Mesmo com aumento no nível de escolaridade, o grupo social tem salários e condições de trabalho inferiores a todos os outros; racismo estrutural é um dos fatores
Texto / Amauri Eugênio Jr.
Imagem / Pexels
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A diferença sociorracial no Brasil entre pessoas negras e brancas é visível. Apesar de o primeiro grupo, composto por pessoas pretas e pardas, ser equivalente a quase 54% da população nacional, os parâmetros sociais passam longe do que se entende por equidade.
A taxa de analfabetismo entre pessoas com mais de 15 anos em 2017 abrange 7,2% da população brasileira – ou seja: 11,8 milhões de indivíduos são analfabetos. Dentro desse indicador, 9,9% de indivíduos negros são analfabetos, ao passo que o percentual entre pessoas brancas é 4,2%. Ainda, 18% de adultos brancos têm ensino superior, enquanto 8% da população negra conseguiu concluir os estudos em uma universidade
Se a desigualdade é gritante entre pessoas negras, esse patamar é ainda maior entre mulheres negras e tem reflexos diretos no mercado de trabalho. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 39,8% de mulheres negras compõem o grupo submetido a condições precárias de trabalho – homens negros abrangem 31,6%; mulheres brancas, 26,9%; e homens brancos, 20,6% do total.
O quadro de desigualdade é dramático até mesmo quando a graduação no ensino superior é considerada. De acordo com a pesquisa “O Desafio da Inclusão”, do instituto Locomotiva e divulgada em 2017, o salário de uma mulher negra com o ensino superior concluído é, em média, R$ 2,9 mil. Para efeito de comparação dentro desse cenário, o de mulher branca é R$ 3,8 mil; o de um homem negro, R$ 4,8 mil; e o de um homem branco, R$ 6,7 mil.
Deste modo, o questionamento sobre o porquê de tamanha desigualdade e o abismo entre mulheres negras e demais grupos sociorraciais vem à tona. Qual é a razão para a disparidade nesse nível, mesmo com o aumento no nível de escolaridade, uma vez que, segundo o IBGE, 10,4% de mulheres pretas e pardas concluíram o ensino superior?
“Houve aumento significativo na última década no percentual de mulheres negras que concluíram o ensino superior. Por outro lado, esse mesmo número não permitirá a diferenciação do modo como a mulher negra cresce no mercado de trabalho. Mesmo havendo aumento na formação delas, não há crescimento no número de postos de trabalho para pessoas com ensino superior”, explica Jacqueline de Moraes Teixeira, doutora em antropologia e professora da Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo), sobre esse quadro.
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Histórico perverso
Você achou que o racismo estrutural está diretamente relacionado à pouca – ou nula – valorização que a mulher negra recebe no mercado de trabalho? Acertou. Ainda que a capacidade profissional dela seja comprovada para exercer determinada função, outras características, que nada têm a ver com a função a ser exercida, determinam a ocupação da vaga por pessoas de outros grupos raciais.
“Os problemas estão relacionados a fatores como vestimenta e características físicas. O processo e a linguagem do mercado de trabalho admite a mulher negra em determinadas funções, voltadas à esfera doméstica e a serviços que consideram muito menos do que esses corpos, mesmo tendo a mesma formação, para ocupar cargos de maior relevância em determinadas funções”, pontua a doutora em antropologia e professora da Faculdade de Educação da USP.
Outro ponto a ser considerado é a origem da lógica racista no mercado de trabalho, que condiciona mulheres negras a ocuparem funções voltadas à atividade doméstica ou à prestação de serviços elementares, como limpeza. Esse panorama está intrinsecamente ligado à lógica escravocrata.
Ainda que houvesse mulheres negras escravizadas inseridas em atividades relativas à colheita de cana-de-açúcar e em usinas, o senso comum até hoje a aprisiona ao trabalho doméstico na casa grande.
“Este ponto está, certamente, conectado ao imaginário da inserção de mulheres negras no mercado de trabalho que remete à economia escravocrata, que permeou [o país] por mais de três séculos. Ainda há herança perversa, e o processo de socialização e de reconhecimento da mulher negra no mercado de trabalho remetem ao cuidado e ao trabalho exercido na casa grande: elas eram responsáveis pelo serviço doméstico e pelos cuidados com os filhos [dos senhores] brancos”, ressalta Jacqueline.
Causa e efeito
De modo geral, oportunidades desiguais e remuneração inferior têm como consequência o acesso reduzido a serviços básicos, como habitação, educação e saúde, e à consequente marginalização desse segmento populacional. Logo, é inviável ver o mercado de trabalho como um elemento à parte no que diz respeito à desigualdade social.
“O mercado acaba, talvez, ajudando na cristalização do processo de desigualdade social, que se dá em diversas instâncias. Há um problema político, extremamente sério, que é o genocídio da juventude negra”, ressalta Jacqueline de Moraes Teixeira.
Ainda que políticas públicas, como a adoção de cotas raciais em universidades e em concursos públicos, tenham possibilitado o aumento do acesso de mulheres negras ao ensino superior e a ter melhorias sociais, isso não vem se mostrado suficiente, inclusive no que diz respeito ao mercado de trabalho.
Sendo assim, qual é a solução a ser adotada? Uma possibilidade é criar, seguindo a mesma lógica de cotas étnico-raciais, mecanismos de representatividade para populações não representadas, assim como políticas afirmativas no mercado de trabalho. Esse aspecto abrange diretamente o trabalho de equipes de recursos humanos de empresas, ao levar-se em conta as proporções raciais e de gêneros, ao aumentar os níveis de diversidade e de representatividade em tais corporações.
“É necessário construir mecanismos de representatividade em tais empresas, inclusive para cargos de diretoria e de liderança, em que pessoas com a mesma formação tenham chances de ocupar posições para as quais foram formadas dentro de trabalho. Essa seria uma medida superimportante, que já é aplicada [em certa medida] no Brasil, por meio da lei federal para cotas em determinados concursos públicos. Mas seria importante que empresas discutissem sobre essa questão”, completa Jacqueline de Moraes Teixeira, doutora em antropologia e professora da Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo).