Milhões de brasileiros participam, neste domingo (13), do primeiro dia de provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2022. Nos últimos anos, a proporção de pretos tem oscilado, mas continua como maioria. Em 2019, o número de inscritos confirmados foi de 5,1 milhões. Desses, 59,1% eram pretos. Já em 2020, a quantidade de participantes de negros e pardos subiu para 61,3%. Naquele ano, o Enem contou com 5,6 milhões de candidatos. No último ano, esse quantitativo caiu para 56,4% de um total de 3,1 milhões de vestibulandos. Neste ano, apesar do número ter voltado a cair para 54,8%, os estudantes pretos continuam representando a maioria dos quase 3,4 milhões de confirmados.
No total, de acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão que promove o exame, 3.396.632 candidatos estão confirmados para a edição deste ano. Destes, 54,8% (1.862.831 de inscritos) se autodeclaram pretos ou pardos, o que somam a maioria das candidaturas pretas tanto na versão impressa, quanto na digital. A Alma Preta Jornalismo conversou com especialistas para entender o que representam e qual o impacto desses números para a população.
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Segundo a professora e pesquisadora de Educação das Relações Étnicos-Raciais da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Rosely Tavares, a maioria no número de negros e pardos inscristos no Enem 2022 é um dado considerado positivo, já que o Enem se tornou o principal passaporte para a entrada do Ensino Superior no Brasil. Para ela, esse aumento provoca uma transformação das universidades, principalmente as públicas, e fortalece o combate ao racismo e discriminação.
“A universidade, além de um lugar de estudo e desenvolvimento de pesquisa, é um espaço também de ascensão social porque sabemos que representa uma melhor colocação mercado de trabalho, mas, acima de tudo, de ter essa população negra no Ensino Superior implica também tensionar esse lugar, sobretudo as universidade públicas, que historicamente são espaços ainda conservadores, de pessoas brancas, e tensionar as leituras os próprios autores, as pesquisas”, analisa.
Apesar da quantidade de pretos inscritos no Enem 2022 ser positiva, a especialista ressalta que é preciso analisar os dados com cuidado, visando também políticas que garantam a permanência dos estudantes negros no Ensino Superior. “Por fazer parte de um núcleo que faz um monitoramento das políticas de ações afirmativas, a gente vem buscando entender quem são essas pessoas depois que elas entram na universidade e, sobretudo, garantir a permanência delas. Garantindo isso, a gente promove, enquanto universidade pública, a continuidade dos estudos acadêmicos, tornando o ambiente mais plural com negros e pardos”, pontua Rosely.
Lei de Cotas Raciais
Umas das ações de políticas afirmativas no enfrentamento ao racismo implantadas pelo governo no Brasil que tem contribuído para este aumento de inscritos negros no Enem é a Lei de Cotas Raciais. Desde 2012, a legislação instituiu que 50% das vagas ofertadas pelas universidades públicas devem ser destinadas a estudantes pretos e pardos oriundos do Ensino Público. Para a pesquisadora Rosely Tavares, a sociedade ainda precisa entender melhor a importância dessa lei porque ainda existe um equívoco em sua interpretação.
“Na minha visão, a Lei de Cotas ainda é um curativo de uma ferida muito profunda. O equívoco se dá quando as pessoas ainda fazem uma leitura de que essa lei é privilégio do preto em detrimento do branco. Não é isso. A Lei de Cotas vem para fazer essa reparação, deixando a sociedade e esses espaços mais plurais, mas ainda há muito a se fazer nessa questão”.
“O aumento de pessoas negras oriundas da Lei de Cotas é uma realidade. Ela é fundamental, enquanto a gente não consegue resolver a ferida mais profunda. Ter os espaços mais plurais nos cursos de Direito, de Medicina, das Engenharias, no campo das Ciências Humanas e das Artes. Tendo essa população mais plural a gente também tem uma sociedade diversa em vários sentidos”, complementa.
Luta racial
O crescimento de inscritos pretos no Enem e, consequentemente nas universidades públicas, ainda pode ser analisado sob outra perspectiva. Professor da Universidade Estadual de Maringá, no Paraná, e diretor da Associação Brasileira de Pesquisadores/as e Negros/as, Deltan Felipe também considera os números positivos, mas evidencia que é preciso cuidado na avaliação dos dados porque os números são resultado da luta do movimento negro pelo reconhecimento das características dessa população, como formato de cabelo, cor de pele, no combate ao racismo.
O especialista explica que, muitas vezes, pessoas lidas socialmente como brancas se utilizam do sistema de cotas raciais para ocupar vagas destinadas aos pretos e isso não está estritamente ligado à fraude, mas porque essas pessoas negam o privilégio de ser branca por se identificarem com a luta racial.
“Precisamos tomar cuidado com essa discussão porque existe a negação do ser branco como sujeito de privilégios. Mesmo sendo lidos socialmente como brancos, muitas vezes até por se identificarem com a luta dos grupos de minoria, ele não quer se colocar como privilegiado. É um sujeito que se identifica como pardo porque é um mestiço. Aí, por exemplo, teve uma avó negra e hoje ele se coloca politicamente como negro, mas ele não é lido socialmente como negro”.
Deltan pondera que a problemática, nesse sentido, é ainda mais complexa. “A partir disso temos um problema porque necessariamente quem vai está ocupando ou tentando ocupar vaga em relação às cotas raciais são sujeitos que, apesar de serem pardos, são lidos socialmente como brancos. Temos que lembrar que o objetivo das ações afirmativas como as cotas raciais é para pessoas negras e pardas fenotípicamente, ou seja, as pessoas precisam carregar no seu corpo essas características. O fato de eu ter uma mãe negra não necessariamente me transforma numa pessoa negra. Posso ser um mestiço, mas ser lido como um sujeito da branquitude que não vai vivenciar o racismo”, complementa.
O pesquisador finaliza evidenciando que, apesar da discussão, o aumento de negros inscristos no Enem mostra o esforço da população preta no reconhecimento de suas características físicas. Para ele, isso, inclusive, ajuda a combater as políticas de branqueamento no Brasil. Por isso, é importante as comissões de heteroidentificação são importantes nesse processo para que as universidades não continuem visualmente tendo o mesmo perfil majoritário de pessoas lidas como brancas.
“Precisamos entender como é que a gente vai afinando a formação das bancas de heteroidentificação. Ainda é uma questão que precisa ser melhor estruturada. Se existem pessoas que se declaram pretas, pardas e que socialmente não são lidas assim, precisamos entender que fluxo é esse. As vezes pessoas levantam a bandeira da luta antirracista, mas será que esse discurso não reforça o ingresso dessa branquitude?”, reflete Rosely Tavares.
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