O Pacto Global da ONU (Organização das Nações Unidas) no Brasil teve ao menos quatro situações de racismo na empresa neste ano, segundo documentos obtidos pela Alma Preta. A reportagem ainda ouviu sete testemunhas anônimas que reforçam as denúncias de perseguição contra pessoas negras na entidade.
As quatro denúncias são sobre duas situações de racismo envolvendo o Pacto Global da ONU: em reunião com parceiros e poucas medidas efetivas em seguida, com a vítima passando por isolamento, e do alto escalão travar a entrada de profissionais negros considerados ativistas.
Quer receber nossa newsletter?
Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!
Os relatos de casos de racismo foram elencados na denúncia de assédio moral relacionadas ao ex-CEO Carlo Linkevieius Pereira e ao ex-diretor de estratégia Otávio Toledo feita à sede em Nova York e da notificação ao Ministério Público do Trabalho (MPT) em outubro, reveladas pelo portal UOL. No dia 13 de novembro, o MPT instaurou um inquérito civil para apurar as denúncias, feitas ao RH da empresa desde 2022. Os dois estavam de férias para assegurar a apuração.
Os executivos foram demitidos na última sexta-feira, 22. O Pacto Global da ONU afirmou que fará a seleção do próximo CEO a partir de uma vaga afirmativa “em linha com os propósitos de inclusão e diversidade” da entidade. Por enquanto, Guilherme Xavier, Senior Advisor da organização, assumirá interinamente como diretor-executivo.
Nas quatro denúncias de racismo de 2024, todas as vítimas sinalizaram que sofreram retaliações. Em uma delas, não houve retorno da liderança ou do RH do Pacto Global da ONU. Uma consultoria com parceria na empresa alegou num outro retorno que “estavam de mãos atadas” diante da situação. Em outro caso, o ex-CEO Carlo respondeu a um relato, mas passou a evitar e ignorar o funcionário. Uma funcionária questionou sobre os casos de racismo na equipe e também passou a ser isolada.
A entidade, criada em 2000, é considerada “a maior iniciativa de sustentabilidade corporativa do mundo” e que “fornece diretrizes para a promoção do crescimento sustentável e da cidadania”, segundo seu site. O Pacto Global – Rede Brasil foi criado em 2003 e faz projetos através de plataformas, movimentos e programas internacionais.
O Pacto Global ainda tem uma iniciativa para promover a igualdade racial, o movimento “Raça é Prioridade”, para que 1.500 empresas tenham pessoas negras como lideranças até 2030.
“Racismo reverso” em foto
Um dos casos relatados foi numa reunião presencial em maio deste ano. Com o encontro, funcionários decidiram se juntar para tirar uma foto apenas com as pessoas negras. A ação gerou desconforto em especial no diretor Otávio Toledo, considerando que era uma forma de racismo reverso.
Segundo as testemunhas, o ex-diretor chegou a sugerir demissão de um participante da foto por conta da acusação de racismo reverso. Num dos relatos documentados, é dito que Otávio Toledo teria “pedido a cabeça” de todos que estavam nela. Outra diretora da empresa questionou a postura de Toledo para Carlo Pereira. Em resposta, Pereira, CEO da empresa, pediu para ela “parar de polemizar” e “fazer seu papel”.
As pessoas ouvidas pela reportagem ainda sinalizaram que as fotos somente com a presença de pessoas brancas não geravam incômodo.
A Alma Preta apurou que após a demissão de Carlo e Otavio, numa reunião geral, uma funcionária branca elogiou ambos os ex-executivos e disse que passou por situações de racismo três vezes por ser branca, ter olhos claros e por sua família ter origens italianas.
Fórum Permanente de Afrodescendentes
As denúncias também relatam que, na organização do evento, uma funcionária presenciou uma situação racista numa reunião de parceria com a ONG Paramar para o Fórum Permanente de Afrodescendentes.
Uma pessoa da ONG Paramar celebrou a participação de outra liderança, no caso, branca, na organização do evento. A funcionária se sentiu invisibilizada e pediu uma posição do Pacto Global da ONU, e, segundo apuração da Alma Preta, Carlo respondeu por e-mail três dias depois. Mas passou a evitá-la. Sobre o caso, não ocorreu uma posição institucional sobre o fato.
Perfis ativistas
Existiu ainda uma reclamação acerca do perfil escolhido para a contratação de pessoas, com a exclusão dos candidatos entendidos como “ativistas”. Os relatos ouvidos pela Alma Preta apontam que os principais prejudicados eram pessoas negras.
Um dos casos descrito a partir do relato de testemunhas é de um processo seletivo em que um perfil foi escolhido por atender os requisitos técnicos da função. Otávio Toledo, viu o perfil e negou, dizendo que “não era um perfil comercial” e que “precisava de alguém menos ativista”. O candidato era um homem negro.
Ainda na mesma vaga, ao apontarem um segundo candidato, também negro, e o diretor novamente negou. Otávio, então, passou a sugerir perfis de pessoas brancas. A seleção para essa vaga ocorreu após uma orientação expressa pelo RH para que a área de fundraising (captação) tivesse mais diversidade.
O ex-diretor também teria implicado com o que considera “perfil ativista” ao menos em dois outros casos relatados.
A diretriz informal contra os perfis considerados ativistas também seria expressa pelo ex-CEO, Carlo Linkevieius Pereira. Numa reunião sobre análises da empresa, foi exposto que uma das fraquezas era a percepção de um “ativismo excessivo” no Pacto Global Brasil. Carlo já assinou uma coluna no site Valor Econômico falando sobre a figura do “CEO ativista” e do papel de liderança.
O outro lado
Em nota para a imprensa, o Pacto reforçou que “o então CEO, Carlo Pereira, e o diretor de estratégia, Otávio Toledo, não integram mais o quadro de colaboradores”. “A mudança de lideranças não é a única medida, neste momento. O Pacto Global permanece comprometido com a melhoria contínua e, por isso, está implementando ações estratégicas para fortalecer e aprimorar a governança”, afirma.
“O Pacto Global Rede Brasil reitera que a organização continuará atuando baseada nos princípios e valores que nos norteiam e que não poupará esforços nesta direção. Os compromissos do Pacto seguem pautados na transparência, na ética e na melhoria da governança em todas as ações”, finalizam.
Carlo Pereira, ex-CEO, foi procurado pela reportagem. Ele indicou sua assessoria de imprensa para responder aos questionamentos. Num primeiro momento, sua assessoria disse que ele não se manifestaria sobre a reportagem da Alma Preta. Depois, Carlo nos procurou para colocar seu posicionamento na íntegra. A reportagem explicou que os posicionamentos são colocados integralmente na matéria, mas não são publicados separadamente como novo texto.
Otávio Toledo, ex-diretor de estratégia no Pacto Global da ONU, foi procurado e também indicou sua assessoria. Em nota, disse: “Repudio e nego veementemente as supostas acusações de assédio moral ou de qualquer outra irregularidade nas minhas atividades como executivo do Pacto Global, onde atuei nos últimos seis anos. Até o momento, nada me foi apresentado pelo órgão e tampouco foi me dado o direto à defesa contra fatos que desconheço”.
Procuramos a ONG Paramar. À reportagem, a presidente, Marina Maciel, disse: “Durante todas as tratativas com o Pacto Global, em nenhum momento houve qualquer situação ou relato envolvendo acusações desse tipo, de modo que nada nesse sentido foi suscitado ou comentado a época, razão pela qual causa estranheza que surja agora um relato dessa natureza, sobretudo em relação a Paramar, uma ONG constituída por mulheres nordestinas que sempre pautou sua atuação em prol da diversidade, dos direitos humanos e do respeito a todas as pessoas”.