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Comunidade Quilombola Muquém: Herdeiros de Palmares

Única comunidade remanescente do Quilombo de Palmares, em Alagoas, Muquém é patrimônio da memória afro-indígena do Brasil. O barro é a fonte de renda de ceramistas que contam a história de um povo com as mãos 

Texto e imagens: Lenne Ferreira

IRINEIA11

25 de fevereiro de 2021

Os cabelos grisalhos são testemunhas da história que Irinéia Rosa Nunes molda com as mãos desde muito jovem. Moradora de Muquém, em  Alagoas, única comunidade remanescente do Quilombo dos Palmares no país, a artesã, com 74 anos, tem uma história que se entrelaça com o lugar onde viveram e ainda vivem outras mulheres fundamentais para a identidade cultural do Estado. Nomes como Maria das Dores e Marinalva Bezerra, que morreu no final de janeiro, tornando Irinéia a única ceramista patrimônio vivo em atividade na comunidade de Muquém, quilombola que fica aos pés das Serra da Barriga, terra onde foi erguido o Quilombo dos Palmares.

Conhecida por suas cabeças de argila que já viajaram para várias partes do mundo, Irinéia representa a descendência de uma geração de artesãs que são responsáveis por colocar Muquém no roteiro de turistas que chegam de várias partes do Brasil e do mundo. Quem vai visitar o Parque Memorial Quilombo dos Palmares, aproveita para conhecer a comunidade, que, desde 2005, ganhou o reconhedimento da Fundação Cultural Palmares como única remanescente direta do Quilombo de resistência instalado por escravizados fugitivos, no alto da Serra da Barriga. As terras de Muquém, no sopé da Serra, foram ocupadas há mais de dois séculos e conquistaram fama por causa do artesanato simples, de traços primitivos, produzido no local.

“Os mais antigos contavam que sobreviventes do Quilombo desceram a Serra e se amuquenharam por essas bandas daqui”, conta Maria das Dores, de 70 anos, para explicar a origem do nome da comunidade. Ela também é uma das ceramistas que atuam em Muquém, mesmo com algumas dificuldades inerentes ao avanço da idade. No terraço de casa, ficam armazenadas peças de argila como panelas diversas. Além de artesã, ela também trabalha com a criação de gado. No dia da visita da reportagem, estava com o braço machucado devido a uma queda causada por um garrote (boi de menor porte). Das Dores puxa pela memória para falar sobre a infância, quando tomava banho no Rio Mundaú, que fica no pé da Serra da Barriga e que, ao longo da história, teve papel fundamental para os moradores da região.

“Mundaú” é uma palavra Tupi que significa “água de ladrão” (junção de “mondá” – “roubar”, e ‘Y – “água”. O rio de tem a sua nascente em Garanhuns, no agreste pernambucano, e desemboca em Alagoas. É numa área às margens das águas onde as artesãs encontram a matéria prima para produzir suas peças de barro. 

RIO2A comunidade de Muquém precisou ser deslocada da beira do Rio Mandaú depois da cheia de 2010

O mesmo Rio que serve de fonte de vida por meio dos pescados e argila, já foi motivo de tristeza para o povoado de Muquém, que precisou ser deslocado em 2010, após a última grande cheia. Parte da cidade de União dos Palmares ficou debaixo da água e muitas casas foram arrastadas pela correnteza. A comunidade foi deslocada para uma área mais rural, por onde só se tem acesso via estrada de Barro. No período de chuva, a lama interfere na vida dos estudantes e moradores, que, muitas vezes, ficam sem transporte. “

“A gente ficou pendurado numa jaqueira até o rio baixar. Foi a nossa sorte”, lembra Das Dores, que é uma das 1000 pessoas que ficaram sem casa, comida e energia elétrica na época da enchente. A fase é relembrada com lamento por ela, que descende de uma família de mulheres ceramistas e sente saudade da antiga casa que, hoje, é só ruína. Um número de 142 casas foram construídas com dinheiro federal após um estudo detalhado feito Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. O projeto arquitetônico adotado foi adaptado para que a comunidade quilombola não sentisse tanto o impacto de ser retirado do seu ambiente natural.

O deslocamento resultou num distanciamenteo maior do centro urbano e se tornou um desafio para gente como Seu Aurélio, artesão de pouca fala, que aprendeu o ofício com a esposa Marinalva e que já não consegue dar conta da viagem. É a filha, Carmem Lúcia, 58 anos, quem faz o serviço de coleta num percurso de uma hora. “Às vezes, fura o pneu. Em tempo de chuva a estrada de barro dificulta muito”, conta ela.

A importância de Muquém já foi tema de mestrado. Na dissertação “Território e memória: uma etnografia na comunidade remanescente quilombola do Muquém em União dos Palmares – Alagoas”, do antropólogo Levy Felix Ribeiro. O material oferece um conjunto de informações sobre a identidade e formação do povoado que conquistou marcos importantes como o reconhecimento do seu território como representação da memória não só dos negros de Alagoas, mas do Brasil. 

“As ceramistas de Muquém são um grande atrativo turístico para União dos Palmares. Hoje, muitas pessoas procuram o turismo de vivência e contato com os costumes e saberes dos lugares. E a União dos Palmares é muito rico para quem quer ter essa experiência. Pessoas do Brasil inteiro procuram pelas peças de artesanato. Galeristas, arquitetos, artistas”, enumera a secretária de Turismo de União dos Palmares, Isabel Gomes. 

De acordo com ela, que também é funcionária efetiva do município, a atual gestão foi responsável pela valorização do território, o que é reconhecido pela comunidade local. Isabel afirma que Muquém é o único povoado quilombola que possui escola em tempo integral e posto de saúde. Apesar dos avanços, ela reconhece que o acesso ainda é um desafio que precisa ser superado. “Já estamos trabalhando no sentido de sensibilizar a gestão sobre a necessidade de pavimentação da estrada”, garantiu ela, que acredita que, até o final do ano, o projeto saia do papel.

Um só quilombo

DORES22Maria das Dores sobreviveu à cheia de 2010 graças a uma jaqueira, onde ficou pendurada até a água baixar

Em Muquém, o grau de parentesco entrelaça várias famílias. Maria das Dores é prima do marido de Irinéia, Antônio Nunes, que faleceu vítima da Covid-19. No dia da visita da reportagem, faziam alguns dias da morte do companheiro de ofício da ceramista. Mesmo sofrendo com artrose e dores na coluna, ela continua produzindo “vagarosamente” e conta com a ajuda de uma das filhas e do genro para dar conta das encomendas e visitas de turistas. Seus mais de 41 anos de história foram reconhecidos pelo título de Patrimônio Vivo de Alagoas, que garante uma bolsa mensal. 

“Deus me ensinou essa arte e foi maravilhosa para mim, né? Que eu nunca fui à escola, nunca estudei, mas aprendi graças a Deus. Eu comecei a fazer imagens para promessas. O pessoal encomendava. Era uma cabeça, um pé, uma mão, um coração, qualquer parte do corpo. Agora, não podia queimar”, conta Irinéia, que também contraiu Covid-19 e ficou internada, mas conseguiu se recuperar. “Atacou essa malvada que tá rolando no mundo atacou. Quase que eu viajava, mas Deus não quis aí tô aqui pra contar a história”. 

Além da escola e do posto de saúde e uma enorme oca coberta, onde são realizados eventos e feiras. O impacto da pandemia diminuiu o movimento, mas os turistas são muito bem recebidos pelas ceramistas que têm associação representativa. “Eu gosto muito quando vem gente de longe visitar”, contou Dona Marinalva, que para todos os afazeres domésticos para dar atenção e falar sobre sua história. A ceramista faleceu depois de complicações em decorrência de uma cirurgia intestinal no dia 28 de janeiro. Ela deixou uma família composta por muitos filhos e netos, além de admiradores locais.

MARI1Dona Marinalva deixa um legado de história e orgulho para Alagoas e todo Brasil 

“Era uma mulher simples, de um coração enorme, uma grande artista. A gente via que ela tinha prazer em fazer suas peças, receber os turistas e falar de sua história como mulher negra e guerreira. Perdemos muito, a cultura perdeu tudo com a morte dona marinalva, mas ela conseguiu deixar um legado muito grande. a guerreira de palmares. com sua alegria e seu jeito de acolher todo mundo cativava muito os turistas. Tinha muito orgulho de dizer que era de Muquém”, declara Cleiton Santanna, guia turístico há 13 anos, que atua na Secretaria de Turismo de União dos Palmares. 

Cleiton é natural de União de Palmares e começou a se interessar pela origem da cidade na juventude. “A história de resistência despertou o interesse e aí surgiu a oportunidade atuar na área de Turismo”, comenta ele, que recebe comitivas de visitantes. Além da atração principal, o Memorial Quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga, Cleiton faz questão de incluir o Muquém na rota. “A maioria das vezes eles só sabem sobre a existência da comunidade quando chegam aqui e ficam encantados com o artesanato que não existe em mais nenhum outro lugar do mundo”.  

Para o cientista político e integrante do Instituto Negro de Alagoas (INEG), Carlos Martins, União dos Palmares guarda parte importante da história do negro no Brasil e Muquém é parte desse acervo que torna concreto o legado dos palmeirinhos na região.  “A Comunidade do Muquém é a representação simbólica da materialização do Quilombo dos Palmares. Se a gente entende que ali era o centro administrativo do grande império de Palmares a gente tem em Muquém o resultado é resquício evidência de que Palmares existiu ali”. 

O futuro do artesanato de Muquém começa a preocupar agentes locais, que temem pela interrupção da tradição com a morte das ceramistas mais antigas e experientes. Atualmente, apenas oito ceramistas produzem ativamente na comunidade. “A comunidade precisa de mais reconhecimento para que as gerações mais jovens se sintam mais estimuladas a seguir a tradição dos mais velhos”, pontua Cleiton. Apesar do receio, ele sabe e quem visita a comunidade também: o legado do Quilombo dos Palmares, Marinalva, Irineia, Maria das Dores e todas as ceramistas que moldaram a história de Muquém permanecerá vivo.

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