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Por que o candomblé sacrifica animais?

De acordo com lideranças religiosas, o abate funciona como uma troca de energia e vitalidade entre a pessoa iniciada na religião e seu orixá
Mãos em símbolo de oferta para representar a sacralização animal praticada no candomblé.

Foto: Imagem: I’sis Almeida

28 de março de 2022

“A oferenda dos alimentos, inclusive com a sacralização animal, faz parte indispensável da ritualística das religiões de matriz africana. Impedir a sacralização seria manifestar claramente a interferência na liberdade religiosa”. A fala foi dita pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), após um debate feito em 2018 sobre o sacrifício animal.

A liberdade para essa prática religiosa está prevista no artigo 5º da Constituição Brasileira. No entanto, o assunto ainda é alvo de polêmica e discriminação. Para o professor de Educação Infantil e Ensino Fundamental, Daniel Pereira, babalorixá de tradição nagô-ketu e líder religioso da Comunidade da Renovação Ilê Axé Oxaguian, o primeiro passo é aprender a dar nome aos atos, para compreender sua real função dentro da ritualística.

“Costumamos utilizar o termo abate religioso em oposição ao sacrifício. A palavra sacrifício geralmente é carregada de sentidos quase sempre negativos e associados a algo ruim”, diz o líder religioso.

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Daniel explica que a oferenda de alimentos, inclusive com a sacralização animal, é parte indispensável da ritualística das religiões de matriz africana. Segundo ele, o abate funciona como uma troca de energia de vitalidade entre a pessoa iniciada e seu orixá.

Danilo Clemente, contador e babalorixá do candomblé Ketu Creia Ajagúndolá, acrescenta que a sacralização animal serve enquanto ferramenta de comunicação entre os adeptos à religião e suas respectivas divindades.

“Acreditamos que através da imolação, aquele animal se comunicará com o Deus-Orixá, levando até ele as necessidades do ofertante. Além de toda essa teoria, existe o fato da simples oferta. Ofertar por gratidão, ou por cumprimento religioso. As oferendas são comuns em quase todas as religiões, mas o candomblé, sem dúvidas, é a mais apedrejada”, afirma o líder religioso.

Ritualística não aceita crueldade

Segundo o Babalorixá Daniel Pereira, os animais abatidos nas comunidades tradicionais de terreiro são aqueles que fazem parte da cadeia alimentar humana: cabritos, galinhas e galos, por exemplo. Não são abatidos animais domésticos ou silvestres. Ele explica também que geralmente há um sacerdote preparado para a realização do ritual: o ogã (título sacerdotal masculino) Axogum. Na ausência deste, a sacralização animal poderá ser realizada pelo próprio babalorixá ou ialorixá.

O Axogum, segundo o líder religioso Danilo Clemente, deve ter experiência e precisão com o obé (faca), para que o abate seja preciso e rápido, evitando o sofrimento do animal.

“Os animais devem ser adultos, fortes e sem comorbidades. Geralmente eles chegam no terreiro horas antes de começar os rituais, onde eles são lavados, alimentados e rezados. Através dos adúras (rezas), acreditamos que esse animal entenderá qual a sua incumbência naquele momento e, de bom grado, aceitará a sacralização em prol de sua missão com os orixás”, explica o babalorixá Danilo.

O líder religioso Daniel Pereira salienta que é oferecido ao orixá o que os adeptos da religião têm de melhor, como símbolo de gratidão, o que inclui os animais sacralizados. O babalorixá comenta ainda que é preferível que estes animais sejam criados da forma mais natural possível e sejam bem cuidados, “evitando-se qualquer coisa que possa causar estresse” no ser vivo.

“O animal não pode estar doente, machucado, com fome, sede e, no caso das fêmeas, prenhas. E há uma regra muito clara: os animais precisam ser abatidos de forma rápida e que não provoque dor”, destaca.

O que é feito com o animal sacralizado?

“Por muito tempo, o candomblé foi o único meio de alimentação de muitas famílias na antiguidade. É importante frisar que absolutamente nada é desperdiçado, da carne que consumimos até o couro dos animais que utilizamos para nossos atabaques”, ressalta o líder religioso Danilo Clemente.

Para Daniel Pereira, o abate religioso tem, sobretudo, um caráter humanitário. Ele explica que retiradas as partes oferecidas aos orixás (os axés), a carne é totalmente utilizada para a alimentação dos membros do terreiro e, muitas vezes, até da comunidade do entorno. Animais mortos, despachados deliberadamente nas ruas, segundo ele, não fazem parte da ritualística de culto a orixá.

“Os abusos cometidos contra os animais que, eventualmente, podem ser vistos em vias públicas, não são praticados por pessoas de candomblé. Os que o fazem, não seguem lideranças religiosas sérias”, avalia o babalorixá.

“A fé preta incomoda”

“Muito se foi dito sobre nossa fé por pessoas que não eram da religião. Muita inverdade foi propagada, muita coisa foi contada de forma leviana por quem sequer havia pisado numa comunidade de terreiro. Se querem saber sobre o candomblé, perguntem para alguém que seja de candomblé. Permitam que nós falemos por nós”, salienta Daniel Pereira.

O Babalorixá relembra que foi necessária uma mobilização da comunidade candomblecista em 2018 contra o Ministério Público do Rio Grande do Sul. Na época, foi apresentado um recurso contra uma decisão do Tribunal de Justiça gaúcho, que permitia a prática da sacralização de animais em religiões de matriz africanas.

O tema chegou ao STF que, em 2019, decidiu que a prática é constitucional. Segundo Daniel Pereira, outros cultos adeptos à prática de sacralização animal não precisam lutar de tal forma para conseguir realizar seus respectivos rituais. O motivo, de acordo com ele, é o racismo contra religiões de negros.

“Por que não há mobilização contra o abate realizado por judeus (kasher) ou pelos muçulmanos (halal)? Simples: porque não são religiões de preto e, portanto, não sofrem ataques. Se as pessoas estão mesmo preocupadas com os animais, por que não se posicionam contra a carnificina promovida pelos grandes frigoríficos? ou elas simplesmente desconsideram os maus tratos sofridos, como confinamentos à exaustão, bicos e dentes arrancados para evitar o canibalismo?”, questiona o líder religioso.

Para o Babalorixá Danilo Clemente, o racismo impregnado na sociedade impede que as pessoas busquem conhecimento sobre a ritualística do candomblé, o que gera preconceito e intolerância religiosa.

“Não há outra explicação a não ser o racismo. O que vem do preto, para a sociedade, deve ser destruído. A fé preta incomoda. Incomoda porque é grande e atravessou séculos, é resistente aos ataques deles [racistas]”, reforça.

“Precisamos enaltecer Ògún como Ògún e não como São Jorge”, diz sacerdote

“A intolerância e racismo religioso só existem porque as pessoas não estão muito dispostas a respeitar nosso direito que, inclusive, é constitucional, à liberdade de culto”, salienta Daniel Pereira. Para ele, os praticantes de candomblé precisam passar a ocupar espaços usando suas indumentárias e fios-de-contas, como símbolo de orgulho da própria crença.

Já o líder religioso Danilo Clemente acredita que é imprescindível que a comunidade candomblecista tome algumas atitudes para contribuir com o fim da intolerância religiosa e preconceito contra a sacralização animal. Ele salienta que é hora de findar o ciclo de sincretismo religioso e passar a aceitar o candomblé como ele é, com suas ritualísticas, divindades e tradições.

“Penso que alguns caminhos possam ser trilhados. O sincretismo com os santos da igreja católica, por exemplo, não é mais necessário. Precisamos enaltecer Ògún como Ògún e não como São Jorge. Quem é de candomblé de verdade sabe onde ‘despachar’ suas oferendas, pois não se deve sujar locais coletivos. Existem lugares apropriados para isso, não devemos dar margem para eles nos julgarem”, sustenta.

Danilo ainda ressalta que a exposição de rituais na internet deve ter limites. Segundo ele, para quem não vive o candomblé, imagens podem servir enquanto armas contra os povos de terreiro. Além disso, ele afirma que a educação e o diálogo são armas poderosas contra o preconceito.

“ É necessário ocupar espaços importantes e disseminar a boa palavra. Èsù nos ensina que devemos propagar boas palavras contra aqueles que nos atacam. Uma boa conversa e explicações legítimas sobre nosso culto abrirá os horizontes para que as pessoas nos enxerguem de forma diferente”, pondera o sacerdote.

“As pessoas precisam se acostumar com nossa presença. E não falo de nos tolerar. Falo de uma coisa simples que é respeitar alguém que professa uma fé diferente da sua”, finaliza o professor Daniel Pereira.

Leia também: ‘Pela primeira vez, Brasil terá mapeamento sobre racismo religioso’

  • Caroline Nunes

    Jornalista, pós-graduada em Linguística, com MBA em Comunicação e Marketing. Candomblecista, membro da diretoria de ONG que protege mulheres caiçaras, escreve sobre violência de gênero, religiões de matriz africana e comportamento.

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