A população em situação de rua é apontada como uma das faces mais representativas do dia 14 de Maio de 1888, um dia depois da abolição da escravatura. Sem teto e acesso ao emprego, a comunidade negra continua marginalizada desde então
Texto / Pedro Borges
Imagem / Agência Brasil
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O dia depois do 13 de Maio de 1888 é interminável. O mais longo dia da história da população negra brasileira ainda persiste e tem marcas profundas na atualidade. Depois de comemorar a conquista da liberdade por meio da luta, coube ao negro o desemprego, a fome, a morte, os presídios e as ruas.
Os dados, as pesquisas e a opinião de ativistas e pesquisadores vão apontar aquilo que os olhos de qualquer um pode perceber no dia a dia das grandes cidades: a presença massiva de negras e negros entre aquelas e aqueles que têm como lar a rua.
Bob Controvesista, ativista do movimento negro desde 1995, envolvido com o debate sobre população em situação situação de rua, Conselheiro Estadual de Direitos Humanos – CONDEP de São Paulo, e gestor do Espaço Cisarte, acredita que o 14 de Maio seja uma das representações mais sólidas do processo de abolição da escravatura no Brasil, sem a superação do racismo e das desigualdades sociais e raciais.
“Todo dia que eu saio para a rua é o dia 14 de Maio. Porque quando eu ia para a rua para fazer o debate eu via um monte de pretas e pretos soltos, largados, sem assistência, sem nenhum atendimento, com vários direitos violados, principalmente na questão dos direitos humanos”, conta.
Para ele, existe um processo histórico de subalternização da população negra em que o 14 de Maio, o dia pós abolição, é apenas mais um reflexo.
“No Brasil, eles pegaram do dia para a noite todo mundo e jogou fora. Jogou para fora das propriedades e aí ficou todo mundo vagando. Não tinha o que fazer, um racismo muito forte, porque você ainda tinha a carga da escravidão. Eu digo que é o 14 de Maio, porque se esse mês eu não pagar o aluguel, amanhã eu estou na rua. E aí eu vou para onde?”
Dados da população em situação de rua
O Brasil não possui dados oficiais sobre a população em situação de rua e as pesquisas e os levantamentos feitos são de responsabilidade dos municípios da federação. Para contornar essa situação e apresentar um panorama geral, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a partir dos números de 1.924 cidades, por meio do Censo do Sistema Único de Assistência Social (Censo Suas), estimou que existiam 101.845 mil pessoas em situação de rua no Brasil.
A pesquisa mostra também como, conforme crescem os municípios, aumenta a presença de moradores de rua. Estima-se que 40,1% da população de rua esteja em municípios com mais de 900 mil pessoas, e que 77,2% esteja em cidades com mais de 100 mil pessoas.
O Sudeste, onde estão os grandes centros urbanos brasileiros, também apresenta a maior concentração de pessoas em situação de rua. Esta região do país abriga 48,8% dessa população, enquanto a região Norte recebe apenas 4,3%.
Os números elevados de pessoas em situação de rua são resultado de alguns contratos sociais desiguais feitos e imbuídos a essas pessoas antes delas nascerem. Bob Controvesista acredita que a falta de políticas voltadas para a população pobre e negra é uma das razões para essa situação.
“Com o Estado mínimo para o povo preto, a gente tem mil vezes mais dificuldades de acessar o mercado de trabalho, de acessar uma alfabetização e educação de qualidade. O que mais leva e homens e mulheres para a situação de rua é o não entendimento da comunidade, dessa relação com o mundo. Alguns contratos sociais que são assinados antes da gente nascer”, disse.
A prefeitura de São Paulo tem dados mais detalhados sobre a população em situação de rua desde o início do Século XIX. A Secretaria de Assistência Social (SAS) e a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) fizeram um levantamento sobre a população em situação de rua na cidade.
Na época, localizou-se 8.706 moradores de rua, e percebeu-se que 84,8% eram homens e 61,7% desses eram não brancos. Chama atenção para a discrepância censitária da população branca e não branca da época. De acordo com os números do IBGE, os não-brancos eram 29,7% do município.
Em 2015, nova pesquisa feita pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) em conjunto da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), deram um panorama mais recente sobre o perfil da cidade.
O levantamento contabilizou 15.905 pessoas em situação de rua, quase o dobro de 15 anos antes. Entre 2000 e 2015, a taxa de crescimento da população paulistana foi de 0,7% ao ano, enquanto da população em situação de rua foi de 4,1%.
A proporção entre homens e mulheres continuou próxima, com 86% de homens e 14% de mulheres. Do ponto de vista racial, 70% dos moradores de rua eram negros e 27% brancos. Os demais pertencem a outros grupos raciais ou não foram identificados.
Bob Controvesista acredita que essa desproporção é um reflexo da disparidade histórica entre negros e brancos. Depois da escravidão, brancos europeus foram incentivados a vir ao Brasil para ocuparem os postos de trabalho e deixarem a comunidade negra às margens. O projeto era o de construir um país sem a presença do afrodescendente.
“De lá para cá, a gente sempre foi relegado à rua. Nunca tivemos direito de ter uma casa, um terreno, uma vaca, uma lavoura nossa”.
Para além das desigualdades postas, das razões para que negras e negros estejam em maior quantidade nesse segmento populacional, a população em situação de rua tem dados uma situação de grande vulnerabilidade.
A pesquisa “Alta mortalidade de jovens usuários de cocaína no Brasil: um estudo de acompanhamento de 5 anos”, de RIBEIRO, M; DUNN, J; Ronaldo Laranjeira mostra que a população em situação de rua e usuária de droga tem 7 vezes mais chance de morrer do que a população em geral. Mais agravante, 6 em 10 pessoas desse grupo serão assassinadas.
Some a esses dados os números de violência contra a comunidade negra no Brasil. Segundo a Anistia Internacional, 77% dos jovens mortos no Brasil são negros, ao passo que, conforme o Atlas da Violência 2017, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), a população negra tem 23,5% chances a mais de morrer do que grupos de qualquer outra etnia.