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Os primeiros dias dos calouros negros da Universidade de São Paulo, a USP

Estudantes que enfrentaram dificuldades para ser aprovados em uma das universidades mais concorridas do país contam a percepção que têm da instituição de ensino

9 de abril de 2020

Nascida e criada na periferia da Zona Leste, Mel Oyá é uma das estudantes negras que ingressou na Universidade de São Paulo (USP), em 2020. A aluna do curso de Gestão de Políticas Públicas viu sua percepção sobre uma das instituições de ensino mais concorridas do país mudar já nos seus primeiros dias como caloura da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH).

“Eu imaginava que a USP fosse um ambiente com professores intocáveis e inquestionáveis. Ao chegar no campus da Zona Leste eu vi vários problemas estruturais e me surpreendi ao ver outras pessoas negras em um espaço que não foi pensado para quem é de quebrada. O que me deixa entusiasmada é ter a possibilidade de dialogar com o mundo a partir dali e da rede de apoio do movimento negro estudantil”, conta.

A estudante teve seu primeiro contato com a instituição em 2015, quando foi aprovada para o curso técnico de Serviços Públicos. Na época, Mel precisava se desdobrar para dar conta do ensino médio, de um estágio com baixa remuneração e o curso técnico. Ela percorreu a jornada exaustiva de conciliar a necessidade de trabalhar com os estudos até ser aprovada na Fuvest no ano passado, após realizar como bolsista um curso preparatório.

“Eu sempre precisei trabalhar porque grande parte da renda da minha família é composta por mim. Lembro que no dia da prova da Fuvest, na porta do banheiro estava escrito ‘cota é racista’, ‘preto que não estuda é burro’. É muito ruim ler esse tipo de coisa. Eu queria que a minha trajetória não tivesse sido tão difícil, contudo, eu fiquei muito feliz ao ser aprovada na primeira chamada”, recorda.

A história de Mel Oyá é semelhante a de outra estudante negra e caloura do curso de Gestão de Políticas Públicas. Andresa Costa, de 18 anos, até o ano passado conciliar o trabalho com os estudos.

“No último ano do ensino médio, eu e minha mãe, que é empregada doméstica, precisamos nos mudar para o bairro onde a patroa dela mora. Eu não consegui vaga em nenhuma escola perto, então atravessava a cidade três vezes ao dia. Eu estava exausta e mal conseguia estudar, mas mantive os estudos online e uma das patroas da minha mãe me emprestava livros. Foi assim que consegui passar na USP”, relata.

Andresa destaca que sua percepção como caloura da universidade é a mesma de outros espaços, como ambientes corporativos e locais de entretenimento em bairros ricos de São Paulo, como a Vila Madalena, na Zona Oeste, onde se sente sozinha.

“Qualquer lugar que temos acesso fora das periferias, fora do ramo de trabalho braçal, fora da lanchonete da esquina que em tese é o nosso lugar, nos sentimos sozinhos. Nunca esperei que na universidade fosse diferente disso. Eu me vejo sozinha como em todos os outros lugares. Não importa onde nós mulheres negras vamos. Ao olhar ao redor, a branquitude será clara. Me sinto sozinha, porém com a sensação de que estou no lugar certo por ocupar um espaço que também é meu e sempre deveria ter sido nosso”, sustenta.

As motivações que levaram as duas estudantes a escolherem o curso de Gestão de Políticas Públicas também se cruzam. “Eu quero entender como funciona o Estado porque sabemos que as políticas públicas são criadas por governantes que não precisam delas”, diz Mel. “Os problemas da nossa sociedade não são enxergados por pessoas brancas e ricas. Eu e outros negros precisamos estar na universidade pública, com nossa vivência, para pensar em soluções”, acrescenta Andreza.

Segundo Mel Oyá, as motivações dos estudantes negros são, muitas vezes, distintas das de estudantes não-negros. “Foi um choque entrar na USP e ver que as pessoas querem um diploma em Gestão de Políticas Públicas para prestar concurso público ou futuramente se candidatar a algum cargo político para ganhar muito mais dinheiro do que já ganham. Eu entrei por acreditar que as pessoas da quebrada precisam fazer políticas públicas”, conta.

Sistema de cotas

A USP quadruplicou o número de estudantes de graduação autodeclarados pretos, pardos ou indígenas entre 2010 e 2019. Dados sobre o perfil dos calouros divulgados pela Pró-Reitoria dão conta de que no ano passado o número de calouros negros ou indígenas alcançou 25,2% do total contra uma participação que variou entre 5% e 6% há dez anos.

A democratização do acesso à universidade também foi impulsionada pela implementação de cotas via Sisu, em 2016, e via Fuvest, em 2018. A meta da instituição de ensino é de que o número de calouros oriundos de escola pública chegue a 45%.

Primeiro lugar no Sisu para o curso de Gestão Ambiental, Rafael Julio, de 18 anos, também é um dos calouros negros da USP. Oriundo de uma escola técnica do estado paulista, ele conta a pressão que vivenciou para a aprovação no vestibular e a importância de ocupar a instituição.

“Eu tive uma pressão muito forte para ser aprovado porque eu estudei em uma escola técnica com um histórico de boas classificações. Em 2019, meu ano como vestibulando, eu me comparava a pessoas brancas de escola particular porque elas sempre tiveram mais facilidade para ingressar na USP. Agora, aqui dentro, eu pensei que fosse sempre me comparar a quem não teve a mesma vivência que eu. Nós, negros, devemos enxergar que pertencemos à universidade antes mesmo da aprovação, assim como são com os brancos”, pondera.

Barreiras além da aprovação no vestibular

Apesar de vencerem as dificuldades de conciliar a necessidade de trabalhar com uma rotina de estudos para passar na universidade pública, as barreiras dos estudantes negros não terminam na aprovação do vestibular. A depender do curso, os alunos não têm disponibilidade para exercer um emprego formal e precisam de auxílio para arcar com os custos de questões básicas como o transporte e a alimentação.

A Bolsa Permanência oferecida pelo governo federal desde 2010, no entanto, traz pré-requisitos que praticamente inviabilizam a aprovação do auxílio, como a carga horária mínima exigida de cinco horas diárias de aula.

Dados de 2018 do Ministério da Educação revelam que apenas 523 dos 22.866 cursos inscritos no Programa Universidade Para Todos (ProUni), porta de entrada de grande parte dos negros no ensino superior, atendiam aos critérios exigidos para concessão do benefício Dos 702 mil estudantes bolsistas matriculados em 2018, somente 8 mil tiveram acesso à Bolsa Permanência.

Outra barreira enfrentada pelos estudantes negros é a discriminação racial no cotidiano. Em menos de dois meses do início das aulas, a caloura Mel Oyá já passou por uma situação de racismo no momento de entrada no campus. A estudante conta ter sido questionada por um segurança se era realmente aluna da USP mesmo após apresentar sua carteira de identificação.

“É comum você chegar na portaria e passar por esse tipo de situação enquanto o mesmo não acontece com alunos brancos. Um dia eu tentei fazer o mesmo que as estudantes brancas que entram direto no campus e o segurança veio atrás de mim. Apesar de tudo, ainda é um lugar que precisamos ocupar”, relata.

  • Nataly Simões

    Jornalista de formação e editora na Alma Preta. Passagens por UOL, Estadão, Automotive Business, Educação e Território, entre outras mídias.

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