Atleta transexual mais premiada da modalidade de Pernambuco, Priscilla Tawanny se divide entre apresentações de até oito horas por dia em um sinal de trânsito e ensaios para competições
Texto: Victor Lacerda I Edição: Lenne Ferreira I Imagens: Victor Lacerda/Alma Preta
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Nascida e criada no Alto 13 de Maio, no bairro de Nova Descoberta, na Zona Norte do Recife, Priscilla Tawanny, é conhecida por sua determinação e amor pelos esportes. Com 25 anos, 11 dedicados à baliza, a atleta é a única mulher trans a disputar a final da Copa Pernambucana de Bandas Marciais e Fanfarras 2020 no próximo domingo, (27). A ginasta, que garante o sustento em um sinal de trânsito, quer levar o título de hexacampeã para a estante da casa onde ela sonha com reconhecimento internacional e em desenvolver um projeto de inclusão com crianças.
“Confesso que, mesmo estando neste período de fim de ano, minha energia e ansiedade estão voltadas à competição de domingo. Natal é esta semana, mas estou mesmo atenta à final”, confessa. Priscilla divide seu tempo entre ensaios para competições interestaduais e apresentações de até oito horas em vias movimentadas da cidade, de onde tira todo o seu sustento.
Ainda muito jovem, Priscilla teve de lidar com problemáticas que já davam indícios de que a vida iria cobrar trabalho redobrado. Até mesmo a sua paixão à primeira vista, o sonho em ser uma baliza, foi questionado desde o primeiro momento. Priscilla representa um ponto fora da curva de um país que relega os piores lugares para mulheres transexuais como ela.
Modalidade que integra as bandas marciais e fanfarras, a baliza é representada por uma pessoa à frente do grupo que executa movimentos de ginástica, dança e utiliza objetos como aro, massa e fita. O primeiro contato com o esporte foi em 2009, quando participou do ‘Projeto Escola Aberta’, parceria do Ministério da Educação com a UNESCO, que visava trazer à juventude atividades de esporte, cultura e lazer nas instituições de ensino municipais. Após ter tido aula de frevo em uma manhã daquele ano, Priscilla não se contentou em aprender apenas um estilo e, sem mesmo parar para ir em casa almoçar, passou direto do horário marcado com sua mãe e ficou para compreender um universo que unia acrobacia, coreografia e manuseio de objetos com delicadeza.
“Eu fiquei encantada, só observando. Em um dia que eu voltaria de casa por volta do meio-dia, não vi o tempo passar e só consegui chegar para o jantar, umas seis da noite. Obviamente, minha mãe louca de preocupação por falta de um aviso meu, como forma de castigo, me tirou não só da baliza, mas de todos os outros estilos de dança”, conta, Priscilla.
Ao seu favor, pouco tempo depois, a jovem baliza percebeu que poderia encontrar uma vasta quantidade de apresentações pela internet e tomou, como disciplina, ensaiar quase que diariamente em casa as movimentações das ginastas olímpicas nacionais e internacionais. Desde aí, não parou.
“Lembro que deixava de ir para rua, muitas vezes, para ficar ensaiando em casa. A forma que eu tinha de pegar os passos e as acrobacias era tentando imitar o que eu via dos vídeos. Isso me deu uma coleção de arranhões e outras marcas, das quedas ou posturas erradas que fazia. Mas era persistente. Era me ralando, cuidando e voltando para ensaiar novamente”, relembra.
Com mais segurança de suas habilidades, a atleta mirim foi inserindo, em seus ensaios, objetos que pudessem exercitar os usados nas competições, como o aro, ferramenta parecida com o bambolê, e a bola. Sua dedicação à modalidade a levou para acompanhar e, posteriormente, integrar bandas marciais do Recife e Região Metropolitana.
Tempo de virada
“Para mim, 2014 foi um ano esplêndido!”, avalia ela, mesmo depois de enfrentar as dificuldades que se apresentaram em um momento de pandemia mundial. Para a atleta, este foi o ano de virada em sua carreira como baliza, quando decidiu colocar sua desenvoltura junto à modalidade como prioridade de vida. Por consequência, teve de renunciar o conforto da casa dos pais e alugar uma casa para morar sozinha.
Além da escolha profissional, outras decisões mudaram o rumo de sua vida. No mesmo ano, Priscilla decidiu começar a terapia hormonal e, aos poucos, entender o processo de se identificar como uma mulher transexual negra e periférica.
“As pessoas acham que o processo de transição é fácil. Mesmo tendo como foco as minhas escolhas profissionais, tomar hormônios mexeu muito com meus sentimentos, o que me desestabilizou um pouco diante do processo de me ver sozinha, entende?”, desabafa Priscilla.
Diante das necessidades de manter uma casa e colocar comida na mesa, a atleta não viu outra forma de viabilizar o seu sustento e seu sonho, paralelamente, a não ser o fato de ir para rua. A faixa de trânsito tornaria-se seu palco, os pedestres e motoristas seus espectadores e seu tempo de apresentação para prender e atingir o público seria apenas de 40 segundos.
Foi no cruzamento da Rua Conde do Irajá com a Rua Real da Torre, no bairro da Torre, no Recife, que Priscilla conseguiu tomar resistência corporal e, aos poucos, ir conquistando um espaço na cidade, que funcionava de vitrine para os que passavam. Com episódios de doações de alimentos ou esperas para o almoço acompanhada de admiradores dos seus movimentos, ao todo, já se vão seis anos de uma rotina de 5 à 8 horas por cinco vezes na semana.
“É muito diferente acompanhar como comecei, quando passava algumas horinhas no sinal e ficava extremamente cansada, com o ritmo que peguei ao longo do tempo. Tinha que lidar com o sol na cabeça, no pé e sempre ter em mente que a cada sinal fechado, em um tempo médio de quarenta segundos, eu teria que mostrar o meu melhor para prender a atenção de quem passava por ali. Eu queria que as pessoas mudassem o dia me vendo e também me ajudassem. Era uma junção de realizações”, conta a atleta.
Para priorizar outros gastos, incluindo a manutenção dos objetos usados durante suas apresentações, Priscilla precisou lidar com dificuldades até para se alimentar. Contudo, nem mesmo uma cerveja atirada nas suas costas durante apresentação no sinal ou ter de responder perguntas sobre o porquê de estar ali colocaram o sonho da ginasta em cheque.
A atleta reitera a falta de investimento financeiro para custear as ferramentas que precisa para uma boa execução dos aprendizados como baliza. Por estar diariamente em contato com o asfalto, a bota utilizada nas apresentações não resiste ao calor e dura, em média, um mês, por exemplo. Para manter em boas condições, Priscilla gasta R$120/mês para a manutenção do calçado. Situação que faz com que a atleta se apresente na rua, por muitas vezes, descalça.
Por este mesmo motivo, tem ciúmes do seu amigo e fiel escudeiro , utilizado nas movimentações de acrobacia em que faz com as mãos e os pés. “Não deixo ninguém tocar. Uma vez, me apresentando em Casa Forte, joguei o aro para cima, ele ficou preso no poste e eu não consegui de jeito nenhum tirar. Aquilo ali acabou o meu dia. Para minha surpresa, no dia seguinte, um segurança de shopping disse que havia guardado depois dele ter caído com uma ventania forte. Isso me fez voltar com tudo e sempre dizer ao pessoal: não é bambolê, é aro!”, diz, em tom de satisfação.
O mesmo cuidado vai para a vestimenta. É de pedraria em pedraria que o brilho de Priscilla toma forma. “Eu me sinto uma power ranger quando estou no uniforme. Tira uma força de mim que eu não sei de onde vem, mas chega, sabia?”, confessa. Com um acervo formado por doações de colãs, Priscilla, que já se apresentou com roupa emprestada de outra concorrente, em concurso, hoje conta com a ajuda de dois estilistas do município de Vertentes, no interior de Pernambuco, que doam roupa de apresentação uma vez ao ano.
Títulos
Paralelamente aos desafios de se manter sozinha, sendo uma artista de rua, Priscilla considerava suas apresentações em condições mais difíceis como uma forma de ensaio diário. Assim, foi evoluindo no ritmo que deu os primeiros passos em casa.
A convicção de que estava em constante contato com a modalidade, trouxe à Priscilla uma bagagem de experiência, que a fez participar, durante estes anos, de cinco bandas marciais e fanfarras. Mesmo com poucos recursos, sempre colocou seu corpo à disposição para participar de competições interestaduais. Os companheiros de equipe sempre entenderam que o seu ritmo de vida não possibilitaria sua presença em todos os ensaios.
Na estante de casa, como reconhecimento de sua luta e trajetória, estão títulos como o de pentacampeã da Copa Pernambucana de Bandas e Fanfarras, Campeã Interestadual da modalidade e Tricampeã da Copa Norte e Nordeste de Bandas e Fanfarras.
Mesmo concorrendo, ainda, na modalidade masculina, Priscilla afirma não se abala e explica o porquê: “Vejo como mais um desafio a ser ultrapassado e entendo que, aos poucos, dos juízes aos locutores, todos vão entendendo quem eu sou e para o que vim estando ali. Ainda sou associada à resistência corporal que as pessoas falam que os homens têm, então vou para competição sabendo que vou ter que lidar com uma força maior, mas ensaio para isso, né? Não deixo me desfocar”, comenta.
“O que não me matou, me fez forte”
O ano de 2020, para além de um cenário pandêmico, agravou as dificuldades a serem contornadas na vida de Priscilla. No mês de fevereiro deste ano, a jovem sofreu uma perda pessoal. Teve de lidar com a perda do companheiro, assassinado durante o Carnaval, na porta de casa onde moravam há quatro anos.
A fim de defendê-lo, Priscilla acabou se envolvendo na confusão e acabou atingida, no tórax, por uma bala. Ela precisou lidar com a sucessão de fatos negativos durante um mês hospitalizada. Passou por uma cirurgia e ficou dias de repouso. Com sequelas da operação veio a insegurança de não conseguir voltar a se apresentar.
Como ajudante no processo de recuperação, física e psicológica, a jovem contou com a presença do amigo Bruno Cabral, cabeleireiro de 31 anos, que há 6 anos compartilha de uma amizade forte com a atleta. Ele conta que, mesmo não acreditando em um quadro de melhora instantânea da amiga, viu que, diante da situação de risco, a amiga uniria forças e usaria as vivências como um trampolim.
“Para mim, ser amigo de Priscilla é ter como sinônimo de vida a garra. Ela é a determinação em pessoa, por isso eu acreditei e acredito nela até hoje”, afirma, emocionado, Bruno.
Sem recursos, por ter um trabalho autônomo, que depende exclusivamente da sua ida às ruas para se apresentar, Priscilla ficou na casa da mãe durante o período de lockdown. O tempo de recolhimento foi o suficiente para retomar as atividades com mais força. Sua condição não permitia escolher sair das ruas e voltou ao sinal para apresentar.
“Chegou um ponto que eu não tinha dinheiro para ir ao cruzamento que me apresento. Peguei umas garrafas de água e fui andando devagarinho daqui do Alto 13 de Maio até o bairro da Torre. Sempre focando no lado positivo da vida, eu pude entender que, mesmo voltando aos poucos, aquilo ali representaria minha volta à vida e assim eu segui”, conta a jovem.
Com tempos de apresentação reduzidos nos sinais, Priscilla testou os seus limites e conseguiu repor a resistência que tanto trabalhou para alcançar. Emocionada, Priscila afirma “passei um momento que na minha mente eu dizia, o que não me matou, me fez forte”.
Hoje, a atleta integra a Banda Musical Maria Alves Machado, do bairro de Maranguape II, no município de Paulista, Região Metropolitana do Recife.
Olhar para o horizonte
Priscilla confessa o sonho de conhecer e estabelecer trocas com a ginasta Natália Gaudio. A atleta conta que a admiração se deu depois de um fato ocorrido para a classificação da ginasta para os Jogos Olímpicos de 2016.
“O sonho de encontrar com ela tem muito a ver com o que acredito nas minhas atividades como baliza. Natália Gaudio por muito tempo não foi cotada como um dos principais nomes para representar o Brasil nas olimpíadas de 2016, mas, em fase classificatória, surpreendeu a todos e foi eleita a melhor competidora individual no esporte”, relembra. Priscilla também visa representar Pernambuco mundo a fora. E não só, ela quer que outras meninas tenham a oportunidade de conhecer a modalidade que deu um rumo diferente para sua vida e existência.
Em 11 anos de história, a baliza pernambucana ainda precisa continuar nas ruas tirando o seu sustento, mas não vê a hora de dar aulas para as crianças do bairro onde sempre viveu. “Ao contrário do meu processo, que partiu muito do meu interesse e da minha dedicação, eu gostaria que o caminho das outras meninas, crianças, fosse menos difícil. Por isso, mesmo dando algumas aulinhas para poucos jovens, eu pretendo abrir a minha escola. Vejo que, além de apresentar uma modalidade pouco conhecida nos esportes, eu vou poder passar para frente uma nova oportunidade de vida para quem eu ensinar”.