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Os olhares da Ditadura sobre as lideranças negras

Beatriz Nascimento, Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez tiveram suas fichas pessoais levantadas pelos órgãos da Ditadura e suas atuações eram vistas como ameaça para o regime
Imagem é uma colagem com fotos de Beatriz Nascimento, Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez

Foto: Dora Lia/Alma Preta Jornalismo

31 de março de 2024

Tortura, desaparecimentos e censura davam o tom do cenário no Brasil durante o período da Ditadura Militar (1964-1985). Uma parte pouco conhecida dessa história é que a atuação de movimentos e ativistas negros levou a uma desconfiança do sistema militar, que passou a acompanhar de perto as ações e pessoas que estavam envolvidas nos debates sobre raça no país.

Além da repressão, ativistas como Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento, Beatriz Nascimento e Joel Rufino também lidaram com o racismo e a vigilância das suas atividades ao terem as suas fichas pessoais levantadas pelos órgãos de inteligência do regime.

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Intitulado “O olhar do Serviço Nacional de Informações-SNI sobre o movimento negro no Rio de Janeiro (1968-1988)”, a tese de doutorado da pesquisadora e historiadora Marize Conceição revela que a reoganização dos movimentos sociais e o surgimento do movimento negro no Brasil, a partir dos anos 70, preocupou os militares por causa da ampliação da luta da população negra pelos seus direitos e pelo fim da discriminação racial no país.

“Em 78, quando da criação do MNU [Movimento Negro Unificado], criado justamente para unificar essas organizações, os documentos do SNI mostram que há uma preocupação muito grande dos militares com essa capilaridade do movimento negro por todo o Brasi e isso faz com que as agências passem a vigiar ainda mais de perto o movimento negro. A partir de 78, o número de documentos vai mais do que dobrar, o MNU vai ser extremamente vigiado e as organizações negras também”, explica a pesquisadora.

A pesquisa analisou 150 documentos produzidos pelo SNI encontrados no acervo do Arquivo Nacional e surgiu após a pesquisadora, e também professora, identificar uma lacuna sobre a atuação das pessoas negras durante a Ditadura Militar e a forma como essa abordagem é feita nas instituições de ensino.

“A partir desses documentos eu vou fazendo uma relação da luta do movimento negro dentro desse período e como é que esses orgãos estão vigiando o movimento negro”.

A tese da pesquisadora foi defendida em agosto do ano passado e a previsão é que seja publicada ainda este ano.

Atividades monitoradas

Documentos registrados pelo SNI revelam também que até mesmo as atividades voltadas à promoção da cultura negra foram monitoradas por agentes — em alguns casos, infiltrados — mesmo após a Ditadura.

Um registro de 1988 mostra que o SNI mapeou as programações do Centenário da Abolição da Escravatura na Bahia, listou os movimentos e ativistas presentes nas atividades, além de anexar folhetos sobre o tema que eram circulados na época.

‘Negros acima da média’

Segundo Marize Conceição, o ativista Abdias do Nascimento foi uma das lideranças mais perseguidas pela Ditadura. Considerado uma das principais referências do movimento negro e expontes da cultura afro-brasileira, Abdias integrou a Frente Negra Brasileira (FNB), foi um dos idealizadores do MNU, fundador do Teatro Experimental do Negro e foi preso após protestar contra a ditadura de Getúlio Vargas.

Abdias do Nascimento integrou a Frente Negra Brasileira, foi idealizador do MNU e preso após protestar contra a Ditadura | Foto: Divulgação/Ipeafro

Por causa da repressão durante a Ditadura, se exilou nos Estados Unidos e Nigéria durante 13 anos. Nesse período, produziu trabalhos sobre a realidade da população negra brasileira e fez críticas ao mito da democracia racial no país.

Um dos registros analisados pela tese da pesquisadora Marize Conceição expõe a perseguição que Abdias enfrentava. Em 1977, o Ministério das Relações Exteriores sinalizou que o ativista desejava apresentar uma tese no II FESTAC (Festival Mundial de Arte e Cultura Negras) de Lagos, na Nigéria. O trabalho, contudo, foi rejeitado pela comissão julgadora e o passaporte do ativista, negado.

Em um dos trechos, a ditadura cita uma entrevista que Abdias deu ao jornal “Sunday Times” para criticar a decisão do Ministério das Relações Exteriores.

“Nessa entrevista, o professor NASCIMENTO acusou os organizadores de parcialidade na seleção das teses, ao negar-lhe oportunidade para ‘revelar o que considera uma sujeição sórdida do povo negro no Brasil’. Acrescentou que “existe um império de brancura no Brasil, desconhecido de muitos povos no mundo, especialmente na África…, uma ideologia corruptora”, cita o documento.

Abdias teve um dos seus trabalhos rejeitados ao ser submetido ao Ministério das Relações Exteriores | Foto: Reprodução/Arquivo Nacional

Segundo a pesquisadora Marize Conceição, o ativista era visto pelo regime como um “negro acima da média” e perigoso por causa da atuação.

“O Abdias é, sem sombra de dúvidas, o militante mais vigiado durante esse período. Ele era uma figura tratada com muito cuidado pelos militares porque ele é uma pessoa que fala, que expõe o país, e com muito cuidado para evitar a ressonância das suas falas. O Abdias era considerado um negro acima da média e, por isso, perigoso”, destaca.

O historiador e ativista Joel Rufino também surge na pesquisa de Marize como uma das lideranças negras monitoradas no período da ditadura. Integrante da Ação Libertadora Nacional (ALN), organização clandestina que pregava a luta armada contra o regime, Rufino teve seus trabalhos censurados e, em 1972, foi detido e mandado para o presídio do Hipódromo, em São Paulo, por integrar o grupo.

Historiador e integrante da Ação Libertadora Nacional (ALN), Joel Rufino teve seus trabalhos censurados | Foto: Divulgação

Rufino permaneceu como preso político por um ano e meio e só conseguiu retomar as suas atividades acadêmicas em 1979, com a decretação da Anistia. Ele também foi presidente da Fundação Palmares, na década de 1990, e foi autor de diversos trabalhos como a biografia de Zumbi dos Palmares, destinada ao público jovem, lançada em 2015, ano de sua morte.

“Essas pessoas, por aparecerem sempre nesse contexto de organização do movimento negro e por estarem despontando como lideranças, elas eram vigiadas”, pontua a pesquisadora Marize Conceição.

Protagonismo das mulheres negras

Um dos destaques que a pesquisa traz é sobre o papel das mulheres negras no regime militar. Segundo a autora da tese, Marize Conceição, a atuação delas foi essencial para fortalecer movimentos a partir dos recortes de raça e gênero dentro das organizações.

“Eu trago algumas mulheres negras que estavam na luta de resistência à Ditadura, mas estavam nas organizações de esquerda diante do AI-5. Elas se afastam — ou são afastadas — dessas organizações e acabam vindo para o movimento negro para somar na construção do movimento de mulheres negras com as experiências delas nas organizações de esquerda e construindo uma consciência racial que nessas organizações elas não tinham”, comenta.

Em 1989, o primeiro Encontro Nacional de Mulheres Negras também foi registrado pelo SNI de forma confidencial e cita que o evento “teve por objetivo denunciar as desigualdades sociais, raciais e sexuais, bem como analisar as perspectivas que as mulheres negras brasileiras possuem com relação ao futuro”.

A militante e intelectual Lélia Gonzalez era uma das participantes e também foi alvo de monitoramento da repressão. Referência do feminismo negro brasileiro e autora do conceito da “Amefricanidade”, Lélia foi uma das pensadoras responsáveis por teorizar as pautas das mulheres negras nas Américas e desvelou a presença do racismo nas diferentes esferas da sociedade, segundo relata a neta da ativista, a historiadora Melina de Lima.

“Minha avó tinha total noção de que era vigiada. Na casa dela tinham várias reuniões do movimento negro, do movimento feminista, e essas reuniões continuavam acontecendo mesmo durante a Ditadura. Era um local de concentração de quem era fora do que a Ditadura ditava como mantenedores da ordem”, relembra Melina.

Autora do conceito da “Amefricanidade”, Lélia Gonzalez foi uma das pensadoras responsáveis por teorizar as pautas das mulheres negras nas Américas | Foto: Acervo Lélia Gonzalez

Anos antes do primeiro encontro nacional, em 1979, o SNI produziu um documento em que sinalizou uma viagem de Lélia Gonzalez para os Estados Unidos, onde ela realizaria palestras nas Universidades de Nova York, Pensilvânia e Califórnia, além de extrair uma ficha pessoal da ativista.

Em uma das informações de destaque, o órgão informou que Lélia era membro “de grande influência” da Comissão Executiva Nacional do MNU que, segundo o SNI, é uma “entidade contestatária que se caracteriza pelas atividades que vem desenvolvendo para incentivar conflitos de racismo negro no Brasil”.

Uma viagem de Lélia Gonzalez aos EUA foi registrada pelo SNI | Foto: Reprodução/Arquivo Nacional

Neta de Lélia, Melina de Lima destaca que a ida de Lélia para fora do país foi essencial para revelar as manifestações do racismo no país. “Fora do Brasil ela falava com total liberdade e aqui no Brasil, eu imagino, que ela escrevia, produzia muita coisa e se reunia com os seus, mas entendia que ela deveria ter limites em relação a como falar isso em palestras que ela dava no nosso país”, exemplifica Melina.

Outra figura importante do movimento de mulheres negras foi a historiadora e pesquisadora Beatriz Nascimento. Com duas décadas de estudos sobre a formação dos quilombos no Brasil, Beatriz via os territórios como locais de resistência política dos afro-brasileiros e a sua presença constante como umas das integrantes do MNU despertou o interesse dos militares pelas suas atividades.

A partir dos documentos analisados, Marize Conceição revela que, por ter relação com o movimento negro, Beatriz Nascimento chegou a ter o seu visto indeferido pelo Ministério das Relações Exteriores ao tentar viajar para participar de um evento fora do país.

“Ela foi uma mulher que estava despontando no espaço acadêmico e é bastante vigiada sendo que em todo documento dentro das agências, eles não encontraram nenhuma informação que criminalize a Beatriz”, cita Marize.

A presença constante de Beatriz Nascimento como umas das integrantes do MNU despertou o interesse dos militares | Foto: Reprodução

Para Betânia Nascimento, bailarina e filha de Beatriz Nascimento, uma das consequências dessa vigilância se refletiu na sua infância, quando ela teve que passar longos períodos reclusa ou distante da mãe e, em algumas situações, sem ser apresentada como filha da ativista.

“Havia momentos de separação física que começaram a cair os pingos nos i’s do porquê eu não estou com minha mãe, por que a minha mãe teve que viajar para algum lugar? Até hoje as pessoas não sabem que a Beatriz tem uma filha. A nossa história e as nossas infâncias na Ditadura não são faladas”, comenta Betânia.

Apesar da desconfiança sobre a vigilância, Betânia só teve contato com documentos que comprovaram a vigilância à Beatriz anos depois, através de Alex Ratts, antropólogo, escritor e autor do livro “Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento”.

“O que eu me lembro é de momentos de ‘fuga’ e, relendo as escritas dela, eu acho que havia uma pequena noção de perseguição, mas aí é que tá, quando a gente nasce preto no Brasil, a gente nasce sendo perseguido”, finaliza.

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  • Dindara Paz

    Baiana, jornalista e graduanda no bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade (UFBA). Me interesso por temáticas raciais, de gênero, justiça, comportamento e curiosidades. Curto séries documentais, livros de 'true crime' e música.

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