Em entrevista ao Alma Preta, a pesquisadora Cláudia Adão fala sobre a sua obra Territórios de morte: homicídio, raça e vulnerabilidade social na cidade de São Paulo
Texto / Simone Freire | Imagem / Reprodução
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Contextualizado no conceito de “necropolítica”, criado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, que salienta o primado da morte como estratégia de exercício do poder moderno em territórios e populações considerados como ameaça, a pesquisadora Claudia Adão fala sobre sua obra “Territórios de morte: homicídio, raça e vulnerabilidade social na cidade de São Paulo”.
Segundo ela, “o racismo faz o corte entre os que devem morrer e os que devem viver, entre os que terão acesso a direitos e os que não terão”. E é esta a realidade a vivida no dia a dia da capital paulista.
Adão também falou sobre a atual conjuntura política do país, com os governos de Jair Bolsonaro (PSL) a nível nacional; e João Doria (PSDB), a nível estadual. “Estamos sob um Estado Necropolítico que busca exercer o poder soberano sem nenhum limite, através de políticas e mecanismos de morte”, disse.
Confira a entrevista completa:
Sua obra tem como título “território de morte” em São Paulo. É bem impactante, embora pra quem viva esta realidade, isso não seja uma novidade, certo? Mas queria que você falasse um pouco sobre o histórico da sua pesquisa, como a Cláudia chegou ao território de morte e de que território estamos falando.
Os territórios de morte não são uma novidade, na cidade de São Paulo eles vem se constituindo desde o pós-abolição. Existe uma articulação entre raça, território, vulnerabilidade social e mortalidade, esta articulação não é algo de agora, ela tem origem com as políticas de exclusão da população negra no pré e no pós-abolição, apontadas por Clóvis Moura no livro Dialética Radical do Brasil Negro, e com o processo de segregação urbano e racial da população negra.
Pesquisadora Cláudia Adão. Foto: Reprodução.
Eu vi essa articulação concretamente no dia que estava indo para o meu antigo emprego no bairro de União de Vila Nova no extremo leste de São Paulo e me encontrei com os corpos de três jovens negros que tinham sido assassinados, depois do impacto veio a pergunta: Por que isso acontecia ali naquele bairro e eu nunca tinha visto nada parecido durante os 5 anos que trabalhei em Higienópolis ? A articulação perversa que te falei é a resposta. Estou falando de territórios majoritariamente habitados pela população negra, localizados nas periferias da cidade e que apresentam os maiores índices de vulnerabilidade social e homicídios.
Onde o racismo entra na sua avaliação do território? Alguns falam em apartheid social… estão relacionados? Como você vê isso?
O racismo faz o corte entre os que devem morrer e os que devem viver, entre os que terão acesso a direitos e os que não terão. Por exemplo, lá em 1850 com a Lei de Terras, quem teve acesso às terras no Brasil? A quem o Brasil Império as destinou? Quem poderia comprá-las? Os negros escravizados e depois “libertos”? Não!
Em São Paulo do pós-abolição, quem teve acesso às suas casas, templos e mercados destruídos dos pelos Trabalhos de Melhoramentos da cidade? Foi a população negra!
No Brasil e na cidade de São Paulo foram realizadas políticas de Estado e mecanismos urbanísticos higienistas com efeito discriminatório sobre a população negras, que tem efeitos que repercutem até hoje nas condições de vida dos negros e negras. Isso é racismo! O racismo estrutural, que no Brasil é estrutural, e atua nas dimensões, econômica, política e subjetiva e diz respeito ao modo de estrutura social, funcionamento normal da vida cotidiana.
Na sua pesquisa você usa o conceito do Achille Mbembe de necropolítica. Pode explicar um pouco sobre ele e como enxergar este conceito em São Paulo?
Necropolítica é um conceito criado pelo filósofo camaronês Achilles Mbembe. Necropolítica expande o conceito de Biopoder proposto por Foucault, aquele diz respeito à produção calculada e otimizada da vida, ao passo que aquela salienta o primado da morte, como estratégia de exercício do poder moderno em territórios e populações considerados como ameaça.
Uma das dimensões da Necropolítica refere-se à destruição material dos corpos e populações humanas, julgados como descartáveis e supérfluos, o que remete a uma vida matável e sem valor e também diz respeito ao exercício do poder soberano sem nenhum limite.
Com a Necropolítica os regimes políticos atuais obedecem ao esquema de fazer morrer e deixar viver que se dá pelas condições precárias de vida nas quais está submetida a população negra nas periferias.
A sonegação de direitos básicos e as condições de vida mais precárias vivenciadas nas periferias, por grande parte da população negra, principalmente a sua juventude, expõe parte significativa deste grupo à maior incidência de violência letal, os homicídios, a precária infraestrutura urbana, a escassez de equipamentos públicos e a violência policial são algumas das demonstrações da Necropolítica.
São Paulo é uma cidade que tem uma efervescência cultural muito ativa. As periferias estão, mesmo que a muito custo, pulsando a todo momento. As características que levam ao “território de morte” também estão neste campo mais, digamos, subjetivo? Quer dizer, também está relacionado ao campo intelectual, identitário?
Cresci em uma escola de samba, quando criança também dancei em um grupo de dança afro-brasileira do meu bairro, como em diversos lugares da periferia na minha quebrada também existia muita efervescência cultural, o que fez toda diferença na minha trajetória de vida.
Muitas expressões culturais negras foram e continuam a ser discriminadas e perseguidas. No passado foi o samba, depois o rap, atualmente o funk. A cultura periférica é um campo de resistência, mesmo diante da morte, há inclusive uma tentativa de morte epistemológica quando se tenta discriminar e não dar visibilidade para essas manifestações culturais, contudo as periferias seguem criando, resistindo e elaborando contra narrativas. A efervescência cultural que acontece nesses territórios é uma demonstração disso.
O que pensar da atual conjuntura política nacional, com as mudanças previstas pelo ministro Sergio Moro, por exemplo, ou a eleição de João Doria ao governo, dizendo que a polícia primeiro irá atirar e depois perguntar?
Estamos sob um Estado Necropolítico que busca exercer o poder soberano sem nenhum limite, através de políticas e mecanismos de morte.
Dados da Secretaria de Segurança Pública de SP, apontam que foram efetuadas 175,9 mil prisões em 2017, enquanto houve 103,7 mil detenções em 2007. O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, 64% desse grupo é composto por pessoas negras. É possível dizer que tais medidas são reflexos de políticas conservadoras, punitivistas e até mesmo higienistas do poder público.
Segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública houve um aumento no número de pessoas mortas pela polícia , em 2018. No mesmo período, o número de policiais assassinados caiu. 6.160 pessoas foram mortas por policiais em serviço ou folga , um aumento de 18% em comparação com 2017, ao passo que o número de policiais assassinados caiu quase 20%.
A atual conjuntura política nacional, o discurso político e as políticas de valorização da segurança pública em detrimento de políticas de bem-estar social, as propostas de Sergio Moro e João Dória evidenciam a dimensão necropolítica do Estado Brasileiro, pois propõem mecanismos para legitimar e intensificar a letalidade da polícia e a criminalização das pessoas negras, desconsideram todos os dados que apresentei agora. A realidade baseada em dados, pesquisas, evidências históricas não justificam essas propostas absurdas!