Estudo realizado por pesquisadoras brasileiras mostra a desproporcionalidade do impacto da pandemia no Brasil; mesmo em condições semelhantes, as mulheres pretas morrem mais que as brancas
Texto: Flávia Ribeiro | Edição: Nataly Simões | Imagem: EBC/Agência Brasil
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A mortalidade materna de mulheres pretas devido à Covid-19, o novo coronavírus, é quase duas vezes maior que a de mulheres brancas. Este foi um dos resultados do estudo “Impacto desproporcional do COVID-19 entre gestantes e puérperas no Brasil através da lente estrutural do racismo” (livre tradução), publicado originalmente na Revista Científica Clinical Infections Diseases, dos Estados Unidos.
Coordenado por pesquisadoras brasileiras da área da obstetrícia, o estudo analisa a planilha de domínio público do Sistema de Informação e Vigilância Epidemiológica (SIVEP Gripe), que incluiu os casos notificados de internação e óbito por Síndrome Respiratória Aguda Grave de Covid-19 no país até o dia 14 de julho.
Os pesquisadores analisaram dados de 1.860 mulheres grávidas e no pós-parto com informações completas no campo raça e comparam as informações das classificadas como brancas ou pretas, um total de 669. As mulheres pretas tinham idades médias semelhantes às mulheres brancas, contudo foram hospitalizadas em piores condições (maior prevalência de dispneia – falta de ar – e saturação baixa de O2), além de maiores taxas de admissão na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), ventilação mecânica e morte.
“Nossos resultados mostram que a mortalidade materna em mulheres negras devido ao coronavírus foi quase duas vezes maior que a observada em mulheres brancas”, afirma pesquisadora Débora de Souza Santos, professora da Faculdade de Enfermagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em entrevista ao Alma Preta.
A publicação analisa apenas mulheres pretas e brancas, excluindo pardas, sinalizando que pretas foram afetadas desproporcionalmente pela pandemia devido a processos originados fora do hospital. “No Brasil, a análise dos determinantes sociais de saúde e seu impacto na produção de iniquidade requer reconhecer o racismo e o sexismo como determinantes estruturais que conformam as piores condições de vida, acesso à saúde e oportunidades à população preta, em especial às mulheres pretas. Ao focarmos este grupo em particular, ampliamos a lente para a camada mais vulnerável, que se encontra na base da pirâmide social, em que a pobreza, violência, abandono, subempregos e demais efeitos cotidianos do racismo estrutural se acentuam no contexto de pandemia, resultando na chegada tardia aos serviços de saúde e em desfechos duplamente mais trágicos para as mulheres pretas”, explica a pesquisadora.
Os dados evidenciam que os fatores de risco clínicos comumente associados a pior prognóstico para Covid-19 não foram significativamente diferentes entre mulheres pretas e brancas, como idade, hipertensão arterial, diabetes, entre outros. As mulheres pretas estão sendo hospitalizadas em estados mais graves e morrendo mais, pois lutam, sem êxito, para conseguir entrar no sistema, conforme destaca Débora.
“Elas estão nas filas dos pronto-atendimentos, com falta de ar e esperando um atendimento que demora, sem transporte para chegar nos serviços especializados, sem rede de apoio social para ampará-las neste processo. A pandemia acentua as condições de vulnerabilidade e de solidão da mulher preta”, ressalta a pesquisadora, enfatizando que os resultados podem indicar “fortemente também o racismo institucional no interior dos serviços de saúde, definindo quem irá receber o melhor cuidado possível, a partir da cor da pele”.
A primeira morte
O primeiro caso de morte materna no Brasil foi o de Rafaela da Silva de Jesus. Ela tinha 28 anos de idade e morreu no dia 1 de abril, cinco dias após o nascimento de sua primeira filha. Notícias publicadas na imprensa mostraram que, à época, ela foi a vítima mais jovem da doença na Bahia, onde morava. Casada há sete anos, ela havia recorrido à fertilização para engravidar da primeira filha do casal. Negra, nordestina, estudante de Pedagogia, Rafaela corresponde exatamente ao perfil que os dados demonstram como tendo maior risco de morte. Ela não teve acesso à UTI.
Mães brasileiras são as que mais morrem
O estudo publicado pela Revista Científica Clinical Infections Diseases está relacionado a outro, chamado de “A tragédia da Covid-19 no Brasil”, que mostrou que no país ocorreram 124 das 160 mortes registradas no mundo, de mulheres grávidas e no pós-parto no âmbito da pandemia. Os dados consideram registros de fevereiro a 18 de junho. O segundo colocado eram os Estados Unidos, com 16 óbitos.
Coordenado pela equipe de pesquisadoras da área de obstetrícia de diversas universidades públicas do Brasil, da qual Débora faz parte. “A tragédia” foi publicada na International Journal of Gynecology and Obstetrics. “Os dados atualizados mostram que a situação está pior. O Brasil tem oito em cada dez mortes maternas de todos os países do mundo. Isso mostra que as medidas de prevenção e mitigação não foram tomadas”, resume uma das autoras do estudo, Melania Amorim, professora da Universidade Federal de Campina Grande, na Paraíba.
O mais triste da situação é que as mortes poderiam ter sido evitadas, conforme indica a pesquisadora. “Toda morte materna é uma tragédia que poderia ter sido evitada. Em geral, são três atrasos que determinam essa morte: o de procurar o serviço de saúde, o de chegar ao serviço e da resposta dada à situação da mulher”, comenta Melania, apontando que falhas graves no atendimento das gestantes brasileiras podem explicar a alta mortalidade.
A publicação revelou ainda que 978 grávidas ou puérperas foram diagnosticadas com Covid-19 entre os dias 26 de fevereiro e 18 de junho no Brasil. Dessas, 124 morreram. A taxa de letalidade entre as grávidas infectadas no Brasil é de 12,7%: a mais alta do mundo. Em termos comparativos, nos Estados Unidos, no mesmo período, 16 mães morreram, entre 8 mil diagnosticadas com Covid-19. “Houve mortes com fatores de risco associados, como problemas cardiovasculares e obesidade, mas houve mortes entre grávidas completamente saudáveis”, lamenta a autora do estudo.