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Precisamos falar sobre colorismo

Criado nos EUA, nos anos 1980, o termo remete ao modo como o tom da pele determina que a pessoa tenha privilégios e acesso facilitado a diversos espaço sociais; quanto mais negra a pessoa for, mais dificuldades ela terá
Colorismo busca definir como o tom de pele influencia privilégios ou violências em sociedades racialiazdas.

Foto: Alma Preta Jornalismo

22 de junho de 2018

Por Amauri Eugênio Jr.

Em um cenário hipotético, que pode ser ironicamente chamado de Terra, pessoas negras de pele clara, traços finos e cabelos lisos têm acesso facilitado a diversos aspectos, que variam desde pontos básicos e estabelecidos como obrigatórios na legislação, a até mesmo espaços de poder. Em contrapartida, quanto mais escura for a pele de determinada pessoa, mais difícil será a possibilidade de ela conseguir acessar esses mesmos aspectos.

Pois bem, qualquer semelhança com a nossa realidade não é uma mera coincidência – é realidade, afinal. Esse exemplo está relacionado ao colorismo, teoria criada nos anos 1980 pela escritora Alice Walker, segundo a qual quanto mais clara for a pele de uma pessoa, mais fácil será para ela ser aceita na sociedade – e o inverso acontece com quem tiver pele retinta.

De acordo com os moldes da estrutura social racista, quanto menos traços negros uma pessoa tiver e quanto mais clara for a sua pele, mais e melhor aceita ela será em diversos grupos. Ser negro é um crime apenas pela pessoa existir. E, à medida em que as características raciais forem mais fortes, menores serão os direitos que lhe serão concedidos.

Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) apontam que 46,7% da população se autodeclarava parda – esse patamar era de 45,3% em 2012. Para efeito de comparação, 7,4% do percentual populacional era de pessoas autodeclaradas pretas, ao passo que aumentou para 8,2% em 2016. Vale ressaltar que, de acordo com o IBGE, a categoria “negro” abrange pessoas pretas e pardas – nomenclaturas usadas pelo próprio instituto.

Em resumo: mais pessoas se autodeclaram pretas e assim o é na mesma proporção com pessoas pardas. Uma das interpretações possíveis é que mais pessoas se reconhecem como negras – a mesma coisa vale para pretas e pardas.

De acordo com Roger Cipó, fotógrafo, que pesquisa também a construção da imagem nas religiões de matriz africana, deve-se pensar na estrutura racista da sociedade, o que abrange a quantidade de melanina que a pessoa tem na pele – quanto mais retinta a pessoa for, maior será o nível de violência que ela sofrerá.

“Pelo racismo ser um crime estrutural, as questões de quem é mais ou menos retinto são colocadas de formas muito claras nessa estrutura. Isso significa que quanto mais escura a tonalidade de pele for, menos a pessoa será vista como humana e menos será vista nos diferentes espaços, o que passa pela invisibilidade das pessoas retintas”, explica Cipó, ao citar que o objetivo é fomentar a reflexão sobre o colorismo.

De acordo com ele, “quando a gente chama as pessoas mais claras a repensarem isso, não é um questionamento à negritude, mas é um olhar de reflexão para pensar as estruturas criadas pelo racismo nos distanciam e classificam. À medida que a gente escurece, a gente é diferenciado e ‘aceito’, mas de forma errônea.”

Juliana Gonçalves, jornalista e militante do movimento negro, considera que o debate sobre o colorismo é dolorido pelo fato de falar sobre diferenças entre pessoas negras, mesmo ao se considerar que pessoas negras tentam construir o próprio pertencimento enquanto povo, além de esse ser um conceito que fala sobre elas sob a perspectiva da construção social branca.

“Se o colorismo é cria do racismo e da branquitude, será que é possível fazermos esse debate necessário sem silenciar negros retintos ou destituir negros claros da sua negritude? Houve tentativas honestas, mas há limites de promover esse debate que precisa ser profundo e seguro na internet”, explica Juliana, ao enfatizar a tentativa de separação racial dentro do mesmo nicho. “Quando a gente percebe que há tentativa de hierarquizar dores, isso transforma-se, na maioria das vezes, em tentativa de colocar negros de pele clara e retinta em trincheiras diferentes. Isso, sim, é um problema.”

Os aspectos relativos à separação de pessoas negras em segmentos diferentes, em especial por causa da cor da pele, não é novidade – pelo contrário: trata-se de tática recorrente na história. Para se ter uma ideia, no início do século XVIII, Willie Lynch, proprietário de escravos no Caribe, escreveu carta dirigida a demais escravocratas sobre como manter pessoas negras submissas aos seus mandos e desmandos.

No documento, Lynch cita justamente a divisão entre negros como uma das táticas de dominação: “deveis usar os escravos mais velhos contra os escravos mais jovens e os mais jovens contra os mais velhos. Deveis usar os escravos mais escuros contra os mais claros e os mais claros contra os mais escuros. Deveis usar as fêmeas contra os machos e os machos contra as fêmeas. Deveis usar os vossos capatazes para semear a desunião entre os negros, mas é necessário que eles confiem e dependam apenas de nós.”

Diversos tons de opressão

Uma das lógicas do racismo estrutural abrange o determinismo social sobre quem pode ou não acessar determinados espaços, sejam para convívio, sejam de poder – universidades, cargos hierarquicamente superiores ou restaurantes, por exemplo.

Este tipo de separação, que chega até a remeter ao livro “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, por ser extremamente absurda, é estabelecido uma vez que esse padrão sociocomportamental faz parte de tentativa de embranquecimento populacional. O paralelo entre colorismo e a história da obra deve-se ao fato de que os personagens eram divididos em grupos sociais por motivos relacionados à aparência, diferença étnico-racial e pela construção sociocultural, havendo nítida distinção entre esses segmentos, que eram condicionados a servir quem estava no topo da pirâmide social.

“À medida em que a gente clareia [a pele], a gente passa a ser aceito em alguns lugares, mas é uma aceitação sob os moldes da estrutura branca. É uma aceitação com várias negações, que te pede brancura e para alcançar um lugar que não é um lugar desses corpos pretos, socialmente falando, pensando em uma sociedade racista. São lugares por direito à humanidade e à cidadania, mas em uma estrutura dessa”, ressalta Cipó.

Ainda que pessoas pretas com a pele mais clara tenham mais privilégios do que quem tem pele retinta, elas são aceitas dentro da lógica branca?

“Se o racismo é algo estrutural e se todos os negros padecem dele, ao mesmo tempo em que o privilégio é algo também que diz respeito à branquitude – o que não é negociável, pois é estático e fixo -, eu não posso dizer que essa vantagem circunstancial, que talvez uma pessoa de pele clara tenha, seja um privilégio que o aproxima da branquitude”, lembra Juliana, ao apontar para um aspecto importante: a construção socioeconômica da pessoa negra.

“Ser negro de pele clara não é ser menos negro, ou experienciar um racismo ‘light’, mas reconhecer que a pigmentação rende experiências com racismo distintas das experiências de negros de pele escura. O racismo é elemento estrutural atravessa todos os negros sem exceção e incide de maneira distinta dependendo do seu gênero, idade, classe social, território e tom de pele.”

Achou que os dados sobre a discrepância social de pessoas negras na sociedade acabaram por aqui? Achou errado. De acordo com pesquisa feita pelo jornal O Estado de São Paulo sobre as candidaturas das eleições de 2014, havia 701 candidatos pretos e o total agregado destinado às candidaturas foi R$ 55 milhões – média de R$ 78 mil por pessoa. Em contrapartida, havia 2.229 candidaturas de políticos pardos e o somatório do valor nas campanhas era de R$ 209 milhões, cuja média para cada candidatura era de R$ 93 mil por indivíduo.

No texto “Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão”, a intelectual Nilma Lino Gomes, ex-ministra da Seppir (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), traz à tona o porquê da inclusão de pessoas pretas e pardas na composição do grupo étnico-racial negro nos critérios estatísticos do IBGE e do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

Nesta obra, Gomes cita o sociólogo e especialista em questões raciais Sales Augusto dos Santos para explicar por que os dois grupos foram incluídos na categoria negra. De modo geral, é justificável fazê-lo “visto que a situação destes dois últimos grupos raciais é, de um lado, bem semelhante, e, de outro lado, bem distante ou desigual quando comparada com a situação do grupo racial branco. Assim sendo, ante a semelhança estatística entre pretos e pardos em termos de obtenção de direitos legais e legítimos, pensamos ser plausível agregarmos esses dois grupos raciais numa mesma categoria, a de negros.

Ainda de acordo o texto, “a diferença entre pretos e pardos no que diz respeito à obtenção de vantagens sociais e outros importantes bens e benefícios – ou mesmo em termos de exclusão dos seus direitos legais e legítimos – é tão insignificante estatisticamente que podemos agregá-los numa única categoria, a de negros, uma vez que o racismo no Brasil não faz distinção significativa entre pretos e pardos, como se imagina no senso comum.”

Além destes fatores, é importante levar em conta a educação que pessoas negras recebem, sem exceção – coincidência ou não, pautada nos moldes eurocêntricos. Como o conceito da branquitude é ensinado como um conceito padrão e que acaba sendo normatizado, reconhecer-se e reivindicar-se como pessoa negra acaba por ter carga social negativa.

“A gente está falando sobre consciência negra, que não é unanimidade entre boa parte do povo brasileiro, pois a maioria está sob prisma pautado pela televisão – e pensar em televisão é pensar na cultura hegemônica branca, que fala sobre o branco ser o ideal de beleza, pois quanto mais claro for, mais bonito será. Neste contexto, a família, que não tem consciência negra estabelecida, pode colaborar para a pessoa preta clara, inclusive, se reivindique ou não como pessoa preta”, lembra Cipó.

Dona Ivone Lara durante show com o Quintato em Branco e Preto.
Dona Ivone Lara durante show com o Quintato em Branco e Preto. Foto: Reprodução/Natalia Bezerra

A cor da representatividade

Faz algumas semanas que a escolha da cantora Fabiana Cozza para interpretar Dona Ivone Lara no musical biográfico “Dona Ivone Lara – Um Sorriso Negro” sobre a eterna autoridade do samba, falecida em abril deste ano, causou polêmica – e trouxe à tona o debate sobre o colorismo.

À época, foi apontado que a nomeação de Cozza, mulher negra de pele clara, para interpretar Dona Ivone Lara foi uma tentativa de whitewashing – em resumo: “embranquecer” a sua essência.

O caso, que é delicado por si só, pois traz à tona todas as nuances e sutilezas relacionadas ao tema, “furou” a bolha da comunidade negra e ganhou espaço na grande imprensa – e a repercussão, como se pode imaginar, foi pautada pela perspectiva branca da sociedade.

Fala-se em aspectos relacionados à afetividade, uma vez que Dona Ivone Lara e sua família gostavam de Fabiana – de acordo com familiares, elas eram muito amigas e se conheciam há mais de 20 anos.

Cantora Fabiana Cozza.
Cantora foi questionada ao interpretar Dona Ivone Lara em espatáculo. Foto: Reprodução/Fabiana Cozza (site)

Apesar do fator afetivo existente entre as partes envolvidas, pode-se dizer que é necessário uma mulher negra com pele retinta, semelhante à da eterna rainha do samba, interpretá-la.

“As pessoas que tomaram esta decisão foram insensíveis ao debate do colorismo na esfera da representação e da representatividade. No calor dessa discussão, não há cabimento Dona Ivone Lara ser interpretada por uma mulher de representação tão distante da dela. O resultado poderia ser embranquecimento e apagamento da negritude da Dona Ivone Lara”, completa Juliana Gonçalves.

“Embranquecer Dona Ivone Lara neste momento é não atentar ao fato de que ela foi uma mulher retinta e sofreu os traumas e toda a violência que o racismo estrutural reserva para pessoas de pele retinta. Em nenhum momento é uma questão contra Fabiana Cozza – a gente não discutiu a capacidade artística dela. A gente precisa discutir a capacidade que os grandes diretores de arte no Brasil têm de embranquecer nossas narrativas”, finaliza Roger Cipó.

  • Redação

    A Alma Preta é uma agência de notícias e comunicação especializada na temática étnico-racial no Brasil.

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