O racismo estrutural e institucional representa um desafio significativo para o acesso aos direitos básicos e fundamentais de crianças e adolescentes negros no país. Para superar esse obstáculo, é fundamental mobilizar diversos setores, incluindo saúde, educação, assistência social, famílias e a sociedade em geral. O reconhecimento desse problema é o primeiro passo, e a implementação de práticas antirracistas é imprescindível para combater efetivamente o racismo e garantir a igualdade de oportunidades para todos.
A desigualdade racial tem crescido entre meninas e meninos negros, quando o assunto é a alfabetização, segundo o relatório “Pobreza Multidimensional na Infância e Adolescência no Brasil”, divulgado em outubro pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF).
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De acordo com o levantamento, esse público foi o mais afetado durante a pandemia do coronavírus. Só para se ter uma ideia, de 2019 a 2022, a disparidade na taxa de analfabetismo entre crianças de sete a dez anos, brancas e negras, aumentou de 4,3 para 6,7 pontos percentuais.
O documento alerta para a urgência de políticas públicas voltadas para as crianças e adolescentes, em especial as negras, para o avanço do cumprimento das metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) em todos os níveis: nacional, estadual e municipal.
Pensando nisso, a Fundação Porticus — instituição de filantropia familiar particular, com foco nas áreas de educação, direitos humanos e justiça ambiental com atuação em 90 países promovendo o desenvolvimento integral das crianças — cria o “Mosaico de Primeira Infância e Equidade Racial”.
A iniciativa reúne 11 iniciativas: Ação educativa, Alma Preta, Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial (Afro Cebrap), AMMA Psique e Negritude, Coletivo de Intelectuais Negros e Negras (CDINN), Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), GÉLEDES – Instituto da Mulher Negra, Plan International, Instituto Promundo, CECIP e Redes da Maré. Essas organizações estão e irão desenvolver ações ao longo deste ano e até dezembro de 2024 para a promoção de uma sociedade mais justa e sustentável.
Desenvolvimento infantil em comunidades quilombolas
A Plan Internacional Brasil é uma organização localizada na cidade de São Paulo, que promove os direitos das crianças e a igualdade para as meninas. Além disso, trabalha em conjunto com crianças, jovens, apoiadores e uma rede de parcerias para o enfrentamento da desigualdade de gênero e pelas crianças em vulnerabilidade do país.
Dentro do Mosaico, a organização desenvolve o projeto Ciranda, atuando em três comunidades quilombolas localizadas nas cidades de Peritoró, no sul do Maranhão, e Codó, ao leste, conhecida como Região dos Cocais. Ambos a 234 km e 304 km da capital São Luís, respectivamente.
A especialista em Proteção e Desenvolvimento Infantil da Plan International, Gezyka Silveira, explica o trabalho desenvolvido pela organização em parceria com a fundação.
“A minha responsabilidade enquanto especialista é dar um direcionamento técnico, colocar o meu olhar técnico no desenho, na elaboração de propostas, de programas e ações que a Plan implementa dentro do Eixo Progredir, que nós temos o projeto Ciranda, um projeto que tem o objetivo de melhorar o desenvolvimento da criança na primeira infância por meio de políticas públicas fortalecidas e da promoção de habilidades parentais focadas nos saberes tradicionais locais e sensíveis às questões de gênero, raça e etnia”, conta.
Segundo a especialista, o Ciranda traz uma tecnologia social inovadora, que foi realizada a partir de um amplo diagnóstico territorial, junto a uma consultoria técnica especializada. O projeto desenvolveu um cardápio de jogos e brincadeiras quilombolas e um manual de boas práticas para a primeira infância.
Com a iniciativa, foram elaborados nove planos municipais sólidos e sensíveis às questões étnico-raciais em uma primeira fase. Já a segunda fase será realizada a partir de novembro de 2023 e tem como missão a criação de metodologia inovadora para outros municípios do Maranhão, indicados pelas secretarias parceiras.
“A primeira infância é a fase primordial da vida, que vai do zero aos seis anos de idade. É considerada uma janela de oportunidades indispensável para o aprendizado e para o pleno desenvolvimento infantil. Construir a equidade desde a primeira infância é tentar, é buscar reduzir essas diferenças, essas desigualdades injustas que são disseminadas ao longo da vida”, ressalta Gezyka.
A especialista destaca ainda a importância do enfrentamento ao racismo ainda nos anos iniciais da criança. “Não tem como falar de pleno desenvolvimento infantil se não falarmos de equidade racial, se não buscarmos pautar o enfrentamento ao racismo estrutural”, acrescenta.
Saúde mental e educação na primeira infância
O AMMA Psique e Negritude é uma organização da sociedade civil que tem atuação focada no enfrentamento ao racismo, discriminação e preconceito por duas vias: politicamente e psiquicamente. Quatro psicólogas negras criaram a entidade em 1995, e desde então, a ideia é promover relações raciais e de gênero igualitárias, libertárias, dignas e saudáveis.
Dentro do Mosaico, o AMMA realiza o projeto infância, saúde e relações raciais, que tem o objetivo de ativar evidências, isto é, contar para o mundo os resultados das pesquisas produzidas pela organização. Para a psicóloga na organização Clélia Prestes, doutora em Psicologia Social (USP/University of Texas), o apoio da Porticus é fundamental para discutir e pensar como a saúde mental e a educação podem “ser melhor instrumentalizadas por dados científicos voltados, as infâncias de modo geral, mas especialmente à primeira infância.
Além disso, a psicóloga destaca que, ao longo do desenvolvimento do projeto, também foi percebido uma escassez de discussão sobre a temática com o recorte das relações raciais.
“Quando tem estudos, pesquisas, estratégias técnicas, teorias sobre o assunto, não fazem um recorte de raça, ou quando fazem, acabam utilizando, falando de crianças negras, sobre especialmente os prejuízos, os efeitos do racismo, ou os prejuízos que crianças negras têm, mesmo que não falem sobre o racismo”, observa.
Além disso, Clélia ressalta que a raça não passa por uma análise de profundidade, e ainda ressalta a falta de inclusão de referências para pensar o tema, a partir das próprias pessoas negras. Ela diz que lidar com diferentes recortes e assuntos, ajuda a pensar as políticas públicas para as diferentes demandas e diversos grupos sociais.
“O objetivo [do projeto] é ativar evidências, ou seja, contar para o mundo os resultados das pesquisas, que foram produzidas por nós e outras sobre infâncias. É muito interessante como a gente, a partir dessas pesquisas, vai pensando melhor sobre como produzir pesquisas sobre infância, como cuidar de crianças”, acrescenta a psicóloga.
Transformação das discussões no país
A consultora em equidade de raça e gênero Jaqueline Lima Santos, doutora em Antropologia Social pela Universidade de Campinas (Unicamp), que está a frente da realização do Mosaico pela Porticus, defende que a grande contribuição a partir da interação com as organizações se dá com a transformação das discussões sobre o tema no Brasil.
“Ao pensar um mosaico de primeira infância e equidade racial e aproximar organizações do campo antirracista dessa agenda de primeira infância. Para disputar a noção de primeira infância, a política de primeira infância, a legislação de primeira infância e os recursos que são aplicados na primeira infância”, explica.
Para ela, a primeira infância é um campo que começou a ter muito investimento, mas grupos, a exemplo das crianças negras e quilombolas, ficaram de fora porque a elite pensava na pauta a partir de uma perspectiva universal.
“A gente também vive em sociedades que massacram crianças não brancas. Existe um tipo de infância ideal e tem as pessoas que não têm direito à infância. Então, uma sociedade que violenta, assassina crianças negras e indígenas, que nega direitos básicos fundamentais para essas crianças. Então, essa perspectiva elitista do campo de primeira infância acabava distanciando esses outros grupos que são grupos historicamente discriminados e que por conta do impacto do racismo na sociedade brasileira estão mais vulnerabilizados desse grande campo de investimento que é a primeira infância”, detalha.
De acordo com Jaqueline, essa perspectiva elitista distancia outros grupos historicamente discriminados do investimento da primeira infância. “Essa perspectiva não enxerga a infância numa perspectiva plural. Você não está falando das crianças que estão sofrendo violência. Você está falando de cuidar e desenvolver como se todas as crianças vivessem a mesma realidade”, conclui.
Ações desenvolvidas para a primeira infância
As ações desenvolvidas a partir do Mosaico de Primeira Infância e Equidade Racial são divididas em seis eixos, são eles: pesquisa e produção de evidências, metodologias inovadoras, incidência política, formação, comunicação e atuação comunitária. As organizações envolvidas ficam responsáveis pelas atividades que mais se alinham a sua atuação.
Dentre elas, estão a produção de indicadores da qualidade na educação infantil e relações raciais na escola. As reportagens utilizando fontes que trabalham o tema da primeira infância, e personagens ligados diretamente com a temática, a exemplo de psicólogos, professores e crianças.
Além disso, um estudo quantitativo e qualitativo com fontes primárias e secundárias acadêmicas e oficiais sobre a Equidade Racial na educação. A produção de pesquisa sobre educação infantil e as relações étnico raciais. A formação de professores da educação infantil com foco em relações etnico raciais.
E ainda, dentro do mesmo projeto, o lançamento do prêmio Educar para a Igualdade Racial e de Gênero, projeto sobre crianças e adolescentes e sistema de garantia de direitos, aplicativo que fornece conteúdo e conceitos sobre relações raciais e o Edital Equidade Racial, uma iniciativa que reúne artigos científicos que apontam soluções para os desafios da construção da equidade racial na educação básica do país.
Por último, o projeto primeira infância no centro com ações de articulação, formação e incidência política para construir políticas públicas em defesa das crianças negras e indígenas, o prêmio estratégias de equidade no enfrentamento à evasão escolar, concursos de planos de aulas e o trabalho com comunidades quilombolas.