“Nós não somos historiadores estritamente acadêmicos. Nós precisamos nos posicionar politicamente. Vamos caminhar até onde o racismo nos deixar”. É o que diz a historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto sobre a ocupação da imprensa por profissionais da história, que ocorreu na semana de 20 de novembro, marcada pelo Dia da Consciência Negra.
Cansados de ver a história do povo preto ser contada por meio da narrativa branca, a Rede HistoriadorXs NegrXs pensou em fazer diferente na data e passou a mobilizar a imprensa nacional, a fim de conseguir um espaço para falar sobre os assuntos pertinentes.
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“A proposta caiu na rede e surgiu a questão: quem é que se voluntaria para escrever? É um período muito complicado, com muitos compromissos. Mas muita gente se dispôs e chegamos a uma lista com 34 pessoas, em que formamos o grupo da ocupação”, explica a historiadora Patrícia Melo.
Com o apoio de veículos da imprensa nacional, os historiadores, segundo Patrícia, passaram a elaborar como seriam os artigos publicados. Ao todo, 31 veículos de todo o Brasil abraçaram a ideia de publicar os textos, que somaram 45 publicações por enquanto.
“Montamos uma agenda para a recepção dos textos e eles começaram a chegar. Foram dias intensos de trabalho. Construímos uma relação muito respeitosa e afetuosa entre os historiadores”, comenta.
Construção
Ana Flávia acredita que o mês de novembro não deve apenas ressaltar Zumbi dos Palmares, mas, sim, trazer à tona a grandiosidade que é a história negra e da diáspora africana. Os temas foram baseados em quatro eixos: HistoriadorXs NegrXs como sujeitos fundamentais e inovadores do debate público sobre a sociedade brasileira; o ineditismo e o efeito político e historiográfico dessa ação coletiva de impacto nacional; a marca dos 50 anos do 20 de novembro como símbolo de luta negra contra a o apagamento da sua história; e a História que a nossa História já conta: múltiplas histórias de pessoas negras em níveis local, nacional e transnacional, considerando diversidade de gênero.
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Já a construção desses textos, segundo a historiadora Mariléa de Almeida, partiu de pesquisas sobre as vidas negras. Ela conta que os historiadores tiveram a liberdade de descrever as histórias que não foram contadas no decorrer dos anos e a oportunidade de que profissionais antirracistas abordassem as temáticas é o que trouxe valor ao trabalho.
“Foi desafiador trabalhar esse tipo de escrita, pois precisávamos garantir a complexidade das narrativas, mas que atingisse as pessoas”, pondera Mariléa.
O historiador Emílio Ribeiro pontua que a ideia dos historiadores foi respeitada em cada texto. Mesmo quando os materiais enviados foram enxugados, por ultrapassar o limite de tamanho exigido pelos veículos de imprensa. O profissional ressalta que foi importante perceber que os intelectuais puderam se reinventar para escrever outras coisas fora do ambiente acadêmico.
“A gente está na academia, mas também dialoga com outros ambientes. Precisamos dialogar com outros públicos para construir e ampliar o conhecimento geral sobre a história, sobretudo, a respeito do racismo”, avalia Emílio.
Repercussão
“Estamos com a impressão de que vivemos hoje um segundo levante. A partir da ocupação, outras pessoas se mostraram dispostas a colaborar com a Rede de HistoriadorXs NegrXs”, ressalta Mariléa de Almeida.
Ana Flávia comenta que o objetivo era mobilizar todos os tipos de veículos, sejam eles segmentados com a temática racial, ou até mesmo do meio corporativo, mas o que viria depois da ação era desconhecido pelos historiadores da rede.
“A primeira coisa que nos surpreendeu foi que, em alguns espaços, a gente recebeu o convite para seguir com as contribuições nesses jornais, até de maneira remunerada em alguns locais. Dentro da universidade, um espaço de visibilidade como este não nos é apresentado”, pondera Ana Flávia. “Agora é necessário bater as ideias para saber se o que o veículo de imprensa quer que a gente faça condiz com o que queremos fazer”, completa.
‘Escrever é importante, mas publicar é mais ainda’
Para Mariléa, historiadores fazerem parte de uma narrativa negra é importante por se tratar de uma reparação histórica inédita e não negociável. “Essa ação não transforma somente o lado de fora. Como diz Conceição Evaristo, ‘escrever é importante, mas publicar é mais importante ainda, como um ato político’. A nossa relação com a escrita não é qualquer coisa, do ponto de vista subjetivo”, avalia.
Patrícia Melo pontua que é extraordinário o que a rede de historiadores conseguiu desenvolver de maneira antirracista, descentralizada e respeitosa. “A ideia de trazer diversidade, protagonismo e respeito a princípios foi uma marca dessa ocupação. E diz muito como a Rede de HistoriadorXs NegrXs funciona e do legado que estamos construindo”, ressalta.
“Para além de um grupo de trabalho, criamos um vínculo. Essa ocupação nos multiplicou”, finaliza o historiador Emílio Ribeiro.
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