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O topo é para todos?

23 de janeiro de 2019

Um olhar de cima para baixo da representatividade da população negra nas grandes empresas e, principalmente, nos altos postos executivos

Texto / Marina Sá
Imagem / Marina Sá

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Cabelos trançados, salto alto e batom vermelho. Eu a avistei no grande salão de mármore cercada do barulho de seus sapatos e depois de seus braços calorosos e receptivos num cumprimento. Com um sorriso largo no rosto e uma postura impecável, ela me conduziu do hall até o elevador onde conversamos sobre o empoderamento e a liberdade de ser você mesma no local de trabalho.

Há 16 anos, Priscila Nicolau, atual especialista de Regulação de Transporte na América Latina da The Dow Chemical Company, ingressou na corporação de produtos químicos por meio de políticas afirmativas – um processo seletivo exclusivo para recrutar estagiários negros. Hoje, Priscila é, também, responsável pela liderança da ANN (American National Network), uma das principais redes de diversidade com foco na equidade racial em que a Dow trabalha há 19 anos em nível mundial e há três em nível nacional.

Atualmente, a ANN possui uma quantidade equilibrada de parceiros brancos e negros – a luta pela equidade racial precisa contar com a sociedade como um todo, como afirma Theo van der Loo, ex-CEO da Bayer e grande entusiasta da causa: “A pessoa branca tem um papel. Cada homem branco em posição de poder precisa fazer a sua parte”.

Expressamente feliz e orgulhosa de sua empresa, Priscila não poupa elogios à corporação e diz que essa está em excelência no quesito diversidade e inclusão. Em sua fala, destaca que quando uma empresa tem um ambiente diversificado e inclusivo, o relacionamento entre as pessoas melhora e, consequentemente, a sua dedicação ao trabalho: “Todos trabalham mais confortáveis porque não precisam se preocupar em se adequar ao ambiente corporativo”.

Viés inconsciente

A empresa escolhe seus colaboradores, mas os candidatos também escolhem minuciosamente a empresa na qual querem trabalhar. A observação vem de Hamilton Amadeo, CEO da Aegea, que passou a se interessar pelo tema após um post sobre racismo no meio corporativo publicado por Theo van der Loo. Depois de muito refletir, reconheceu que, devido aos chamados vieses inconscientes, também era racista de alguma maneira: “Percebi que haviam raciocínios e atitudes minhas que eram racistas e eu não queria e não quero ser racista”, ressalta Hamilton.

Foi então que se reuniu com lideranças negras da companhia de saneamento básico e criou o programa “Respeito dá o tom”, comandado por Josélio Raymundo, um dos diretores executivos da empresa. Hamilton conta que alguns líderes foram relutantes às mudanças na companhia pois acreditavam que perderiam os seus lugares para pessoas negras. Como não se pode obrigar alguém a contratar o diverso, é preciso mostrar para os tomadores de decisão que a contratação é boa, justa e que faz bem à empresa, segundo o CEO.

“Ninguém é mau porque é mau. O homem é fruto do meio de certa forma”, pontua Brawner Ramos, especialista de Planejamento Financeiro da Aegea, sobre o preconceito racial. As pessoas sentem empatia por aqueles que são parecidos consigo mesmos e, por isso, os critérios de contratação são majoritariamente subjetivos. Busca-se quem frequentou os mesmos espaços, estudou em universidades reconhecidas, etc. Esses são critérios incompatíveis com a diversidade, um problema estrutural.

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Para solucionar esse problema e gerar mais empatia entre seus líderes, a Aegea fez parceria com diversas organizações de inclusão, entre elas a Educafro, que leva jovens afrodescendentes à empresa para palestrar aos gerentes.

Após a implementação do programa, das parcerias e da campanha “Racismo é crime”, muitas coisas mudaram na empresa, pois as pessoas passaram a ter conhecimento sobre a causa e, como acredita Brawner, isso é primordial na luta antirracista. Atualmente não há um processo seletivo exclusivo para negros, mas, segundo Hamilton Amadeo, se uma pessoa branca e uma negra chegam à fase final de entrevistas, sem dúvida a empresa opta pela negra. “Já me perguntaram até quando eu farei isso. Vou exigir que seja assim até que eu veja na equipe um reflexo do que é o Brasil, ou seja, pelo menos 55% de afrodescendentes”, afirma.

Jornada da Diversidade

Quanto às palestras dadas aos gerentes da Aegea, essa é uma ação que convém chamar de sensibilização do público interno. A ideia surge de um estudo sobre negros no universo corporativo publicado em março de 2018 pela Santo Caos (consultoria de engajamento que surgiu em 2013). Intitulado Black In: Como Engajar as Empresas com a Diversidade Racial, a pesquisa é um guia que reúne dados estatísticos e depoimentos de diversos grupos étnico-raciais em diferentes posições dentro de empresas: presidentes, gestores, recrutadores, etc.

Para Angélica Moreira, publicitária à frente do estudo, o principal objetivo do Black In é a humanização dos dados: “Buscamos dar rostos aos números, mostrar que por trás das estatísticas, há pessoas com diferentes histórias”. Os sete passos para o engajamento propostos no estudo são uma forma de aumentar o comprometimento dos colaboradores, sejam negros ou não, com a causa da diversidade e a empresa em si. Prova disso, que segundo o mesmo estudo, profissionais de empresas que incentivam a diversidade são, em média, 16% mais engajados com a própria organização.

Dados estatísticos

Certamente os números com relação às mulheres negras em altos cargos executivos publicado pelo Instituto Ethos em 2016 já estão desatualizados, tendo em vista que a única CEO negra da América Latina, Rachel Maia, deixou a presidência da Pandora Brasil em março de 2018.

Antes de assumir o cargo na Pandora, onde ficou por quase nove anos, Rachel foi CFO (Cheaf Finance Officer) da Tiffany and Co por sete anos. Imersa num universo totalmente elitista, Rachel conta que seu legado começou quando assumiu uma postura diferente, mostrando que também era parte de um setor tão nichado quanto o de joias luxuosas. Se deu conta de que não precisava se esconder e que não só podia como devia sentir tanto orgulho quanto qualquer mulher branca do ramo: “As pessoas precisavam entender que eu não estava sendo inclusa como um favor e sim por qualidade e mérito. Não precisamos ficar enfiando o dedo na cara para falar que pertencemos a um espaço, precisamos trazer conteúdo e informação em um nível que chamemos atenção”, pondera.

Favor não, oportunidade

Como costuma repetir Theo van der Loo, “negro não quer favor, quer oportunidade” e é nisso que outros grandes CEOs estão apostando. Gaetano Crupi, CEO da Bristol-Myers Squibb, tem como ideia de sua gestão ser um líder e um liderado inclusivo, mas sabendo que a maioria das pessoas não partilha dessa mesma ideia, acredita que as políticas afirmativas estão disponíveis para isso, para incluir. “O Brasil está há mais de 500 anos carregando o histórico da escravidão, ou seja, negros e brancos não estão saindo do mesmo ponto de partida”, observa.

A fim de proporcionar maiores oportunidades, Gaetano aposta em processos seletivos mais flexíveis. Segundo o mesmo, a probabilidade de um estudante negro ter domínio de um segundo idioma, como o inglês, é mínima; então, anunciar o processo seletivo para determinada posição e exigir o inglês como base eliminatória, é excluir esse grupo, pois pouquíssimos vão atender às exigências da vaga. “Não queremos que o idioma seja um empecilho para contratarmos profissionais afrodescendentes”, declara.

Para minimizar esse problema e auxiliar no desenvolvimento de habilidades de seus funcionários, Gaetano implantou na BMS um curso de inglês aberto para todos os funcionários que possuem interesse em aprender a língua. Além disso, a empresa conta com horários flexíveis, já que boa parte dos profissionais, principalmente os negros, moram e estudam longe do local de trabalho. Outra alternativa que pode ajudar muito é a mentoria de profissionais negros em ascensão – ação que acontece, por exemplo, dentro da Aegea.

Atração de talentos negros

“Se as pessoas negras não participam dos processos seletivos, como as daremos oportunidades?”. Esse é o questionamento que se fez Patrícia Santos há 18 anos, quando começou a trabalhar com recrutamento e seleção. Desde que se deparou com a questão, passou a estudar profundamente o tema e se deu conta de que a escravidão foi uma atrocidade que privou a população negra de sua inserção no mercado de trabalho de forma igualitária, e então começou a criar planos de inclusão de afrodescendentes no meio corporativo.

Fundadora da Empregue Afro, primeira consultoria voltada à empregabilidade de pessoas negras no mercado de trabalho, Patrícia é especialista de Recursos Humanos do programa “Encontro com Fátima Bernardes”. Com clientes como Avon, Bayer, Johnson & Johnson e Coca-cola, o desafio da consultoria é alcançar a comunidade negra e as empresas que desejam contratar pessoas desse grupo. Todo o trabalho que a Empregue Afro realiza dentro das empresas é voltado ao engajamento interno, com práticas de treinamento e sensibilização para que os gestores entendam a questão racial.

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Tratando-se dos candidatos, a ação da consultoria é baseada em um recrutamento especializado, com um head hunter específico a fim de encontrar pessoas, falar com elas e fazer com que queiram participar dos processos seletivos das empresas-clientes.

Com a ajuda de uma assistente social integrante da equipe, a Empregue Afro trabalha a autoestima dos candidatos após a aprovação, em uma espécie de mini coaching para desenvolvimento desses profissionais. A questão da autoestima ainda é um desafio na empregabilidade e consequente ascensão de profissionais negros.

Taís Araújo, Conceição Evaristo, Pelé, Arlindo Cruz e outras personalidades negras já possuem os seus discursos e espaços consolidados, trazendo representatividade para a população afrodescendente. Contudo, em uma observação muito pertinente, Viviane Elias, gerente sênior de Continuidade de Negócios da Amil e coordenadora do ABPRH (Grupo de Diversidade e Inclusão da Associação Brasileira de Profissionais de Recursos Humanos), pontua: “Quantos vão conseguir virar jogadores de futebol, sambistas, músicos? A grande maioria não está dentro da área esportiva ou artística, então essa lacuna de representatividade precisa ser preenchida por mais referências. E não estou dizendo só no cargo de CEO”.

Theo van der Loo salienta que: “No Brasil, temos o mau hábito de acreditarmos que alguém vai solucionar problemas diagnosticados, e que, nós, individualmente, não temos responsabilidade com isso, delegando então a função para outras pessoas”. É nesse cenário que o trabalho de consultorias como a de Patrícia se torna vital.

A Empregue Afro oferece às empresas um pacote chamado Engajamento Interno, em que realiza a consultoria, a pesquisa e diagnostica a forma como a corporação fala sobre diversidade. Essa ação faz com que todos tomem consciência de que a luta contra o preconceito é uma responsabilidade geral. Depois do diagnóstico inicial, a equipe traça um plano de ação junto com o RH, a comunicação e a área de diversidade para, então, desenhar o modelo mais adequado para a empresa. Boa parte desse trabalho gira em torno de uma mudança de cultura, pois de nada adianta colocar o que é diverso dentro de uma empresa sem, de fato, incluir essas pessoas no ambiente corporativo.

Diversidade x inclusão

“Diversidade é convidar para o baile, inclusão é chamar para dançar”, explica Viviane Elias, única mulher negra da América Latina com o certificado de MBCI (Member Business Continuity Institute). Ela conta que, mesmo com todas as suas qualificações, ganha menos do que mulheres brancas na posição de gerente sênior de Continuidade de Negócios, e ainda menos de que homens brancos.

Viviane sabe que, após atingir um posto como o seu, a régua que define as suas oportunidades aumenta consideravelmente. Não acredita na viabilidade da meritocracia: “Quem decide a meritocracia é um cara que não passou por 10% do que eu passei”. Essa régua a qual todos os profissionais negros se referem é, muitas vezes, encurtada com relação à régua dos profissionais brancos. Por isso, ela ressalta que ações afirmativas para a inserção de negros no meio corporativo, até mesmo em altos cargos, se fazem necessárias. Um candidato pode não ter todas as habilidades que a empresa gostaria, entretanto, isso é algo passível de se fornecer. “Agora não é possível ensinar uma pessoa a ser enérgica, proativa e competente. Esses são adjetivos inatos ao ser humano”, diz Viviane.

Devido a essas questões, especialmente a de habilidades, é que implementar um programa voltado à equidade racial no meio corporativo não é algo simples, e se torna ainda mais complicado quando tratamos de altos cargos. Hoje já não se pode afirmar que não existem pessoas negras qualificadas para posições de liderança.

Nos últimos anos, após a implementação da Lei de Cotas nº 12.711/2012, aprovada sob o decreto nº 7.824/2012, muitos jovens negros e periféricos conquistaram a oportunidade de estudar. A Lei reserva 50% de vagas em instituições e universidades federais para estudantes oriundos de escolas públicas com baixa renda familiar, levando em conta também o percentual mínimo correspondente ao da soma de pretos, pardos e indígenas de acordo com o IBGE. Com isso muitos mais jovens negros estão se formando e se profissionalizando.

Um impulso para a ascensão

Trabalhar com a diversidade é uma via de benefícios de mão dupla. Se por um lado a inserção de afrodescendentes no meio corporativo e consequente auxílio na ascensão dos mesmos é eficaz e válida para a redução das desigualdades sociais, por outro, também é um grande passo para as empresas que desejam abraçar, finalmente, o seu público interno e externo. “Empresas que pensam, no presente, da mesma forma que pensavam no passado, não farão parte do futuro”, observa Rachel Maia.

Atualmente há uma maior cobrança no que diz respeito à diversidade. O Índice de Sustentabilidade Empresarial e o e-Social são ferramentas que ajudam a mapear a diversidade dentro das organizações, fazendo com que as empresas se movimentem em direção à inclusão. Gaetano Grupi, CEO da BMS, tem ciência de que a mudança precisa começar já, sem esperar uma colisão de valores com o código de conduta da empresa. Segundo ele, os programas de inclusão precisam ser proativos e não reativos, para que sejam, assim, sustentáveis. E ainda ressalta: “Na BMS olhamos para a diversidade como uma vantagem competitiva”.

E que seja dada a largada!

“Que seja porque está todo mundo se movimentando, que seja pelo modismo: em algum momento a razão certa vai aparecer”, considera Rachel Maia. Por ora, de acordo com a executiva, as empresas têm de se movimentar para entender que o talento, a qualidade e o disruptivo não têm cor.

Viviane Elias destaca que não faltam exemplos de negros que, após receberem uma oportunidade, passaram a se destacar na empresa. Ela conta que certa vez quis, pessoalmente, contratar uma garota negra para integrar a sua equipe: “Hoje ela é disputada a tapa por diversos times dentro da empresa, porque quando nós, negros, ocupamos um lugar, damos o nosso melhor, pois sabemos como foi difícil chegar lá”.

Cada um dentro do meio corporativo, independente de sua posição e etnia, tem um papel nessa luta. Didatismo, conhecimento e oportunidade são essenciais para essa jornada de diversidade. É sempre válido lembrar que “todo mundo precisa acreditar no poder bélico da doçura”, como diz Raphaella Martins, gerente de Atendimento da agência J. Walter Thompson. Há diversos perfis de militantes afrodescendentes, uns com discursos mais agressivos do que outros. A grosso modo, é como comparar a militância de Martin Luther King com a das Panteras Negras. Ainda segundo Raphaella, às vezes, por trás do “ser doce” existe uma estratégia muito poderosa de desconstrução.

Os números, como os pontualmente apresentados nesta reportagem, provam por que ainda se faz necessário discutir as várias facetas do racismo. Com todas as ferramentas disponíveis atualmente no mercado para mudar o cenário e tornar a sociedade mais igualitária, dizer que não sabe como ajudar a incluir afrodescendentes é, no mínimo, desinformação. A leitura do estudo Black In, da Santo Caos, e do livro Executivos negros: racismo e diversidade no mundo empresarial, de Pedro Jaime, podem ajudar bastante. Conhecimento é poder e está apenas a dois cliques de distância.

A reportagem foi originalmente publicada na Revista AFROCULT. Criada como trabalho de conclusão de curso das jornalistas Giovanna Monteiro, Marina Sá, Mayara Oliveira e Thais Morelli na Universidade Anhembi Morumbi, a revista visa ser um instrumento didático para o auxílio do combate ao racismo no país.

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