Seria o último Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Aos 26 anos, Matheus de Araújo já tinha feito oito provas e tentou ingresso em mais de 15 vestibulares. Em 2021, finalmente, o triunfo: o jovem quilombola de Feira de Santana, na Bahia, conquistou uma vaga no curso de Medicina após quatro anos de persistência. Com 980 pontos na prova do Enem, Matheus, que já aguentou muita chacota por causa da dedicação aos estudos, ocupa o lugar de único negro da sua turma. Um feito que ele se alegra e ao mesmo tempo lamenta. A conquista é motivo de orgulho para todo mundo do Quilombo de Salgado, em Antônio Cardoso, onde nasceu.
Para atingir seu objetivo, o universitário teve de estudar em uma casa emprestada, que não tinha energia elétrica tampouco internet. Passou a dar aulas na comunidade para bancar as despesas das aulas preparatórias e criou uma intensa rotina de estudos até conseguir o primeiro lugar no curso pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
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A história de Matheus causou comoção na internet não só pela conquista, mas também pelas condições desfavoráveis que passou para poder cursar a tão sonhada faculdade. Em entrevista à Alma Preta, o jovem contou que já iniciou as aulas remotas, adotadas por causa da pandemia, e que a repercussão da sua história tem sido positiva. No entanto, ele avalia que a falta de políticas públicas é uma das barreiras que impedem o ingresso de jovens negros e pobres na educação superior.
“Para o jovem de periferia, do interior, a educação não chega da forma que tem que chegar. O sistema que a gente vive reprime os nossos sonhos. Sonho grande é loucura […] O pessoal chega com um discurso bonito de que a educação modifica, mas as políticas públicas que eram para chegar até a gente não chegam. A minha notícia não teria que ter essa expansão, era para ser padrão. Eu fui um ponto fora da curva”, conta o graduando.
Matheus de Araújo, que é cristão, é o mais velho entre cinco irmãos e a sua paixão pela Medicina surgiu através da sua experiência com o irmão que é especial. Para ajudar a mãe, dormia em filas para conseguir atendimento para ele. “Foi quando eu pensei: “Eu preciso fazer algo para mudar”, relembra.
Ele sempre foi envolvido com a área de Saúde e chegou a cursar Enfermagem. Porém, em 2017, resolveu largar a faculdade para se dedicar aos estudos para Medicina. Matheus conta que pensou em desistir e que a sua intensa rotina era motivo de brincadeiras na comunidade.
“Eu era chacota aqui no bairro. Andava com a mochila para cima e para baixo e sempre com um livro dentro da mochila de domingo a domingo. Hoje em dia todo mundo me chama de Doutor”.
Como único aluno negro da turma de Medicina e o primeiro do quilombo a ser estudante na área, Matheus disse que a sua conquista representa a persistência do povo brasileiro.
“Brasileiro é isso: a gente tenta correr atrás, tem dificuldade… Um jovem como eu, que consegue chegar a um limite, a uma situação que não é padrão, as pessoas olham diferente. Então quando ela vê alguém conseguindo, parece que é o filho dela. O tanto de mensagem que chega aqui de mãe, filho… Teve uma comoção geral para me ajudar”.
“Meritocracia não existe no Brasil”
O caso de Matheus também gerou debates na internet sobre a chamada (e utópica) “meritocracia”. O jovem conta que viu um cantor famoso compartilhar a história dele e escrever: “Quem quer, consegue”, afirmação que ele discorda.
“No Brasil não existe meritocracia. Meritocracia é quando você dá dois pesos idênticos a duas pessoas da mesma forma. A disparidade do ensino privado com o público é abissal. É uma balança bem desfavorável. A gente tem que tirar essa palavra do nosso discurso. Meritocracia não existe”, pontua.
“A educação é um elemento que pode modificar não só a nossa vida, mas a vida das pessoas que estão ao nosso redor. Então cabem políticas federais, municipais e estaduais firmes. Mas não é só criar lei. É criar e implementar. Faltam políticas de inclusão de jovens à educação, cultura e lazer para a gente poder modificar esse Brasil”, completa.
A situação de Matheus é semelhante à realidade de tantos outros jovens negros que enfrentam inúmeros percalços para ingressar em uma universidade. O estudo “Ação afirmativa e população negra na educação superior: Acesso e perfil discente”, feito com dados da Pnad Contínua (IBGE), aponta que, em 2017, 22,9% de pessoas brancas com mais de 25 anos tinham curso superior completo enquanto o percentual dos jovens negros com a mesma faixa etária foi de 9,3%.
Apesar do aumento de 400% no número de alunos negros no ensino superior na última década graças a programas como o Pro Uni, a proporção de estudantes negros ainda representa apenas 38,15% do total, segundo levantamento feito pelo site Quero Bolsa.
O site também aponta que em alguns cursos a presença de alunos negros não chega a 30%. Como é o caso dos cursos de Medicina, Engenharia Química, Publicidade e Propaganda entre outros.
Inspiração
O mais novo estudante de Medicina acredita que a fé foi o seu principal combustível para não desistir do seu objetivo. Aos jovens que, assim como ele, passam pelas mesmas dificuldades, Matheus manda um recado:
“A fé um monossílabo tão pequenininho, mas aplicada de maneira grande traz enormes resultados. Tenho três palavras que eu sempre utilizo no meu cotidiano: Sonhe, Acredite e Conquiste. A pessoa que não tem sonho é uma pessoa que não tem finalidade nesse mundo. Se você acredita nesse sonho e sonha com ele todos os dias, você não pode desistir. Para gente, sempre vai ter obstáculo. Então a gente tem que olhar esses obstáculos como blocos para subir”, completa.
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