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Racismo é central para entender a política de guerra às drogas, aponta Conferência Internacional

23 de novembro de 2017

Encontro contou com a participação de figuras nacionais e internacionais que se debruçam sobre o tema da política de drogas e do racismo. Ao fim, lançou-se uma campanha para 2018, em recordação aos 130 anos da abolição da escravatura


Texto /
Pedro Borges e Solon Neto

Imagens / Solon Neto e Vinicius Martins

A Conferência Internacional “As Fronteiras Raciais do Genocídio” ocorreu entre os dias 16 e 18 de Novembro, na Companhia de Teatro Pessoal do Faroeste, rua do Triunfo 301, no bairro da Luz, em São Paulo-SP. O evento foi organizado pela Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas (INNPD), organização que aponta para a política de guerra às drogas como a principal justificativa para a continuidade do genocídio negro no Brasil.

As atividades se iniciaram no dia 16, à noite, quando Dennis de Oliveira, chefe do departamento de jornalismo da ECA-USP, Pedro Borges, co-fundador do portal Alma Preta e integrante da INNPD e Junião Junior, da Ponte Jornalismo, apresentaram a pesquisa “Narrativas brancas, mortes negras”, um estudo acerca da cobertura da Folha de S. Paulo sobre as rebeliões ocorridas no início de 2017, no sistema carcerário brasileiro, nos estados de Manaus, Roraima e Rio Grande do Norte, quando 119 pessoas perderam a vida.

Com a mediação de Dina Alves, doutoranda em direito penal, também participaram do diálogo os estadunidenses Neil Franklin, agente de segurança com 34 anos de experiência em law enforcement (aplicação da lei) na polícia do Estado de Maryland e no Departamento de polícia de Baltimore, e Andrea James, integrante da Comissão de Saúde Pública de Boston da Divisão de Prevenção à Violência.

Neil Franklin afirmou que saindo da força policial passou a fazer parte da “solução” no combate à guerra às drogas (FOTO Vinicius Martins)

Os números apresentados mostram uma grande desproporção entre as fontes oficiais, aquelas que representam os órgãos do governo, e as disruptivas, compostas por pesquisadores e pelos movimentos sociais.

Os pesquisadores acreditam que esses números comprovam a parcialidade do jornalismo, e a falta de procedimentos objetivos para construir uma reportagem que escute e aprecie os diferentes envolvidos nos fatos.

O material também mostrou que a palavra “negro” foi utilizada por uma única vez durante a cobertura, em entrevista concedida pelo juiz Luis Carlos Valois, uma das figuras que acompanhou o desdobramento das rebeliões em Manaus.

A não utilização da palavra negro, de acordo com os pesquisadores, mostra a concepção de racismo adotada pela Folha de S. Paulo, próxima daquilo que os professores Kabenguele Munanga e Nilma Lino Gomes, bases da pesquisa, descrevem como preconceito e discriminação racial.

O racismo fica evidente na medida em que a grande maioria dos presos nos estados em questão são negros, e que a super-representação de negros no sistema carcerário é uma das demonstrações mais cruéis do racismo e do genocídio negro. O material completo da pesquisa será divulgado em breve.

Experiências pessoais e ativismo

No dia 17 pela manhã, pesquisadores, ativistas do movimento negro e antiprobicionista, e coletivos de mídia, comunicação e política das periferias da cidade de São Paulo e do Brasil fizeram uma discussão sobre como a política de guerra às drogas atravessa a vida dessas pessoas.

Para além disso, os participantes também reforçaram a necessidade de colocar no epicentro da discussão sobre política de drogas o racismo e o machismo, marcas estruturantes da sociedade brasileira.

A pesquisa “Narrativas brancas, Mortes Negras” revelou uma cobertura enviesada do Jornal Folha de São Paulo. Na foto, o jornalista Pedro Borges apresenta os resultados (FOTO: Solon Neto)


À tarde, financiadores nacionais e internacionais conversaram com as mesmas iniciativas que participaram do diálogo no período da manhã. Os fundos explicaram aos participantes quais são os problemas recorrentes nas organizações que pleiteiam investimentos, e apresentaram suas linhas de financiamento.

Os grupos e ativistas também descreveram quais são as dificuldades encontradas no momento de pedir financiamento. Uma delas é a barreira da língua, na medida em que algumas organizações são internacionais e sediadas em países de língua inglesa, e outra é a burocracia e a exigência de documentos, problemas encontrados por conta da informalidade dos grupos.

A abolição inconclusa e a política de guerra às drogas

“Brasil: 130 anos da abolição inconclusa e relações com a guerra às drogas” foi o tema da abertura oficial do seminário, no dia 17 de Novembro. Vilma Reis, ouvidora da defensoria pública do Estado da Bahia, Silvio Almeida, presidente do Instituto Luiz Gama, Emiliano Camargo, Instituto AMMA Psique e Negritude, Neil Franklin, Polícia do Estado de Maryland e o Departamento de Polícia de Baltimore (EUA), Jasmine L. Tyler, Diretora de Advocacy do Programa dos EUA da Human Rights Watch (HRW), discutiram os diferentes faces da política de guerra às drogas. A mediação ficou por conta de Dudu Ribeiro, coordenador da Iniciativa Negra por uma Política sobre Drogas (INNPD).

Vilma Reis destacou a importância da produção de conhecimento da comunidade negra, e em especial das mulheres negras, para a superação do problema. Silvio Almeida descreveu as implicações econômicas do racismo no país e da política de guerra às drogas, enquanto Emiliano Camargo apontou para o impacto do racismo e da guerra às drogas na construção da subjetividade de negras e negros.

Jasminne Tyler
Jasmine Tyler durante uma de suas falas (FOTO: Solon Neto / Alma Preta)

Jasmine Tyler mostrou como nos EUA há uma seletividade racial e de gênero na aplicação da política de guerra às drogas, na medida em que há um encarceramento desproporcional das pessoas negras, e que há um maior peso para as mulheres negras encarceradas. Neil

Franklin fez uma reflexão, a partir da sua bagagem política atual, da prática de sua carreira como policial. Ele diz que na época não sabia que as ações focadas nos territórios negros e o aprisionamento dessas pessoas era, na verdade, uma manifestação do racismo.

O último dia de atividades

O início das atividades aconteceu com a discussão “Fronteiras culturais do genocídio: epistemicídios e rearticulações das resistências negras nas manifestações político-culturais”, que ocorreu das 10h às 12h30. Allyne Andrade mediou a conversa com Juliana Borges, pesquisadora em antropologia, Tadeu Kçula, pesquisador em sociologia, Pai Rodnei de Oxóssi, pesquisador em antropologia, Márcio Macedo (Kibe), pesquisador em sociologia.

Cada um dos convidados tem uma ligação próxima com manifestações culturais da comunidade negra e apresentaram como essas produções são marginalizadas e atacadas por motivações racistas, ao mesmo tempo em que se transformaram em símbolos de resistência na luta contra o genocídio.

Juliana Borges se debruça sobre as festas organizadas pela juventude negra, em especial aquelas realizadas nos dias de hoje e marcadas pelo movimento “tombamento”. A pesquisadora acredita ser impossível deslegitimar o poder político dessas festas. “Quando uma pessoa negra escolhe ir nesses espaços porque sabe que lá vai encontrar seus iguais, isso é um ato político”, afirma.

 

A pesquisadora Juliana Borges falou de sua experiência na INNPD (FOTO: Vinicius Martins / Alma Preta)

Muito anterior às festas black, uma das principais expressões de resistência da população afro-brasileira e de manutenção da história de negras e negros em África e no Brasil, o candomblé foi explicado por Pai Rodnei de Oxóssi.

Ele conta das dificuldades de se praticar a religião hoje no Brasil, e conta que alguns terreiros são cobertos por lonas como forma de defesa daqueles que participam dos rituais. As coberturas servem de forma de defesa contra o arremesso de pedras e outros objetos por parte dos vizinhos.

Tadeu Kçula, ex-presidente da Escola de Samba Camisa Verde e Branco, uma das mais tradicionais do samba de São Paulo, e hoje pesquisador da música e da resistência negra dentro dela também relatou como as escolas de sambas ajudaram a manter preservada a memória de resistência de negras e negros.

“Escola de samba também é um espaço pensado como um espaço de inclusãoo social dessa população negra que está fora do projeto de criação da sociedade brasileira. A Escola de Samba, os clubes negros, muitos times de futebol de várzea que reuniam as suas famílias ali aos finais de semana para poder não apenas participar de atividades esportivas mas para poder realizar outros tipos de ensinamentos”.

O Hip Hop e mais especificamente o rap foram representados pelo professor da FGV-SP e pesquisador em sociologia, Marcio Macedo. Ex-rapper, quando receber o apelido de Kibe, Márcio contou como o Hip Hop serviu como forma de resistência para a juventude negra enfrentar a violência policial na cidade de São Paulo.

“O primeiro momento do Hip-Hop em São Paulo começa por volta dos anos 1980, 1983 e se estende até 1989, é um ano que é marcado pela presença do Hip-Hop e as gangues de break, e em um segundo momento o breakdance, uma dança que identifica o Hip-Hop […] Mas as gangues de break vçao para as ruas, e vão para quais ruas? Para o centro. O centro da cidade é um território marcadamente negro em São Paulo”

Marcio Macedo (à direita) apresentou a influência do Hip-Hop na construção da identidade negra nas cidades (FOTO: Solon Neto / Alma Preta)

À tarde, a “Guerra às Drogas e criminalização dos territórios pobres: vidas caras no alto custo da ‘Paz social’” foi debatida por Monique Cruz, Justiça Global, Enderson Araújo, Movimentos, Jasmin Tyler, Human Rights Watch, e Ana Gonzalez (Coletivo de advogados afrocolmbianos).

Monique Cruz contou sobre as violações de direito que tem ocorrido no Rio de Janeiro e inclusive das recomendações dadas a mulheres e homens negros durante a abordagem policial, para que não discutam ou tentem enfrentar os agentes de segurança. “Infelizmente, são os nossos que morrem nessas situações”, conta.

O Movimentos, grupo o qual Enderson Araújo faz parte, foi melhor apresentado ao grupo. A organização é composta por jovens das periferias de Salvador e do Rio de Janeiro, as principais vítimas da política de guerra às drogas, que pesquisam e discutem o tema.

Recentemente, o Movimentos apresentou ao público uma cartilha explicativa, com números que colaboram a acabar com os mitos existentes em torno da política de guerra às drogas.

Jasminne Tyler apresentou uma pesquisa que fez no estado de Oklahoma, região conservadora e de maioria do Partido Republicano. Um dos seus objetivos era conhecer melhor a política de segurança pública do estado e ver quais eram as pessoas paradas e revistas pela polícia.

“Nos Estados Unidos nós também sofremos com a execução extrajudicial de mulheres afro-americanas e crianças. Então essa é uma questão com qual nós estamos também muito preocupados”, afirma.

Já Ana Gonzalez usou sua fala para explicitar o racismo sofrido pelo povo negro afro-colombiano. Ela também apontou como na Colômbia o povo negro é afetado pela guerra às drogas, além de contar sobre os efeitos do prcoesso de paz arquitetado entre o governo federal e as FARC recentemente.

Discussão internacioanal e compromisso contra a guerra às drogas

O fechamento das atividades foi feito com o debate “Perspectivas Raciais para uma Nova Política de Drogas”, que contou com a participação de Miriam Duarte, Mães de Maio, Dionna King, Drug Policy Alliance, Ingrid Farias, Rede de Feministas Anti-proibicionistas, Nathalia Oliveira, coordenadora da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas. A mediação foi feita por Nadja Carvalho, Rede de Feministas Anti-proibicionistas.

Reunião entre conferencistas de diversos países da América apresentou os problemas raciais do Brasil e discutiu ações conjuntas (FOTO: Solon Neto / Alma Preta)

Miriam Duarte relatou as dificuldades enfrentadas e a dor das mães que têm seus filhos presos ou assassinatos no país. Ela contou da dificuldade que tem para visitar seu filho, agora preso em um município distante de São Paulo. Para além da alta taxa das passagens, diz tem uma dificuldade no joelho, o que a impede ficar longas jornadas sentada.

A fala de Dionna King, gerente de políticas no Escritório de Políticas de Nova York da Drug Policy Alliance (DPA), discorreu sobre sua atuação na campanha de justiça reparadora dos danos causados pela guerra às drogas no estado de Nova York, nos Estados Unidos. Ela explicou como a ação do departamento no estado pôde reduzir o impacto da política de Estado em relação à população negra, apontando como a política de drogas americana foi criada pensando na criminalização desse grupo racial. Lembrou também a crise de opióides nos Estados Unidos e como os afetados serem de maioria branca causa um estranhamento em relação a essa política.

Ingrid Farias, coordenadora da RENFA, detalhou o trabalho desenvolvido no Estado de Pernambuco, na cidade de Recife, com mulheres vítimas da política de guerra às drogas, seja por conta do abuso policial ou pela violência sexista existente no Brasil.

Pai Rodnei de Oxóssi discutiu a crescente intolerância religiosa com as religiões de matriz africana no Brasil (FOTO: Solon Neto)

Acima de qualquer coisa a nossa luta é uma luta por autonomia, autonomia dos nossos corpos. Mas não só a autonomia para uso de drogas. Na RENFA, a gente tem pensado e tem dialogado a luta pela reforma da política de drogas a partir de uma perspectiva intersseccional.

Já Nathalia Oliveira, uma das organizadoras do evento, apresentou as ações realizadas pela INNPD, e o compromisso de respeitar o debate em relação ao racismo. Ela lembrou que era comum que espaços de maioria branca incluíssem a ela e seus colegas como uma espécie de cota, por serem negros, quando o debate era relacionado à política de drogas. Por isso, a INNPD resolveu tomar caminhos diferentes, como a própria Conferência, com mesas de maioria negra, além de equipes de trabalho também negras.

“A gente teve muita dificuldade em encontrar qual era o caminho político da Iniciativa Negra enquanto uma experiência de rede, porque a gente sempre teve muita convicção que a gente queria fazer essa discussão com muita responsabilidade política sobre todas as pessoas que a gente apresentava”. Porque a gente sabia, e a gente entendia, que fazer um debate consequente sobre o racismo não poderia ser uma coisa apenas de auto-construção, uma coisa que servisse apenas para que virasse síntese dos nossos próprios mestrados, das nossas próprias produções científicas”, afirmou em referência ao exposto anteriormente.

Nathalia Oliveira, da INNP, afirmou que o compromisso da organização tem sido de não reproduzir práticas preconceituosas contra negros em suas ações (FOTO: Vinicius Martins / Alma Preta)

A mesa foi encerrada por Eduardo Ribeiro, coordenador da INNPD, que agradeceu a presença de pessoas do Brasil todo e diversos países da América, como Estados Unidos, Uruguai e Colômbia. Ele realizou a leitura de um carta de conclusão sendo muito aplaudido. Um dos trechos da carta dizia:

“Observamos melhor através da história as diferentes políticas utilizadas para naturalizar o genocídio negro no continente africano e em todo território da diáspora. No Brasil vimos a perseguição das expressões culturais da comunidade negra, das religiões de matriz africana, do samba, do Hip-Hop, do Funk, entre outros. Percebemos que as desculpas vão se modificando ao longo do tempo e hoje se materializam na falaciosa política de guerra às drogas, e apesar das mudanças, mantém um ponto em comum: o racismo e o projeto do genocídio negro”.


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