora. Isso tudo vem de ideologia que coloca a miscigenação como algo natural, o que é muito mais forte do que a Globo.”
O mundo está mais chato?
Volta e meia surge alguém para dizer que o mundo está chato, pois não se pode mais fazer piadas de cunho racial, com gênero ou sobre orientação sexual. “Renato Aragão disse certa vez que, no auge de ‘Os Trapalhões’, era possível fazer piadas com minorias que isso passaria batido. Hoje, há grupos que não aceitam piadas. E isso parte da conscientização da população”, pontua o mestre em geografia e articulista do Observatório da Imprensa.
Sendo assim, o que será necessário para mudar esse panorama e a população negra ser, de fato, ter representatividade relevante na mídia? “Essa mudança não virá de cima e será muita ingenuidade achar que minorias serão representadas. A pressão será popular e a conscientização só acontecerá por meio de sistema educacional melhor, que leve os alunos a pensarem sobre essas pressões, ainda que setores tentem barrá-las pelo medo de se formar geração mais consciente, que pleiteará melhorias nesses produtos de mídia”, completa Francisco Fernandes Ladeira.