Profissionais relatam discriminação, e documentos corporativos são vagos quanto à porcentagem de pretos e pardos em posições de destaque
Texto: Caroline Nunes, especial para o Alma Preta e para O Joio e O Trigo
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A onda global de reação a casos de racismo em 2020 desafia vários setores. Entre eles, a indústria de alimentos, que se viu obrigada a correr para retirar das prateleiras produtos-símbolo de discriminação, como a teta de nega, vendida pela Nestlé na América Latina com o nome Beso de Negra, e a Aunt Jemina, uma linha da PepsiCo para panquecas comercializada nos Estados Unidos. A Coca-Cola emitiu um comunicado dizendo que sempre se preocupou com a equidade racial.
Mas, da porta para dentro, o que as histórias dessas corporações têm a contar? Alma Preta e O Joio e O Trigo decidiram olhar para os relatórios de algumas das maiores fabricantes de ultraprocessados do Brasil em busca de respostas. Na maioria dos casos, os documentos são vagos e não relatam quantos negros ocupam cargos de liderança.
Uma pesquisa realizada pelo Quero Bolsa, utilizando dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), apontou que apenas 3,68% dos cargos de liderança em geral são ocupados por pessoas negras (pretos e pardos) em São Paulo. Negros recebem, em média, 8% a menos do que profissionais brancos exercendo as mesmas funções de liderança.
Apesar de os negros serem maioria nas universidades públicas (50,3%), os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que ocupam apenas 30% dos cargos de liderança no país. Não existem números específicos sobre a indústria alimentícia.
Para profissionais do setor, a falta de informações reflete a pouca presença de negros nessa indústria. Patrícia Santos, 40 anos, pós-graduada em gestão de pessoas e sócia-proprietária da consultoria Empregue Afro, conta que durante sua experiência em Recursos Humanos percebeu que nos processos seletivos – principalmente para cargos de liderança – poucas pessoas negras participavam. A partir disso, ela criou sua empresa, “para que as pessoas negras tivessem oportunidades iguais de compartilhar suas experiências, expertises e conquistar as vagas no mercado de trabalho”.
Os negros também são a maior parte dos consumidores dos produtos do setor, mas tampouco a publicidade reflete essa realidade, comenta a especialista. “Mais de 50% da população economicamente ativa no Brasil é negra e 56% da classe média também é negra, ou seja, são as pessoas que mais consomem da indústria alimentícia e nem trabalhando elas têm o mínimo de representatividade.”
Com base no acesso aos números de contratações feitas com auxílio da Empregue Afro, ela constata que profissionais negros estão atrelados aos cargos operacionais. “Atendemos uma grande rede de supermercados, com nove mil funcionários, e os negros estão nas padarias, peixarias, no atendimento, no caixa. Em compensação, nos cargos administrativos, não têm 10% de negros. A disparidade é muito grande.”
O Pão de Açúcar informou em 2019 ter 42% de negros entre os 109 mil funcionários. Homens negros ocupavam 23% dos cargos de gerência e acima, no braço de varejo do grupo, enquanto mulheres negras respondiam por 14,4%, frente a 34,7% de homens brancos e 17,7% de mulheres brancas.
Nas operações de atacado (Assaí), as mulheres negras são 5% do total. Mas é no segmento de Corporação, ou seja, no centro decisório da companhia, que está a maior disparidade: homens negros são 8,54%, mulheres negras são 4,88%, enquanto homens brancos respondem por 40% e mulheres brancas por 21,95%.
O Carrefour declara que 42% dos trabalhadores em cargos de liderança são negros – geralmente, funções operacionais das lojas são incluídas entre os cargos de liderança.
A discriminação nossa de cada dia
Não existem estatísticas, números e pesquisas que apontem em quanto tempo um negro alcança um cargo de liderança ou é promovido, o que torna difícil estabelecer parâmetros concretos.
Mas quem trabalhou no setor conta experiências de discriminação que impediram a ascensão profissional. Jorge Gabriel de Souza, 54 anos, formado em Direito e Administração, trabalhou na empresa Nestlé Cereais de 1997 a 2010 e integrou a equipe para a inauguração da Cereal Partners Worldness.
O advogado relata que, em um processo seletivo rigoroso, era o único negro entre 150 participantes, sendo contratado após diversas entrevistas e testes de aptidão. Depois de um ano em serviço operacional, e por estar cursando o ensino superior, se tornou líder de linha, segundo relata. Após o término de sua graduação, foi promovido a subcoordenador de setor e, em seguida, galgou degraus para se tornar coordenador responsável pela implementação da ferramenta SAP, que interligava todos os sistemas da Nestlé.
O profissional conta que houve oportunidade de crescimento para diretoria e gerência e que dentre os concorrentes à vaga ele era o mais qualificado, por seu histórico acadêmico e tempo de empresa. Entretanto, de acordo com seu relato, o que escutou de um profissional em um cargo acima do seu foi que seria difícil ele conseguir a promoção por ser um homem negro.
“Depois de ter sido impedido, simplesmente por ser negro, de apresentar o trabalho que eu estruturei, comecei a perceber que em todos os processos seletivos internos para cargos de liderança e diretoria eu nunca era selecionado, mesmo falando outros idiomas, tendo formação, MBA, e tudo o que outros candidatos brancos não tinham. Não tinha motivo específico para não ser promovido. Depois disso, terminei a faculdade de Direito e pedi para ser mandado embora”, conta.
“Fiquei muito decepcionado. Na Nestlé Chocolate, contando com 2 mil funcionários, existia apenas um negro dentre 30 cargos de chefia de setor, mas nunca negros na diretoria.”
Procurada pela reportagem, a Nestlé se posicionou sobre o caso de Jorge Gabriel. A empresa afirma não possuir registro de denúncia de racismo em seu histórico. “Precisaríamos de mais informações para apurar internamente, principalmente em função do tempo decorrido”, diz a nota da companhia.
A corporação não publica a quantidade de negros em cargos de liderança e não respondeu às afirmações de Jorge Gabriel sobre a baixa ou nenhuma representatividade negra na diretoria, mas afirma que a base da força da companhia é uma cultura diversa e inclusiva, que seus colaboradores recebem treinamento sobre vieses inconscientes (bias), para reforçar continuamente o Código de Conduta, e que proíbe todas as formas de preconceito. “Não toleramos assédio ou discriminação. Essa é uma das maneiras pelas quais nos mantemos fiéis aos nossos valores, enraizados no respeito.”
A empresa também afirma que um centro de diversidade e inclusão em gestão de pessoas foi inaugurado em agosto. No ano passado, a Nestlé Brasil assinou a Carta de Adesão ao Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+ e aos seus 10 Compromissos. Em seu site a empresa informa também que a prioridade é aumentar o número de mulheres em cargos de liderança, com incentivos como Políticas de Proteção à Maternidade, Diversidade e Inclusão.
Entre a realidade e a publicidade
A experiência de discriminação no setor também é relatada pela ativista Vanessa Galdino, 30 anos, do “Coletivo Preta Eu” e “Aquenda”, que discutem direitos raciais, da mulher e LGBTQIA+. Em sua passagem pela fábrica de casquinhas de sorvete Pró Cascão, e na rede atacadista de supermercados Giga, a militante conta que era constantemente alvo de discriminação por parte da gerência.
Na Pró Cascão, empresa de pequeno porte do município paulista de Várzea Grande, Vanessa era operadora de máquina e uma dentre três pessoas negras que trabalhavam na fábrica. Ela afirma que a gerência era composta majoritariamente por homens brancos, que a agrediam verbalmente por conta de seu cabelo, por ser mulher, além de ofensas relacionadas à cor da pele, orientação sexual e biotipo.
Segundo ela, o dono fazia questão de pontuar que o cabelo era “ruim” e que deveria ser escondido em uma touca. Vanessa ainda diz que por ser lida facilmente como lésbica, os patrões exigiam de forma debochada que ela fizesse serviços que os colaboradores homens faziam, como carregar peso. “Na Pró Cascão me disseram que eu tinha chance de subir de cargo rapidamente se eu me esforçasse, mas isso nunca aconteceu”, relata.
Para ela, o discurso de diversidade das companhias, bem como a publicidade institucional, não dialoga com a realidade. “Aceitam-se negros e LGBTQIA+ para cargos operacionais como cota e para fingir inclusão, mas essas pessoas nunca terão oportunidade de crescer. Isso gera frustração e cansaço mental.”
A reportagem tentou contato com a Pró Cascão e com a Giga várias vezes, mas não obteve resposta. Já a Pró Cascão respondeu, por e-mail, que “nego todo o alegado. Informo que a colaboradora trabalhou na empresa no período de janeiro de 2013 a setembro 2014 – o período em que exerceu a função de ajudante de produção. A empresa não apoia nem promove a prática de qualquer ato discriminatório nas suas dependências por seus colaboradores, gestores e sócios”.
Respaldo legal
Tanto Jorge quanto Vanessa optaram por não recorrer à Justiça. “Sempre achei que não ia dar em nada. Eu me sinto incrédula diante de uma justiça que só beneficia brancos e ricos”, afirma a ativista. “Ninguém ficava do meu lado, não tinha testemunha ao meu favor, principalmente no Giga”, conta.
Jorge comenta que, por mais que ele fosse advogado, seria difícil ganhar a causa, principalmente por não haver contado com ninguém ao seu lado nas situações. “É necessário ter geralmente duas testemunhas, o que se torna difícil, as pessoas ficam com medo de perder o emprego pelo fato de testemunhar contra a empresa. Eu me senti sozinho nessa.”
O que fazer nesses casos
Para a advogada trabalhista Tatiana Piacezzi, seria necessário ter entrado com uma ação judicial trabalhista pedindo indenização em decorrência de ambos casos – tanto de Jorge Gabriel quanto de Vanessa – e respeitando os prazos, pois, segundo a especialista, o que eles sofreram é caracterizado como preconceito racial. Além disso, Tatiana ressalta que, paralelamente à ação trabalhista, seria interessante entrar com uma ação criminal (injúria racial) para evitar impunidades em casos de racismo. “Justamente a impunidade acaba acarretando a reincidência dessa prática.”
Entretanto, ela diz que esse tipo de caso necessita de prova testemunhal para alcançar êxito em processos judiciais, porque preconceito normalmente não pode ser comprovado com fatos documentais. “Não se produz prova documental em casos de injúria racial. Normalmente isso acontece de forma verbal, implícita, através de piadinhas, atitudes indiretas, como o caso de não conseguir uma promoção, expressões racistas etc.”
A advogada ainda explica que as companhias são responsáveis subsidiárias, ou seja, se o caso acontece em decorrência do contrato de trabalho, a organização é responsável também: “A partir do momento em que a discriminação vem de um superior hierárquico, a empresa responderia judicialmente neste caso.” Ela também destaca a importância de palestras, fóruns e ações de combate à discriminação racial dentro do ambiente corporativo. “Essas medidas podem impedir que casos assim aconteçam.”
O que dizem as empresas
Nenhuma das empresas pesquisadas cita o número (ou porcentagem) de negros em cargos de liderança. Nem nos relatórios de sustentabilidade, nem nas informações fornecidas por suas assessorias de imprensa.
A PepsiCo (grupo que fabrica as linhas Elma Chips, Quaker e Pepsi), em documento de 2019, coloca diversidade e representatividade racial e de gênero como objetivos para os próximos cinco anos, sem metas específicas. Também informa a oferta de cursos de inglês e capacitação profissional para jovens negros, com a intenção de que ocupem 30% dos cargos de liderança. Em termos de gênero, 41% dos cargos de alto nível são ocupados por mulheres, e o objetivo é chegar a 50% em 2025.
A Coca-Cola Brasil, em relatório do ano passado, cita o programa Jovens Aprendizes, com a contratação de 15 pessoas para ingressar na equipe – 80% eram negros e 66%, mulheres. Segundo seu relatório de sustentabilidade, campanhas antirracistas foram feitas no decorrer do ano.
Também de acordo com a corporação, as mulheres ocuparam 54,9% dos cargos gerenciais e 33,3% dos cargos de diretoria em 2019. E que projeta equidade de mulheres negras para esses cargos de chefia nos próximos anos.
Já o relatório de sustentabilidade da BRF, em 2019, informa que a empresa investe em multiculturalidade: aumentou de 18% para 25% os cargos ocupados por mulheres e iniciou o projeto Embaixadores de Diversidade – com mais de 300 colaboradores em todo o Brasil, que compartilham suas experiências de acordo com a realidade local e promovem atividades sobre a questão.
A companhia diz investir também na contratação de imigrantes, em sua maioria haitianos, senegaleses e congoleses, para cargos operacionais e possui políticas contra discriminação cultural, racial, religiosa, de faixa etária, gênero ou orientação sexual.
A Mondelēz International, que no Brasil fabrica as linhas Lacta e Club Social, destaca a nomeação de um diretor global que irá atuar nessa frente e o compromisso de dobrar, até 2024, a presença de negros em cargos de gestão nos Estados Unidos.
Por aqui, a empresa informa ter 40% de cargos de liderança ocupados por mulheres e que ampliou sua atuação na agenda de diversidade neste ano com a criação de comitês internos em quatro frentes (gênero, étnico-racial, LGBTQIA+ e pessoas com deficiência), além de iniciar um trabalho de políticas internas para tratar esses temas com prioridade.