As mulheres desenvolveram um papel fundamental de liderança e articulação na revolução Haitiana (1791 – 1804). Leia o texto escrito pela ativista do movimento negro, Tatiane Ribeiro.
Texto / Tatiane Ribeiro
Imagem / Reprodução
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A Revolução Haitiana como ficou conhecida foi um levante feito por Africanos escravizados que culminou no processo de independência e abolição da escravidão no oeste da ilha de São Domingos (Saint-Domingue) que na época era uma colônia francesa. Apesar da revolução ser datada durante os anos de 1791 a 1804, com 12 anos de luta intensa, é importante destacar que os Africanos escravizados nunca aceitaram a condição de escravo e muito parecido com o processo aqui no Brasil, eles resistiram e através da fuga formavam comunidades pretas-livres como os Quilombos, esses foram os Maroons (Maroons são Africanos e seus descendentes que conseguiram fugir da escravidão nas Américas e criar comunidades independentes, termo utilizado em países caribenhos, equivale aos nossos Quilombolas) e é através dessa resistência que um escravo liberto conhecido como Vicent Ogé que presenciou na França a revolução francesa “liberdade, igualdade e fraternidade” lidera um levante armado contra os brancos na ilha que teve muita adesão:
“Numa primeira série de operações que durará um mês, os escravos destroem tudo. Como labaredas sobre a palha seca, as palavras de ordem ‘morte aos brancos’ ganham as planícies. Chegara o momento há muito esperado. Nas fazendas as senzalas sabem o que fazer. Em poucas semanas de luta, os insurgentes chegam a mobilizar mais de cem mil combatentes.” [1]
Esse levante antecede a revolução do Haiti, e entre esses combatentes de Vicent Ogé estava Toussaint Louverture que lidera a revolução que começa após a morte de Ogé, a captura e morte do líder do levante serviu para inflamar a luta dos pretos pela liberdade. Toussaint ao assumir o posto de líder da inicio a revolução em 1791: “Irmãos e amigos. Eu sou Toussaint Louverture; talvez meu nome seja conhecido de vós. Eu empreendi a vingança de minha raça. Eu quero que a liberdade e a igualdade reinem em São Domingos. Eu trabalho para que isso aconteça Uni-vos irmãos e combateis comigo pela mesma causa. Arranquemos pela raiz a árvore da escravidão. Vosso muito humilde e obediente servo. Toussaint Louverture, General do exército do rei, pelo bem do povo.” [2]
A partir desse momento, liderados por Toussaint L’Ouverture, os Haitianos continuam bravamente sua luta pelo fim da escravidão e por sua liberdade, derrotando os senhores de escravos da ilha, 60 mil soldados enviados pela força inglesa e também derrotaram os 43 mil soldados do exército francês de Napoleão Bonaparte, que era tido como o melhor exército, o invencível. Toussaint é preso e morto em 1803 pelos franceses e seu guerrilheiro Jean Jacques Dessalines assume a liderança e conduz o povo a vitória, e em primeiro de janeiro de 1804 declara a Independência da Ilha de São Domingos, que passa a se chamar AYITI (em português: Haiti) a primeira Republica-Nação Preta fora da África. Apesar da revolução do Haiti ter sido uma revolução composta por homens e mulheres, em conjunto, a historia “apagou” as mesmas, que em grande medida foram tão importantes como Toussaint e Dessalines, e tiveram um papel fundamental na revolução desde seu inicio… Mas, quem foram essas mulheres?
Cécile Fatiman era uma Mambo, que significa uma sacerdotisa ancestral do culto aos Lwa –ou- Loa, mais conhecido como voduns, Vudu era a religião dos Africanos levados para o Haiti, ou como costumavam chamar “religião ancestral do Haiti”. Cécile ao lado de Dutty Boukman foi responsável pela cerimônia mais importante do Vodu na história do Haiti, que foi a cerimônia Bwa Kayiman ou Bois Caiman de agosto de 1791, na qual todas as pessoas presentes se comprometeram com a luta pela liberdade, e todos ali tinham a missão de se vingarem de seus opressores franceses dando inicio assim a revolução do Haiti, que após uma semana 1800 plantações já tinham sido destruídas e 1000 proprietários de escravos mortos. Cecile Fatiman não participou ativamente da revolução ou lutou na batalha, mas foi sua orientação espiritual e poder ancestral que levou outros Africanos escravizados a lutar, tendo assim um enorme impacto na revolução, e é altamente respeitada pelo seu povo.
Os Haitianos ainda hoje prestam homenagem a ela e a outras pessoas revolucionarias participando da tradição de comer Soup Joumou (em português: sopa de abóbora) no dia do Ano Novo como uma homenagem aos escravizados recém-libertados que comeram a sopa proibida anteriormente no primeiro dia da independência.
Suzanne Sanité Bélair, descrita como a Tigresa da Revolução era uma afranchi (pessoa preta livre) que participou ativamente na luta contra a escravidão, ela serviu ao exército de Toussaint L’Ouverture como sargento e devido a suas habilidades e conquistas tornou-se uma tenente liderando a maioria das batalhas em sua cidade natal, L’Artibonite e responsável pelo levante de quase toda a população escravizada, contra seus senhores de escravos.. Ganhou ainda mais destaque ao participar do confronto com o exército de Napoleão. Infelizmente Bélair é capturada pelos franceses e em 5 de outubro de 1802 é condenada à morte por decapitação e mesmo diante a morte ela manteve sua bravura e se recusou a por a venda e em seu ultimo ato – “Ela gritou para o seu povo “Viv Libète anba esklavaj!” – (“Liberdade, não para a escravidão!”)” [3]
Suzanne Sanité Bélair é tida como uma Heroína da revolução Haitiana e em 2004, apareceu na nota de 10 gourde, para a série comemorativa do “Bicentenário do Haiti”.
Marie Jeanne Lamartiniere foi uma soldada durante a revolução haitiana, uma mulher forte e feroz que foi responsável por conduzir e inspirar outros soldados em um dos confrontos mais importantes, conhecido como a batalha de Creta a Pierrot que ocorreu entre 4 de março a 24 de março de 1802 onde combateram o exército francês que contava com mais de 12.000 homens, suas armas eram sua espada e um rifle, foi assim que no momento crucial da batalha, Marie Jeanne toma a frente, e conduz a vitória. Após esse confronto, ela passa a ser a chefia da segurança de Dessalines, segundo relatos, a única vez que Dessalines correu risco de morte foi quando ela não estava no comando. Ela é tida como mais uma heroína da revolução Haitiana, e é homenageada no selo postal do ano de 1954.
Marie Sainte Dédée Bazile, conhecida também como Défilée-La-Folle, foi uma Africana escravizada que ao ser estuprada pelo seu senhor desenvolveu um transtorno mental aos 18 anos, e esse foi um dos motivos que ela apresentou para se juntar a revolução, ela passou a servir ao exército de Dessalines onde marchava ao lado dos soldados os fornecendo armamentos e munições, ao decorrer de suas funções na luta viu seus filhos serem mortos pelos franceses o que agravou ainda mais o seu transtorno, ela é lembrada como uma “mulher da guerra, coração indomável que tinha um gosto pela aventura (…) amava convulsões revolucionárias e mostrou os soldados de independência benevolência de uma heroína.”(4)
Dédée é tida como mais uma heroína da revolução Haitiana e lembrada por todos por ter recuperado os pedaços do corpo de Dessalines que foi esquartejado.
Henriette Saint Marc foi uma espiã e traficante de armas para o Exército de Toussaint durante a revolução, por ser considerada uma mulher bonita e muito atraente, a qual os soldados franceses não resistiam, ela usava dessa sua estratégica de seduzir tendo a missão não somente vigiar os soldados franceses como também roubar suas armas e suas munições. Ela foi fundamental para a revolução haitiana, não somente por suas informações e fornecimento de armas, mas também por ser responsável pelas emboscadas feitas para matar os soldados franceses. Ela foi presa e imediatamente condenada a pena de morte, o que causou uma revolta ainda maior entre os escravizados.
Ela é Homenageada com a Ecole Henriette Saint-Marc – Escola Henriette Saint-Marc, sendo também mais uma das heroínas da revolução Haitiana.
Marie Claire Heureuse Felicité Bonheur durante a revolução atuou como enfermeira, cuidando dos feridos e salvando muitas vidas, ela foi responsável por liderar uma procissão de mulheres e crianças com comidas, roupas e remédios para atender cidades sitiadas, como aconteceu com Jacmel em 1800 (Cerco de Jacmel) para além de suas ações como enfermeira, Félicité também trabalhou no campo da educação onde aconselhou e ensinou o seu povo a ler e escrever. Durante 1804 a 1806 ela foi a Imperatriz do Haiti ao lado de seu marido Dessalines.
Ela é Homenageada com a Fondation Marie Claire Heureuse Félicité Bonheur Dessalines – FONDATION FELICITE (FF), fundação que atua mais de 13 anos no Haiti desenvolvendo vários programas envolvendo a luta de Felicité, como educação alfabetizando adultos e crianças.
Catherine Flon foi mais uma das heroínas da revolução Hatiana e assim como Marie Claire também prestou serviço de saúde, sendo enfermeira dos guerrilheiros, mas é lembrada por todos por ter costurado e dado vida a primeira bandeira do Haiti, a bandeira do Haiti teve um significado racializado, onde o vermelho + azul representava a união entre o povo preto, entre os ainda escravizados e os que já eram “libertos” tido com um símbolo da revolução, abolindo implicitamente escravidão e repressão.
Catherine Flon é homenageada em uma nota 10 Gourdes e também em muitas escolas do Haiti.
As mulheres estiveram lado a lado de seus homens e crianças na luta pela libertação de seu povo, e a historia do Haiti é repleta de mulheres que como em Africa (a população escravizada do Haiti era majoritariamente nascida em Africa e não na diáspora Africana, o que fez com que culturas, a maneira de se organizarem e a construção de sociedades africanas estivessem mais vivas) assumiram a linha de frente do combate como podemos notar nas guerreiras Ahosi (ou Mino) conhecidas como as guerreiras de Daomé, as Candaces, entre outras que destaca o legado do matriarcado africano. Assim, as mulheres do Haiti surgem dessa linhagem e mantém presente a luta ancestral das mulheres africanas, que já existiam e estavam em movimento muito antes de qualquer ideologia criada pelo ocidente. Que possamos conhecer, exaltar e honrar o legado de todas essas mulheres, e construir nosso movimento a partir de nossas referencia.
Assim como Cécile Fatiman, Suzanne Sanité, Marie-Jeanne Lamartiniere, Dédée Bazile, Henriette Saint Marc, Félicité, Catherine Flon, a historia do Haiti é composta por grandes mulheres como Brigitte, Concubina de Rodet, e todo o movimento de mulheres envenenadoras (que foram, como conhecemos “escravas da casa” que ao alimentar seus senhores os envenenava e possibilitava a fuga de outros escravizados)
Referência:
[1] Dossiê Haiti – Ailton Benedito de Sousa
[2] Discurso de Toussaint, livro: La colonie française de Saint-Domingue: de l’esclavage à l’indépendance
[3] Livro: Os Jacobinos Negros – CLR James
[4] Memória Mulheres. Port-au-Prince: UNICEF HAITI
Material de apoio:
Liberdades Revolucionárias: Uma História de Sobrevivência, força e imaginação no Haiti – Elmide Meleance . Estudos Caribenhos Press. 91-94.