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Retorno das aulas nas escolas públicas traz desafios para ressocialização das crianças

Comunidade escolar e mães de alunos da educação infantil e fundamental de São Paulo, Pernambuco e Bahia contam como têm encarado a retomada das aulas presenciais em meio à insegurança após um ano e sete meses de pandemia

Texto: Dindara Paz, Letícia Fialho e Victor Lacerda | Edição: Nataly Simões | Foto: Débora Oliveira

Imagem mostra Anna e a Gall, mãe e filha, sentadas em uma mesa. Ambas são negras e com cabelos crespos.

7 de outubro de 2021

“A principal diferença sentida em sala de aula com as crianças pequenas é na divisão das atividades e brinquedos. É como se elas tivessem perdido esse tato do dividir e ser solidário. O desafio constante nas escolas é a ressocialização”. O relato é do professor Leandro Recarte, da creche Agentil dos Reis, da rede municipal de Osasco, na região metropolitana de São Paulo.

Após um ano e sete meses de creches e escolas fechadas parcialmente ou integralmente por causa da pandemia, a retomada das aulas tem gerado uma série de desafios para a comunidade escolar de diferentes cidades brasileiras, com a readaptação pós ensino remoto e os cuidados com a Covid-19. Esse retorno se mostra ainda mais desafiador para as crianças da primeira infância, de até seis anos de idade, uma vez que esse grupo não faz parte dos grupos de imunização.

De acordo com o estudo “Primeiríssima infância – interações na pandemia: Comportamentos de pais e cuidadores de crianças de 0-3 anos em tempos de Covid-19”, realizado pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, 27% das crianças apresentaram regressão no comportamento, ou seja, voltaram a ter comportamentos de quando eram menores. Os responsáveis pela pesquisa afirmam que tal regressão é notável, pois as crianças choram mais do que antes da pandemia, voltaram a ficar molhadas por não pedirem para ir ao banheiro e se tornaram introspectivas, ou seja, falam menos.

“A gente percebe que as crianças que tiveram contato com os professores se desenvolveram de forma diferente, até mesmo na ressocialização. Aquelas crianças que não tiveram nenhum tipo de contato com as escolas hoje sentem maior dificuldade para interagir com os professores e colegas. Esse processo está sendo difícil para nós”, destaca o professor Recarte. Outro problema relatado por ele é que muitos alunos ficaram órfãos. “Na minha turma tem crianças que perderam familiares durante a pandemia. É um processo complicado porque nos vemos no papel de suprir o que eles perderam nesse período”.

Segundo a pedagoga Luana de Paula Santos, a mudança no comportamento das crianças decorre de elas terem passado por um longo período mais próximas da família do que em épocas em que as escolas funcionavam normalmente. “Para as crianças do berçário está sendo tudo novo, aí percebemos que esse desapego, principalmente com a figura materna, está sendo um processo bem dificultoso. Principalmente para aqueles que ainda são amamentados, fica difícil até mesmo introduzir a alimentação no ambiente escolar”, explica.

osascoyagorodriguesBrinquedo interditado na Creche Agentil dos Reis, em Osasco, na Grande São Paulo. | Foto: Yago Rodrigues

A diminuição das atividades educacionais e de formação infantil marcou a rotina de Anna Clara (7) e da mãe-solo Gall Ribeiro, que vivem na periferia da divisa entre as cidades do Recife e Olinda, em Pernambuco.

“Anna é uma criança muito ativa, que passa o dia realizando atividades, presente nos ambientes sociais onde atuo e nas aulas culturais que participamos juntas. Com a pandemia, fora da escola, tive que pensar em estratégias que compactuassem com o que já vivíamos, o levantar da cama já no intuito de aprender uma coisa nova a cada dia”, conta Gall.

No início da crise sanitária, a mãe e a filha precisaram compartilhar a rotina com muitos familiares na casa da avó de Anna, na comunidade de Chão de Estrelas. Ao todo, Gall e Anna conviveram em uma casa com oito pessoas lidando com os cuidados e as preocupações geradas pela pandemia. Gall teve vários bloqueios e crises de ansiedade, durante este período, por se ver de mãos atadas diante da vulnerabilidade delas à exposição ao vírus.

Diante da situação a mãe-solo decidiu se mudar com a filha para a casa de uma amiga, onde com menos pessoas conseguiu buscar meios de formação para chamar a atenção da filha para a leitura. Anna só tinha o conhecimento do alfabeto e de algumas sílabas, mas conseguiu passar pelo período mais crítico da pandemia entendendo as palavras e pondo em prática a escrita.

Gall Ribeiro e a filha Anna, de Recife, em Pernambuco. | Foto: Débora OliveiraGall Ribeiro e a filha Anna, de Recife, em Pernambuco. | Foto: Débora Oliveira

Com o retorno das aulas presenciais, Gall se preocupa com a educação da filha por causa da falta de infraestrutura na Escola Municipal Antônio Luiz e diálogo da comunidade escolar com os pais. Segundo a mãe, a instituição de ensino retomou as aulas, em escala de uma semana em casa e outra na escola, no início de agosto. O único contato feito com os responsáveis pelas crianças foi através de um questionário que perguntava se os pais estavam seguros sobre a retomada.

“Anna me contou que na escola dela não tem água todos os dias para lavar as mãos, por exemplo. As crianças não têm intervalo para evitar interações, o que me faz questionar como terão uma resposta satisfatória se limitam educação e lazer? As crianças querem descobrir as outras, trocar abraços, brinquedos e afeto”, pontua Gall.

Sobrecarga das mães

Apesar da insegurança e preocupação com o desenvolvimento escolar serem fatores determinantes para decidir sobre a volta às aulas, conciliar a sobrecarga da rotina de trabalho com o ensino escolar dentro de casa é uma realidade exaustiva, principalmente, para as mães solo assim como Gall, que representam mais de 11 milhões na composição familiar brasileira, tendo a maioria de mulheres negras (61%). Apesar dos receios com o cenário pandêmico, as mães veem a escola como um local seguro para os filhos e que dão a elas a possibilidade de trabalhar já que muitas não têm com quem deixar as crianças, como é o caso da babá Dete Santiago, mãe de Sophia (6) e Emanuele Santiago (8).

Em dias alternados da semana, Dete prepara as filhas para irem à escola em Salvador. A máscara e o álcool em gel já fazem parte da rotina das meninas, assim como se tornou a volta ao convívio escolar, ainda em modelo híbrido. Para a mãe, a possibilidade de retomar a rotina de trabalho aos poucos e a alegria das filhas em ir para a escola nem sempre esteve presente.

Com o fechamento das escolas no início da pandemia, Dete encontrou dificuldades em ter que conciliar a rotina escolar dentro de casa com o seu trabalho como babá. Mãe solo e sem ter com quem deixar as filhas, levar as pequenas para o seu ambiente de trabalho acabou se tornando a sua única opção. Dentro de casa, a falta de tempo para ensinar as filhas virou a sua maior inquietação. “Para mim, o ensino dentro de casa não foi a melhor opção”, diz a mãe, que é a favor do retorno 100% presencial apesar do receio em relação à Covid-19.

“Meu tempo é muito pouco para poder dar uma ajuda”, diz Dete Santiago, mãe de Sophia e Emanuele | Foto: Arquivo Pessoal“Meu tempo é muito pouco para poder dar uma ajuda”, diz Dete Santiago, mãe de Sophia e Emanuele | Foto: Arquivo Pessoal

Para ela, a escola onde as filhas estudam tem adotado todas as medidas para garantir a segurança diante da pandemia. Sobre a retomada totalmente presencial, Dete enxerga como uma “esperança”.

“Como mãe que trabalha fora de casa, eu acho que para mim vai ser muito bom porque é muito difícil sair com duas crianças todos os dias […] Minha vida mudou toda, tive que trabalhar na raça e agora estou sentindo mais esperança para poder continuar trabalhando normalmente para poder educar as minhas filhas”.

A pedagoga Jocília dos Santos também é mãe solo de Jasmin Azevedo, de 6 anos, que voltou a estudar desde que as aulas híbridas foram adotadas na capital baiana, no final de agosto. A mãe considera a volta às aulas essencial, no entanto, defende que os pais tenham o direito de escolher se continuam a levar os filhos em dias alternados ou todos os dias.

“Eu acho que é necessário, mas não de forma obrigatória. Eu vejo que nas crianças, principalmente da primeira infância, o abalo psicológico foi muito grande. Isso se desenvolveu com o estresse e com a falta de paciência tanto da criança quanto dos adultos. Foi mais de um ano dentro de casa tendo que lidar e não ter um momento de respiração porque não podia sair e tinha que ficar em casa”, argumenta.

Jocília diz que o comportamento de Jasmin mudou positivamente desde que voltou a frequentar a escola | Foto: Verônica RibeiroJocília e a filha Jasmin, de Salvador. | Foto: Verônica Ribeiro

Segundo a mãe, a decisão de levar a filha só foi possível por acreditar que as crianças não desenvolvem casos graves da covid-19, além de ter já ter completado a segunda dose da vacina contra a covid-19. Para ela, também foi o período ideal para que todos os pais e mães dos alunos da escola também estivessem vacinados.

“Ponderando a questão do coronavírus não ser tão agravante em criança e as pessoas da minha faixa etária já ter sido vacinada – mais ou menos na faixa etária dos pais dos colegas de minha filha – eu ponderei que era melhor ela ir para a escola por causa da questão social e do convívio social que é necessário”.

Diante da pandemia, Jocília começou a trabalhar de forma remota e durante esse tempo tem alfabetizado Jasmin em casa. Apesar do reforço, ela diz que a sua dificuldade foi suprir a questão social da filha, já que percebeu Jasmin mais triste sem ter a companhia de outras crianças. Como mãe solo, a filha também a acompanhava em outros tipos de ambientes, como mercados, o que para ela era preocupante por causa da exposição.

Jocília também avalia que o comportamento de Jasmin mudou de forma positiva desde que voltou a frequentar a escola. “A partir do momento que ela retornou para a escola, a personalidade dela está bem melhor. Está mais aberta, mais conversadora – ela já falava demais, agora pronto”, brinca a mãe.

As escolas estavam preparadas para o retorno dos alunos?

Na avaliação da secretária executiva de Gestão Pedagógica do Recife, Juliana Guedes, ainda é preciso entender o contexto que envolve várias faixas etárias contempladas pela educação pública, sobretudo os desafios de informação e condições das crianças de primeira infância e os respectivos responsáveis.

“Nossa maior dificuldade foi não ter uma diretriz bem explicada desde o início para alunos de primeira infância. Primeiro, muito se falou que as crianças estavam imunes [ao coronavírus], depois lembrou-se que poderiam não estar imunes e serem vetores [do vírus]. Aqui, o tempo de entendimento se fez necessário, deixando passar a faixa etária para o último chamado, para o retorno ter acontecido da melhor forma”, diz a secretária, em entrevista à Alma Preta Jornalismo.

Segundo a secretária, equipes de fiscalização foram formadas para atuar nas escolas a fim de monitorarem os cuidados com a higiene e proteção contra o coronavírus. A gestora afirma ainda que o protocolo de distanciamento é seguido rigidamente dentro das escolas da capital pernambucana.

Salvador, capital da Bahia, é outra cidade onde a rede municipal de ensino retomou às aulas. No dia 27 de setembro mais de 150 mil alunos da educação infantil e fundamental foram às escolas após o fim do modelo híbrido, com alternância entre as aulas remotas e presenciais.

Os professores se opuseram ao retorno sob a alegação de que parte das escolas não possui estrutura suficiente para receber os estudantes nem profissionais para dar conta de todos os estudantes. O Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Estado da Bahia (APLB-BA) classificou a medida como “precipitada” e defendeu que as aulas no formato híbrido sejam mantidas até que as medidas reivindicadas sejam adotadas pela secretaria.

Professora da rede municipal há seis anos, Vera Santos é uma das profissionais que não concordam com o retorno escolar. Ela conta que os professores foram pegos de surpresa com o anúncio da volta às aulas totalmente presenciais e diz que a maior dificuldade que os educadores têm encontrado é a falta de análise conjunta entre a secretaria com os profissionais para planejar e garantir um retorno seguro para todos, inclusive para as crianças.

“É impossível alguém dizer que você está no ensino híbrido hoje e no ensino 100% amanhã. Para que haja 100% ou qualquer outra forma é preciso de discussão, de análise, falar com os professores, analisar as condições de saúde, apresentar uma proposta e testar. O que não pode é dizer, de um dia para o outro, que vai mudar”, avalia.

Leia também:Desigualdade no acesso à educação durante a pandemia preocupa pais e educadores

Antes da pandemia, a professora de História e Geografia do ensino infantil e fundamental dava aula para 30 alunos. Com o ensino em dias alternados, a turma foi dividida em quatro grupos de até oito estudantes. De acordo com Vera, mesmo com o distanciamento nas salas, seria impossível cumprir o protocolo com todos os alunos.

“Não se pode abrir a escola sem estar totalmente preparado. A gente sabe que, com o número de alunos que tem na sala, seria impossível o distanciamento mesmo de 1 metro”, explica a professora sobre a nova determinação do Ministério da Educação, que reduz o distanciamento entre as mesas de 1,5 metro para 1 metro.

Em nota, a Secretaria Municipal da Educação de Salvador informou que “mantém um diálogo aberto, permanente e transparente com a entidade representativa dos professores” e que a nova determinação de distanciamento nas escolas atende aos protocolos sanitários para evitar a disseminação da Covid-19.

“Além dessa regra do afastamento de um metro entre os alunos, permanecem os cuidados com o uso de máscara, álcool gel, medição de temperatura, limpeza constante das mãos, cuidados com a alimentação, entre outros”, diz o comunicado enviado à reportagem.

Sobre o distanciamento social, a também professora de desenvolvimento infantil Luciana Melo, de Osasco (SP), reforça as dificuldades dentro das escolas e principalmente nas creches, onde as crianças são menores. “Na prática há dificuldade de seguir os protocolos de saúde, principalmente quando se fala em distanciamento social porque as crianças são muito bebês e precisam de contato afetivo”.

Este conteúdo é resultado de uma parceria entre a Alma Preta Jornalismo e a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, que existe para desenvolver a criança para desenvolver a sociedade. A fundação elege quatro prioridades: mobilizar as lideranças públicas, sociais e privadas; sensibilizar a sociedade; fortalecer as funções dos pais e dos adultos responsáveis pelas crianças e melhorar a qualidade da educação infantil no Brasil.

  • Dindara Paz

    Baiana, jornalista e graduanda no bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade (UFBA). Me interesso por temáticas raciais, de gênero, justiça, comportamento e curiosidades. Curto séries documentais, livros de 'true crime' e música.

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